Os protestos de Baltimore, que deixaram a imprensa mundial chocada com atos de violência e vandalismo contra patrimônios públicos e privados mostra muito mais que uma população pedindo justiça pela morte de um negro. A morte de Freddie Gray foi a faísca de uma bomba que há tempos estava pra explodir.
Enviado por Luan Nascimento via Guest Post para o Portal Geledés
Alguns jornais chamaram de ‘rebelião’, ‘onda de violência’ ou ‘uma série de protestos violentos e criminosos’, o fato é que no último mês o mundo acompanhou através da imprensa e das redes sociais, os protestos em Baltimore. Formados em sua maioria por adolescentes e jovens negros, os protestos deram início após a morte de Freddie Gray, de 25 anos, que morreu depois de sofrer lesões na coluna vertebral, enquanto estava sob custódia policial.
Baltimore é uma cidade do estado americano de Maryland. É também a 36ª cidade mais violenta do mundo e a 3ª mais violenta dos Estados Unidos, apresentando uma taxa de homicídios de 37,7 por 100 mil habitantes. Se formos comparar com uma cidade brasileira, em termos de violência, Baltimore assemelha-se à Pernambuco, com uma taxa de 37,1 por 100 mil habitantes, porém, no caso de Pernambuco, a cidade ocupa a décima posição das cidades mais violentas do Brasil. Por aqui também temos casos como o de Freddie Gray, mortos em circunstâncias diferentes, mas pelos mesmos julgamentos e algozes.
A mídia trata casos como esse de Freddie Gray, como uma “morte em circunstâncias não determinadas” ou até mesmo como um incidente, quando claramente, Gray foi alvo de violência policial. A mesma mídia que chama traficantes varejistas negros e pobres de “perigosos bandidos” e traficantes brancos e jovens com toneladas de drogas de “jovens de classe média”. É a mídia burguesa, a ‘imprensa rabo preso’ que tem como função colocar os ricos como modelos a seguir e jogar pobre contra pobre, que faz oprimido abraçar as ideias do opressor. E essa imprensa, que tem lá e aqui, noticiou os protestos de Baltimore como se fossem simplesmente uma revolta popular após a morte de um negro pela polícia, mas não é tão simples assim. Trata-se de uma longa história, que muito se assemelha com histórias que vemos em muitos morros e vielas por aqui. Talvez por isso tenha-se falado tão pouco sobre isso na grande mídia.
Os negros correspondem a cerca de 64% da população de Baltimore, porém, a opressão estrutural e sistêmica castigam muitas comunidades negras da cidade. A polícia de Baltimore trabalha com o mesmo modelo “suspeito padrão” que vigora aqui: se for preto, pobre e favelado, é suspeito e o tiro é dado pra matar. Moradores sofrem com falta de moradia, remoções forçadas para dar lugar a construções de condomínios e rodovias, quase toda semana um negro desarmado é morto pela polícia e cada vez mais o racismo e a pobreza assolam Baltimore. A realidade dos negros de Baltimore é bem parecida com a dos negros brasileiros em várias quebradas por aí afora. A especulação imobiliária que expulsa os pobres dos centros urbanos, que expulsa famílias de prédios há anos abandonados em Estados como São Paulo e Rio de Janeiro é a mesma que, em Baltimore, deixa 4.000 pessoas sem teto e outras 154.000 perderem suas casas e serem despejadas.
As pessoas foram para as ruas não só pela morte de Freddie Gray, elas foram às ruas para que todos vejam que elas existem que estão vivas e querem continuar vivendo. Elas foram para as ruas porque não aguentavam mais ficarem caladas. A violência tão comentada pelos jornais e portais de notícias, que mostrava manifestantes enfurecidos atirando pedras contra policiais, quebrando vitrines de lojas e detonando carros nas ruas nada mais é que a reação do oprimido perante a violência do opressor. Afinal, o bairro de Sandtown, que era onde Gray e sua família residiam é um dos bairros mais pobres de Baltimore. Além da constante opressão policial em cima da população, mais da metade das famílias ganham menos de US$ 25 mil ao ano e mais de 20% da população adulta está desempregada.
Há relatos de moradores (nesta matéria e nesta reportagem) que dizem que a violência começou com a polícia, que agredia a esmo manifestantes e quando os mesmos começaram a se defender com pedras, a polícia disse que várias gangues da cidade se associaram para ‘eliminar’ agentes policiais e que existia então, uma ameaça considerável de segurança. E foi assim que a violência implodiu de vez e a revolta tomou as ruas, com manifestantes tacando fogo em lixeiras, quebrando viaturas, carros de luxo e vitrines de lojas. Através de vídeos postados no Youtube e Vmeo dá para se ter uma noção melhor da revolta que tomou conta da população negra dos guetos de Baltimore. Lojas foram saqueadas carros e viaturas completamente destruídos, lixeiras queimadas e houve arrastões em alguns locais.
Aparentemente, tanto em terras brasileiras quanto americanas, a depredação da vitrine de uma loja choca mais que a morte de uma pessoa negra e pobre. A imprensa, que se manteve calada diante da violência do Estado contra os negros, agora se mostrava chocada com a reação violenta e explosiva das manifestações. “A narrativa agora é sobre saques e tumultos. As pessoas não veem os problemas estruturais de todos os dias. Eu chamaria de saqueamento estrutural na forma de políticas públicas”, essa é a fala do professor-assistente da Morgan State University, Laurence Brown. Essa é uma fala que sintetiza muito bem que os protestos em Baltimore vão muito além da morte de Freddie Gray.
A violência e a revolta mostradas em Baltimore são efeitos de uma causa que há muito é sumariamente ignorada por todos que estão fora dos guetos. Assim como aqui no Brasil, todos os problemas diários das periferias são ignorados pelas autoridades e pela imprensa. A revolta em Baltimore é por direitos. Direito de não ser julgado e condenado pela polícia por ser negro e pobre, como também é feito nas quebradas daqui. Temos que tomar Baltimore como exemplo. Exemplo de luta e reação, exemplo que unidos somos mais fortes, exemplo de que quando um dos nossos é morto sem motivo, a cidade irá pegar fogo. Como já bem dizia Gog e os Racionais Mc’s, periferia é periferia em qualquer lugar, seja em Baltimore, São Paulo ou Rio de Janeiro. O que os jovens de Baltimore querem quebrando vitrines e viaturas é chamar a atenção para a situação gritante de suas vidas e que ninguém dá à mínima, afinal, uma hora a fome, o medo e a tristeza viram ódio. Para você, atacar o patrimônio público/privado pode parecer exagero ou até mesmo hipocrisia, mas para quem é frequentemente humilhado, rebaixado e calado pelo Estado e sua força policial, quebrar algumas viaturas e vitrines é libertador.
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