De acordo com o IBGE, 16% das famílias brasileiras são diferentes da tradicional, incluindo os 60 mil casais gays existentes no País
Por:Daniel Favero
O prazer de ver uma criança dançando desajeitada em cima de um palco no Dia dos Pais para depois entregar um desenho todo rabiscado – guardado com todo o carinho pelo amor que representa – era um privilégio que até pouco tempo só era reconhecido para a configuração tradicional de família: pai, mãe e filhos. Há cerca de cinco anos se tornou cada vez mais comum casais homoafetivos adorarem crianças trazendo essa realidade para as escolas, que buscam criar um ambiente de normalidade e aceitação. Por muito tempo o assunto foi um tabu espinhoso, mas que hoje não passa de mais um formato familiar. “A cabeça de criança descomplica tudo, adulto é que complica”, afirma Toni Reis, um dos pais de Alyson Miguel, que chama os dois de “pães”. Junto a isso, o beijo gay em uma novela ajudou também as crianças a entenderem um casal de dois pais.
O conceito de família há um bom tempo não é o mesmo. De acordo com o IBGE, 16% das famílias brasileiras são diferentes da tradicional. Inserem-se nesse percentual os 60 mil casais gays existentes no País. Eles cumprem o papel de pais e mães recebendo o apelido de “pães” pelas crianças, que só querem demonstrar o amor que têm pela família, independente da configuração.
“A professora mandou a gente fazer um desenho de presente que lembrasse do pai. O pai Toni gosta de escutar o CD do Dois Filhos de Francisco, e fiz a capa do disco; e o pai David é inglês, por isso desenhei a bandeira da Inglaterra”, conta Alyson Miguel, 13 anos, que há três vive com os pais Toni Reis e David Harrad.
A experiência do, hoje, adolescente com os pais tem sido tão marcante em sua vida que o jovem publicou um livro chamado Jamily: a holandesa negra, que conta história de uma menina etíope que é adotada por um casal homoafetivo holandês, uma ficção baseada em sua história de vida. David e Toni se dizem tão felizes na função de “pães” que estão em processo de adoção de um casal de crianças, que está com eles há três meses.
“No dia dos pais eles homenageiam os dois pais, e no dia das mães também os dois pais. Eles falam que nós somos ‘pães’. no Dia das Mães os três fizeram café da manhã bem bonito, decorado com moranguinhos, sanduíche de mortadela… mas não sei ainda o que aprontar para o domingo”, conta Toni, se dizendo afortunado por poder dar e receber amor de seus filhos.
Toni desmistifica sua vida familiar dizendo que vivem como qualquer outra família, “a cabeça de criança descomplica tudo, adulto é que complica tudo. Ontem uma psicóloga que deu uma palestra (no lançamento do livro) disse que no Brasil nós temos 192 combinações de família, e nós somos um tipo. Por isso, não existe a família, e sim as famílias”, afirma. “O que é importante é atenção, afeto, carinho e o cuidado, e eles têm me ensinado muito sobre isso”, afirma.
Em 2010, Carlos Marques e André Souza foram um dos primeiros casais homoafetivos a concluírem o processo de adoção das duas filhas, hoje com 10 e 12 anos. E contam que até hoje, nunca ouviram críticas, apenas elogios, mesmo depois de trocar a cidade do Rio de Janeiro pela pequena Maricá, na região dos lagos.
“Fomos muito claros com a escola, que sempre tratou com normalidade. Nos eventos todo mundo sabe, se não sabe desconfia, mas a gente não faz questão de ficar declarando isso, ao mesmo tempo em que não temos nada a esconder porque temos uma vida tão legal, comportada, estamos juntos para tudo”, conta Carlos.
“Vai dar o presente para a mãe? Não, para os meus dois pais que estão ali”
Atualmente, Carlos vive a paternidade de outra forma. No passado foi casado com uma mulher, tem duas filhas biológicas, e hoje é avô, sem que sua vida atual tivesse criado qualquer problema para o convívio familiar. “Tenho uma relação com as duas que não tive com minhas filhas adultas, no cuidado dos detalhes, do aprendizado sobre o universo feminino”.
Mas ainda hoje, ele se diz surpreso com o carinho que recebe das filhas, mesmo quando tem que se meter em meio às mulheres nas apresentações do Dia das Mães. “No início era muito surpreendente, emocionante a gente receber carinho dessa forma. Estar em uma festinha do Dia das Mães e você sentar lá no meio das mães, como pai representando o homenageado, e ao mesmo tempo em que fica meio envergonhado no meio das mulheres é uma coisa fantástica, não tem nada que possa descrever, porque passa a ser considerado meio mãe. Tem o papel de mãe e pai ao mesmo tempo, é uma oportunidade inigualável”.
Ele conta que nesses eventos públicos, já passaram por situações engraçadas, quando uma das filhas foi perguntada se daria uma flor para a mamãe, “não tenho mais mãe, mas tenho dois pais”, disse a criança. “Teve outra vez que ela estava em uma festinha infantil e ela foi premiada com alguma coisa, e a pessoa disse no microfone que ela ia levar o presente para a mãe, mas ela respondeu: ‘não, vou dar o presente para os meus dois pais que estão ali’”, conta Carlos rindo do episódio.
Ter quatro filhos de forma convencional já é considerado um desafio, agora, imagine adotar quatro crianças. Inicialmente Rogério e Weykman dizem que tinham um perfil de adoção pautado pela razão – um casal de até seis anos -, mas terminaram levados pela emoção depois de conhecerem seus futuros filhos. Isso provocou um choque entre amigos e familiares, mas quando a família conheceu as crianças, qualquer receio surgido deu lugar ao amor trazido pelas quatro crianças integradas à família.
“Quando entrou o perfil emocional ficamos com os quatro sem pensar muito… mas sempre quisemos uma família grande, sempre gostamos muito disso e não tivemos dúvida”, afirma Weykman. “Noventa por centro dos nossos amigos disseram que estávamos loucos. Alguns entraram pela linha do bem que estávamos fazendo e outros simplesmente nos abraçaram em sinal de apoio. É uma benção, fomos abençoados, e é isso que estamos buscando, como qualquer casal que busca felicidade com os filhos”, diz Rogério, completando que, para os avós, os quatro são netos.
Eles adoraram quatro irmãos: Juliana, 11; Maria Vitória, 3; Luis Fernando, 2; e Ana Claudia, 6 meses, todos filhos de mãe soropositiva, mas que depois do tratamento conseguiram fazer a negativação da doença. As crianças estão com eles desde o dia 11 de junho, e eles já planejam uma festa com toda a família para o dia dos pais. “Vamos fazer um baita churrasco com o meu pai e com a atual companheira dele, porque minha mãe já faleceu; meus sogros; irmãos dos sogros; irmãs da minha sogra; meus tios; e vai ser o primeiro dia dos pais com a turma toda, quando vamos confraternizar e marcar essa data também”, conta Rogério, que compartilha da opinião de Toni Reis sobre a naturalidade com que as crianças tratam o fato de serem filhos
Igual o Niko e o Félix
“(No abrigo) nossa mais velha, Juliana, perguntou para o Weykam: ‘vocês são irmãos?’ Nós respondemos que não, ‘somos casados’. Ela parou, olhou e disse, ‘igual ao Niko e o Félix?, ah tá’. E foi assim… não faz diferença para eles. Quando veio o bilhete sobre o presente para o dia dos pais, o colégio pediu para cada criança preparar um boné, e ela imediatamente disse: ’eu tenho que comprar dois bonés’”, conta Rogério, dizendo que escolheram uma escola que já tinha entre seus alunos crianças adotadas por casais homoafetivos.
A experiência relatada por estes casais mostra que se tratada com naturalidade, a adoção de crianças por casais homoafetivos é algo normal. Depois de tanto tempo convivendo com as filhas, Carlos diz que, assim como as pessoas devem aprender a aceitá-los como são, eles também devem entender que a aceitação é difícil para algumas pessoas. “A gente quer ser aceito, mas também tem que aceitar as outras pessoas, inclusive quem tem dificuldades, cada um tem seu jeito, sua cabeça, sua formação”, diz Carlos.
Fonte:Terra