Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer, ‘Underground Railroad’ é lançado no Brasil

Livro de Colson Whitehead mescla elementos de ficção em um romance histórico

por Paulo Nogueira*, no O Estado de S.Paulo

Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade, de Colson Whitehead, foi um dos romances do ano passado nos EUA. Quase não teve para mais ninguém. O livro passou o rodo nos prêmios principais (Pulitzer, National Book Award, finalista do Man Booker Prize e do Arthur C. Clark Award), foi saudado por Barack Obama como “sensacional” e está sendo adaptado para a TV por Barry Jenkins, do oscarizado Moonlight.

O pano de fundo é a escravatura de seres humanos, que toda a humanidade praticou durante milênios – hoje um crime contra a própria humanidade (o primeiro a assim classificá-la foi o francês Victor Schoelcher, no século 19). A criminalização do tráfico de pessoas consistiu numa das grandes conquistas políticas, jurídicas e morais dos últimos 200 anos – mas antes dos finais do século 18 não era crime em parte alguma do planeta.

Na lúgubre contabilização dos horrores do passado, o tráfico transatlântico não é caso único nem na dimensão nem na duração. A Grécia clássica, matriz da civilização ocidental, tinha escravos. Já o tráfico arábe-muçulmano foi o mais devastador que a África sofreu. Começando no século 7, 800 anos antes do tráfico transatlântico, só terminou no século 20. E enquanto há 70 milhões de descendentes de africanos na América Latina e nos EUA, restam apenas ralas comunidades originárias do Continente Negro nos países muçulmanos, pois neste caso a escravidão foi acompanhada de castração e extermínio.

Nos EUA, entre a 1.ª e a 2.ª Guerras Mundiais, ocorreu a chamada Grande Migração, quando centenas de milhares de afro-americanos trocaram o Sul do país (assolado pelo racismo e pela falta de oportunidades) pelo Norte. Esse deslocamento gerou um novo senso de independência entre os negros, produzindo uma vibrante cultura urbana conhecida como Harlem Renaissance. Embora os negros correspondam a 14% da população dos EUA, a partir de então proliferaram ficcionistas afro-americanos de primeira classe, como Richard Wright, Ralph Ellisson, James Baldwin (duplamente minoritário: negro e gay) e Toni Morrison (Nobel de Literatura em 1993), entre muitos outros.

O que era o “underground railroad” (ferrovia subterrânea), se é que existiu? Ô, se existiu! Constituía numa rede de rotas de fuga para os Estados do norte dos EUA (onde a escravatura fora abolida), na época pré-Guerra de Secessão. Incluindo trilhas a pé, cavalos, barcos a vapor e trens convencionais, foi urdida durante dez anos por abolicionistas. A história registrou até o nome da primeira pessoa a alcançar a liberdade através desse esquema: Henry Brown.

Rocambolesca e altruísta, a underground railroad aderiu ao imaginário americano. Em 2017, o canal WGN transmitiu a primeira temporada de Underground, uma série de TV que segue um grupo de escravos através da rota da liberdade. Sobre Harriet Tubman, a primeira “maquinista” da ferrovia subterrânea, há até livros infantis e juvenis, além de uma biografia que está sendo rodada neste momento pelo canal HBO.

Também em 2017, o Tesouro americano anunciou que Tubman figurará nas novas notas de US$ 20. Em 1998, o Departamento Nacional de Parques dos EUA criou um circuito dos locais usados pela underground railroad. E o primeiro museu dedicado ao tema foi inaugurado em 2004, em Cincinnati.

A protagonista deste romance é a jovem Cora, que foge de uma plantação na Georgia e é perseguida pelo implacável, quase mefistofélico (mas não caricatural nem unidimensional) caçador de escravos Ridgeway. Este é acompanhado por um menino negro, Homer, que Ridgeway comprou e libertou, e que o ajuda não apenas na caçada mas como cronista da jornada (daí seu homérico nome).

A grande sacada literária de Whitehead, neste romance sobre a liberdade, é uma liberdade poética: aqui, a ferrovia subterrânea é mesmo uma estrada de ferro em túneis clandestinos, uma espécie de metrô libertário. Ou seja, o esquema abolicionista assume uma dimensão metafórica e simbólica, como se houvesse dois países: um real, institucional e superficial; outro subterrâneo, subversivo e visionário.

Mas o ardil tem outras vantagens ficcionais: permite que a narrativa itinerante percorra múltiplos cenários e nuances regionais da ignomínia escravagista, da Georgia ao Tennessee, de Indiana a Carolina do Norte. Neste caso, leis raciais proíbem os negros de entrar no Estado, e aqueles apanhados dentro das fronteiras são torturados, assassinados e pendurados em árvores, assim como seus cúmplices brancos. Como responde um personagem, ao ser felicitado por o Estado ter abolido a escravatura: “Pelo contrário: abolimos os negros.”

A originalidade fascinante desta obra é precisamente esta: um romance histórico sem datas e num contexto volátil, porém não inverossímil e muito menos informe. Circulamos numa distopia alucinante, numa realidade em parte alternativa (mas também de uma historicidade irrefutável, como os anúncios autênticos de escravos foragidos que pontuam o texto). Podia ser a Alemanha nazista ou a Rússia stalinista, na medida em que ninguém está a salvo e todos são suspeitos. É esta costela distópica (já presente num romance anterior de Whitehead, Zone One, em que um surto virótico semeia zumbis pelo planeta), que candidatou o romance ao prêmio Arthur C. Clarke, para a melhor ficção científica. O próprio Whitehead comparou sua obra a Viagens de Gulliver.

Cora é uma protagonista inesquecível, uma Lolita negra na qual o abuso é o sistema, não um indivíduo. Como na Odisseia (novamente Homero!), ela é um Ulisses de saia tentando voltar para uma Ítaca que não existe. O pilar perfeito para um romance que é um libelo, nunca um panfleto. Como nas narrativas de Primo Levi sobre o Holocausto (outro opróbrio humano), embora aqui o bem e o mal sejam claros, não rolam anacronismos militantes, nem maniqueísmos redutores e simplistas. Despontam brancos maus e brancos bons, negros bons e negros maus.

O timbre da prosa de Whitehead é deliberadamente um tiquinho arcaico, mas não vetusto: por vezes, lembra um coro de vozes de uma tragédia imemorial, mas muito tangível e arrepiante. Ao embarcar neste trem fantasma (que lembra de raspão a ferrovia encantada de Harry Potter, só que numa moldura dantesca e trágica), o leitor jamais perderá a viagem.

*Paulo Nogueira é jornalista e escritor, autor de ‘O Amor é um Lugar Comum’ (Editora Intermeios) 

+ sobre o tema

Menina de oito anos morre no Iêmen em lua de mel com marido de 40

Uma criança de oito anos morreu no último...

Polícia rejeita pedido para criar delegacia só para racismo

O diretor-geral da Polícia Civil do Distrito Federal, Jorge...

É minha culpa!

Esse vídeo é uma versão legendada do original...

para lembrar

Mano Brown reassume posto de comando, com Marighella

Atenção, está no ar a rádio libertadora!Nem o filme,...

Leandrinho assina com o Boston Celtics e continua na NBA

A esposa do jogador, Samara Felippo, postou na sua...

Livro sobre Whitney Houston lembra magia musical da cantora

Um novo livro sobre Whitney Houston escrito por seu...

Tony Braxton anuncia que não gravará mais discos

Segundo a NME, Tony Braxton anunciou que não...
spot_imgspot_img

Quem é Mohamed Mbougar Sarr, premiado por livro que demole o sistema literário

"Nenhum escritor africano confessaria isso em público. Todos vão negar e ainda posar de rebeldes. Mas, no fundo, faz parte dos sonhos de muitos...

Livro de Sueli Carneiro mostra que racismo opera pelo Estado e por práticas sociais

Sueli Carneiro inicia sua obra do lugar de escrava. Do espaço reservado aos negros excluídos da "rés(pública)", que vivem na condição de não cidadãos. É...

Denise Ferreira da Silva e Sueli Carneiro: filósofas insurgentes

O mercado editorial lançou, num tempo relativamente curto, duas obras incontornáveis para (des)pensar e intervir na realidade ou até mesmo decretar o fim deste...
-+=