Aquele soco bem dado…

“Esses poemas-porrada de Zero a Zero obriga-nos a sair da passividade do “assim seja” e de “deus proverá”, para descortinar a miséria em que nossa sociedade insiste em se afirmar e junto de todo esse corpo num xinguilar, exigir nosso lugar ao sol, à lua, às estrelas, ao vento, ao léu, a todo e qualquer lugar que se queira e seja. É em cada verso nocauteando a face do racismo, vemos as possibilidades ainda de existirmos, reunindo-nos em torno de cada alma- fogueira para exterminar sim o ódio deles por nós e armarmos toda luta em prol de nosso afroamor, jorrando Marés e Marieles, aqui, sempre, presente.”

Por Cibele Verrangia Correa da Silva para o Portal Geledés 

Imagem enviada pela autora

 

Em tempos de iminente, insistente e permanente barbárie contra nós, pretos, pardos, vermelhos, rosas choque. Em tempos que o ódio dilacera corpos, inquieta almas, estrangula o choro, fortalece a luta e reza fissuras. Em tempos que a carne é fria, o sangue jorra, o coração grita e a mente frita. Em tempos de Marés dilaceradas e tantas tantas tantas Marieles executadas. Um soco, navalhando o estômago fascista da sociedade baixaria, é dado, empunhado, levantado, exaltado como processo e possibilidade (a única) de saída e des(continuação), eis ele aqui.

Zero a Zero, empatando aquele jogo cruel sem gols, varzeado no campinho de terra, dos moleques descalços, das bolas de meia, papel ou imaginária, de camisa do Messi e Neymar, conta nossa triste realidade de abandono e sacrifício nos estádios inacabados da Fifa para uma copa amargada em vermelho e alfineta o sistema que oprime e assassina nossos meninos e meninas que ousam ainda terem fantasias de futebol.

Em 15 poemas contra o genocídio da população negra temos um levantar de vozes que berram por justiça e clamam visibilidade para nós, os ainda chamados de matáveis. Cada verso derramado como leite e sangue, tem a viscosidade das lamúrias das mães sentadas em cadeiras de plástico

a espera do beijo suado daquele seu/sua rebentx que chega cansadx do trabalho, mas sorridente com dentes arruinados desejoso da sopa quentinhade carne moída e sonhos.

Como um canto doado ao pé de cada rum, rumpi e lé, como o abará e caruru ofertados, como um dado xirê bem rodado, Dinha e suas parças, comparsas da resistência, evocam a ancestralidade para serem porta-vozes, levante, bandeira, erguendo oceanos, vasculhando manguezais, cortando as matas virgens, emanando raios e tempestades, jorrando nascentes em cataratas, abrindo o órun, para remexer o àiyé e denunciar sim injustiças, crueldades, toda essa velha nova máquina de escravizar e punir gente nossa, cansada, revoltada.

Esses poemas-porrada de Zero a Zero obriga-nos a sair da passividade do “assim seja” e de “deus proverá”, para descortinar a miséria em que nossa sociedade insiste em se afirmar e junto de todo esse corpo num xinguilar, exigir nosso lugar ao sol, à lua, às estrelas, ao vento, ao léu, a todo e qualquer lugar que se queira e seja. É em cada verso nocauteando a face do racismo, vemos as possibilidades ainda de existirmos, reunindo-nos em torno de cada alma- fogueira para exterminar sim o ódio deles por nós e armarmos toda luta em prol de nosso afroamor, jorrando Marés e Marieles, aqui, sempre, presente.

Pós-fácio da segunda edição do livro Zero a Zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra (Dinha, Edições Me Parió Revolução, 2018)

 

Cibele Verrangia Correa da Silva é Doutora em Letras UFES


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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