Angela Davis nos dá esperança!

Ontem, 23 de outubro de 2019, Angela Davis realizou sua última grande conferência no Cine Odeon, no Rio de Janeiro, encerrando um ciclo de conferências, debates, encontros com movimentos sociais, MST, parlamentares negras e com o movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro e em São Paulo. Pela primeira vez na região Sudeste, a convite da Editora Boitempo e da Fundação Rosa Luxemburgo, para lançamento do livro “Angela Davis: uma autobiografia”, a intelectual e ativista lotou o parque do Ibirapuera, pois foram mais de 15 mil pessoas assistindo à sua conferência. 

Somente para lembrar, o livro de Angela Davis, “Mulheres, Raça e Classe”, originalmente publicado em 1981, teve sua edição brasileira apenas em 2016, e provavelmente o sucesso de venda desta primeira tradução estimulou a editora a traduzir outros livros da autora. Muitas de nós já tínhamos lido este mesmo livro em português, graças a uma tradução feita pela Plataforma Gueto. 

Contraditoriamente, o investimento em traduções de obras importantes de feministas afro-americanas não tem inspirado as grandes editoras a publicarem textos de autores negros brasileiros, homens e mulheres. Ao contrario, o que presenciamos hoje é o significativo aumento de pequenas editoras, cuja propriedade é de pessoas negras, voltadas para a publicação de obras de autores negros e negras deste país. Esperamos que o sucesso da venda das obras de Angela Davis quebre este ciclo de silenciamento, presente na constante política do esquecimento da contribuição intelectual negra; bem como, que as editoras representem em seus

quadros a diversidade e a luta política de Angela Davis contra a discriminação racial, contratando a mão de obra negra, em diferentes níveis de sua estrutura. 

Todos nós que estivemos em São Paulo e/ou no Rio de Janeiro nos perguntávamos: quais os motivos de tamanha popularidade desta filósofa e ativista nos dias atuais? A primeira visita de Angela Davis ao Brasil ocorreu em 1995, para participar de um encontro de mulheres negras no Maranhão. Em 2008, Angela Davis aceitou meu primeiro convite para participar do Curso Internacional Fábrica de Ideias, em Salvador, voltado principalmente para estudantes negros da pós-graduação. Certamente que uma ativista e intelectual mundialmente conhecida como ela não veio à Bahia, Estado com maior população negra fora da África, somente para participar do curso. Angela Davis queria conhecer a cultura e atuação política negra. Neste mesmo ano, ocorreu no Ilê Axé Opô Afonjá um inesquecível e histórico encontro entre duas grandes lideranças feministas negras: Angela Davis e Mãe Stella de Oxóssi, ialorixá deste terreiro. O evento também contou com a participação de várias lideranças e feministas negras. 

Em 2009, Angela Davis nos presenteou novamente, aceitando ao convite para retornar ao curso, e realizar a conferência de abertura na Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 2012, fez a conferência de abertura do Fórum Internacional 20 de Novembro, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), quando conheceu e se encantou pela cidade de Cachoeira-Ba, reconhecida internacionalmente pela força da cultura e religiosidade negras simbolizadas, principalmente, pela centenária Irmandade negra da Boa Morte. Em 2017, retorna à Cachoeira para participar da Escola Internacional Feminista Negra e Decolonial. Na oportunidade, fez uma importante conferência novamente na reitoria da UFBA, no dia 25 de julho, dia da Mulher Afro-Latina e Caribenha

Em todas essas ocasiões, o público era majoritariamente feminino, negro e nordestino. Isso explica a frase dita por ela na conferência em São Paulo: “Eu acho que eu me apaixonei pelo Brasil. A maioria das minhas visitas foi à Bahia. Me parece que o coração do Brasil está na Bahia”. 

Retomo esta frase não para dizer da satisfação de nós baianos e baianas, nem para reforçar bairrismos, mas para dizer que enquanto Angela Davis visitava e conhecia o Brasil e suas histórias de luta contra as desigualdades raciais e de gênero, e a violência que caracteriza o estado brasileiro a partir da Bahia, rompia com a lógica da geopolítica do conhecimento imperante no Brasil, caracterizada pela centralização do Sudeste na produção do conhecimento e de narrativas que protagonizam a ação politica nacional. Angela Davis começou pela periferia, pois boa parte de suas visitas foi à Univesidade Federal do Recôncavo da Bahia, uma jovem universidade situada na periferia do Nordeste.

Uma das principais motivações do retorno de Angela Davis ao Brasil em 2019 esteve no desejo de oferecer suporte à família de Marielle Franco na luta por justiça pelo seu assassinato. Para ela, o apoio à família e ao Instituto é o efeito da solidariedade mundial que o assassinato de Marielle produziu. Na sua fala no Rio de Janeiro ela disse que quer saber quem matou Marielle. E também reconheceu que o Rio de Janeiro se tornou a cidade Marielle Franco.  

Retomando a pergunta inicial: o porquê de tamanha comoção e popularidade de Angela Davis no Brasil? Queremos apresentar uma boa razão e outra má. Comecemos pela boa razão. É necessário destacar o crescente aumento dos movimentos sociais e feministas negros, propiciado pelas conquistas do movimento negro a partir dos anos de 1980, atrelado às políticas sociais implementadas pelo governo petista, tais como, a expansão do número de universidades públicas e a implementação das políticas de ações afirmativas, possibilitando que um maior número de estudantes negros adentrasse a universidade. Este ingresso contribuiu para a formação e o fortalecimento de coletivos negros dentro e fora das universidades, que efetivamente estreitaram laços e alianças com os movimentos sociais. É preciso destacar também as ações do ciberativismo, que alcança um número gigantesco de pessoas.Angela Davis tem feito um esforço para incorporar à sua imagem – justamente associada a um símbolo de luta pela emancipação, direito, justiça, igualdade e liberdade – as lutas travadas coletiva e cotidianamente pelas mulheres negras em suas comunidades, destacando também a necessidade de redefinirmos a noção de igualdade, indagando sobre qual igualdade nós estamos falando. “Queremos nos tornar iguais a um homem branco, rico? Eu não quero! “. Acrescentaríamos à mesma pergunta a questão da democracia representativa, pois que este modo de representação política tem historicamente nos excluído, assim sendo: de que democracia estamos falando? 

Enquanto falava em São Paulo e no Rio, para um público majoritariamente jovem e diverso, do ponto de vista da composição racial e sexual, Angela Davis fez crítica ao capitalismo excludente, à exploração e o desrespeito à natureza, enfatizando o descaso do governo federal diante do derrame de óleo que está afetando diretamente as praias nordestinas, destruindo espécies marinhas, manguezais e corais, e consequentemente impossibilitando o modo de vida de populações que vivem da mariscagem e da pesca por aqui.  

Recuperamos estes trechos da fala dela, só para enfatizar que a figura de Angela Davis – incialmente associada à luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos e no mundo – está se convertendo em numa imagem de liberdade, de igualdade de gênero, civil, política e econômica, contra a violência e o encarceramento, contra o neoliberalismo crescente não só aqui Brasil, mas no mundo inteiro. Ainda que ela rejeite a ideia de heroísmo individual, consolidada na figura de um ícone, constantemente destacando que embora as narrativas históricas elejam um personagem, quase sempre um homem para protagonizar as lutas, os verdadeiros heróis e heroínas são aqueles que travam coletiva e cotidianamente a luta por justiça social. 

Quanto à má razão, diz respeito ao contexto político que vivenciamos, caracterizado pela constante perda de direitos sociais, políticos e econômicos e pelo avanço crescente da onda conservadora e neoliberal aqui e no mundo. Em uma de suas falas, Angela Davis ressaltou: “O Brasil me dá esperança”, quando a sua presença em nosso país nos traz fôlego para continuar a luta, pois ela reitera o sonho e nos lembra que a liberdade é uma luta constante!

Obrigada, Angela Davis!

1 – O Coletivo Angela Davis é um grupo de pesquisa ativista iniciado em 2011 na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), formado por estudantes negras de diferentes IES que realizam pesquisa da perspectiva interseccional de gênero, raça, classe, sexualidade, feminismo negro e empoderamento feminino negro. Como parte da agenda política, colaboramos com as organizações do movimento social negro, organizações feministas, LGBTQIA+. Promovemos ações de enfrentamento às desigualdades de gênero e raça nos processos de produção, reflexão e circulação do conhecimento.

2 – O Fórum Internacional 20 de Novembro é o maior evento acadêmico, político e cultural realizado em uma universidade pública brasileira na data de morte de Zumbi dos Palmares.

3 –  O evento resultou de uma parceria entre o Coletivo Angela Davis/UFRB e Odara – Instituto da Mulher Negra.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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