Quem viu Angelica Ross brilhando na série “Pose” como a atrevida Candy talvez se surpreenda ao saber que o primeiro sucesso na vida da atriz foi como programadora.
Com 20 anos, “estava cansada de ser mandada embora dos empregos quando as pessoas percebiam que eu era trans”, contou a atriz ao g1 na chegada ao Brasil para eventos do mês do orgulho LGBTQIAP+.
Parecia que o único caminho para se manter seria a prostituição ou o entretenimento adulto, saída comum para muitas mulheres trans e travestis em todo o mundo diante da rejeição da família, na escola e do mercado de trabalho.

Angelica chegou a trabalhar para um site adulto, mas foi percebida de forma diferente pela dona, que acabou decidindo pagar para que ela garantisse não o faturamento, mas o bom funcionamento da página.
“Ela me achou esperta”, conta Angelica. “Aprendi sozinha a programar em HTML e CSS. Comecei com o básico e fui indo passo a passo, vendo tutoriais. E me tornei webmaster.”
Angelica passou a trabalhar na área como freelancer enquanto também perseguia a carreira de atriz.
“Em tecnologia, não importava qual era minha aparência ou como era a minha voz”, completa. “Então, percebi que era um plano que eu podia dividir com outras garotas.”
A promessa foi cumprida de forma mais ampla alguns anos depois. Em 2014, Angelica criou a startup Trans Tech Social, com a intenção de oferecer treinamento na área para pessoas trans e com não-conformidade de gênero.
Não foi fácil. “Pose”, que proporcionou a ascensão em sua carreira artística, só estreou quatro anos depois, em 2018. “Não sou Caitlyn Jenner. Eu não nasci rica”, diz Angelica.

“Quando criei a Trans Tech, eu não tinha dinheiro. Mas eu tenho um privilégio que chamam de passabilidade [ela usa a expressão inglesa “cis-assumed”, que significa que sua aparência faz com que pessoas a vejam como uma mulher cisgênera por causa de estereótipos estéticos]. As pessoas não acham que sou trans”, explica.
“Então, dependendo da forma como eu me apresentava, as pessoas pensavam: ‘Ah, ela tá bem, não precisa de nada’. Quando eu tentava levantar dinheiro [para o projeto] ninguém queria que o dinheiro fosse também para me pagar um salário.”
“Até hoje eu não tenho nenhuma remuneração por comandar a Trans Tech; todo o dinheiro [obtido pelo projeto] vai para lá”, afirma a atriz de 41 anos. “Eu sempre tive que trabalhar também fora dali para mostrar para a minha comunidade que eu não quero tirar nada deles.”
A startup, com sede nos Estados Unidos, se prepara para se tornar global. Atualmente, tem apoio de Google.org, Fundação Linux e da comunidade LesbiansWhoTech, entre outros, mas também recebe doações em dinheiro.
O foco não é só ensinar programação, mas todo tipo de tecnologia que possa ajudar uma pessoa trans a dar um passo além: desde a montagem do currículo a administração de redes sociais, declaração de impostos, etc.
“Quando falo em tecnologia, não é só programação. Se a pessoa faz maquiagem e aprende a usar uma ring light, uma câmera, a fazer vídeos para as redes sociais, pode ter mais seguidores e chegar a ser uma referência no assunto, abrir um canal no YouTube e monetizar os vídeos”, exemplifica a atriz.
Uma parceria com a plataforma de empregos Upwork permite encontrar vagas como freelancer ou mesmo em empresas que busquem o perfil. Também há um trabalho de mentoria.
E Angelica não tem problemas em dizer que a tecnologia pode até ajudar quem ainda esteja recorrendo ao sexo para sobreviver.
“Talvez a gente não esteja anunciando ‘Olha, estamos fazendo coisas para sites de sexo’. Mas, se eu posso ensinar uma garota a ter seu próprio site, ela pode até continuar a trabalhar com sexo, mas [fazendo isso online] ela estará segura e ninguém vai tocá-la.”
Para o pesquisador e artista social Pri Bertucci, que está à frente da Feira Trans, em São Paulo, da qual Angelica participou no último dia 10, já existe uma evolução na entrada de pessoas trans no mercado de trabalho.

“Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), recentemente a gente estava com 94% de pessoas trans fora do mercado de trabalho formal. Há 3, 4 anos atrás eram 99%, então quer dizer que algo está acontecendo”, afirma. “Estão começando a contratar, né? O nosso trabalho de décadas está tendo resultado. A gente tem aqui, por exemplo, uma pessoa que participou de um evento nosso em 2018 e foi contratada por uma grande multinacional. Saiu de estagiária e foi efetivada. É muito lindo ver isso.”
Uma semana depois de fazer a concorrida palestra na Feira Trans, Angelica Ross participou na última sexta-feira (17) da Marcha Trans, no Centro da capital paulista, também organizada por Bertucci. Ali encontrou expoentes da comunidade no Brasil, como a vereadora de São Paulo Erika Hilton, e ofereceu mais um talento: o de cantora.