Décadas de discurso anti-política, anti-PT e em prol da intolerância forjaram o caminho para que fascistas chegassem onde estão
Por Helena Martins Do Carta Capital
Nos últimos dez anos, o crescimento de candidatos de extrema-direita e, inclusive, fascistas marcou e transformou o cenário político em diversos países. Da França à Colômbia, dezenas sofreram com o avanço conservador. Aqui, seguimos caminho semelhante, com o pêndulo da consciência social tendendo radicalmente à direita.
Um fenômeno tão profundo só pode ser explicado por múltiplos fatores. Entre eles, é inegável o papel da permanência da cultura machista, racista e homofóbica. E do estímulo ao individualismo que, em contexto de aumento do desemprego e da desigualdade, transforma o outro – como o imigrante ou os setores atendidos por políticas sociais – em inimigo.
A permanente crise econômica é acompanhada pela busca de respostas fáceis, ainda que falsas. A esquerda também tem parcela de responsabilidade, seja pela adoção de políticas de austeridade ou por seu envolvimento em práticas de corrupção.
Mas aqui também é preciso chamar atenção para outra instituição, que contribuiu muito na construção desse pensamento conservador: a mídia. Muito tem sido falado sobre o impacto de notícias falsas e do uso de dados pessoais para o direcionamento de mensagens moldadas na constituição da extrema-direita brasileira. Mas é preciso lembrar: foram os chamados grandes meios que produziram o colchão sobre o qual hoje se deitam candidatos como Jair Bolsonaro.
A abordagem conferida à política, o direcionamento quase exclusivo da crítica ao Partido dos Trabalhadores (PT) e o posicionamento das empresas diante de questões como a crise econômica e a segurança pública foram os tecidos usados para a confecção desse cenário.
O problema tem raízes profundas. Os meios de comunicação, em especial a televisão, dada sua abrangência, historicamente funcionam não como uma representação da realidade, mas como “a própria realidade”, como escreve o professor da UnB Venício Lima em seu livro “Mídia: teoria e política”. No Brasil, o fato de haver um alto índice de concentração de meios faz com que a diversidade de ideias e opiniões seja pequena, o que reforça o poder de poucos grupos construírem determinados sentidos e visões de mundo.
Essa construção ocorre quando a mídia atua na definição dos temas relevantes para a discussão na esfera pública, na geração e transmissão de informações políticas, na fiscalização das administrações públicas, na crítica das políticas públicas e na canalização de demandas da população junto ao governo. Trata-se, portanto, de uma construção paulatina, cotidiana, que agora encontra outros canais de disseminação, como a Internet.
Parte dos eleitores que votam em Jair Bolsonaro estão desencantados com a política, veem nele o candidato da mudança e da ética ou nele votam por considerá-lo uma expressão da antipolítica. Tais percepções encontram pouca base de realidade, já que o candidato ocupa cargo parlamentar desde 1991, usou de sua influência para eleger também os filhos, e também está envolvido em diversos casos de corrupção e de favorecimento político.
O que explica em parte esse sentimento é a postura adotada pela mídia contra a política. Foi assim antes do Golpe Militar de 1964, quando a chamada Rede da Democracia assumia a representação e a expressão da opinião pública e desqualificava instituições clássicas como partidos, sindicatos, o Congresso, etc. A Rede era liderada por João Calmon, então deputado federal, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).
Após o fim da Ditadura, a mídia novamente operou a construção de um discurso adversário em relação à democracia, expresso na crítica permanente à política e aos políticos. O mesmo posicionamento tem sido visto nos últimos anos, com raras exceções – como durante o governo de Fernando Henrique, quando a imprensa adotou uma postura complacente com o poder central e seu projeto. No início dos anos 2000, após a eleição de Lula, apesar da ausência de enfrentamento da concentração midiática por parte do governo federal, volta a regra da postura adversária aos políticos e à polícia, sobretudo após a Ação Penal 470, chamada de “mensalão”, na Operação Lava-Jato e no processo de impeachment da Presidenta Dilma.
De uma cobertura crítica ao governo a decisão editorial de apoiar o golpe, o impeachment de Dilma foi legitimado perante à opinião pública pela divulgação seletiva das acusações, especialmente das denúncias de corrupção; pela exaltação e convocação a protestos favoráveis à destituição da Presidenta; e pela fixação de argumentos por meio da repetição e da eliminação do contraditório.
Neste blog, analisamos diversos momentos dessa construção. Em todos eles, verificamos a centralidade dada ao PT como causador de todos os problemas e mazelas sociais. Não se trata aqui de redimir o partido de seus erros. Mas é fato que a corrupção, a crise econômica e outros problemas não nasceram nem são exclusivos dos petistas. Ao passo em que alimentava essa percepção ilusória, a mídia abria espaço para figuras do Movimento Brasil Livre (MBL) – eleitos nos dois últimos pleitos – e para expressões ultra-conservadoras, sem cobrar delas nada mais que frases fáceis, embora incapazes de solucionar problemas complexos.
Os discursos reiterados em torno da defesa das reformas trabalhista e previdenciária, apresentadas na Globo e demais como “necessárias” e “essenciais” para “sanar as contas públicas”, agora também legitimam as propostas de retirada de direitos e de privatização defendidas por Bolsonaro. Nada se analisa das experiências de diversos países que, ao adotarem políticas de austeridade, não conseguiram sair da crise.
Assim, o país padece de debate sobre programa e de aprofundamento, ficando suscetível a discursos rasos que circulam pelas redes e ganharam a mente de milhões de brasileiros alicerçados no tripé anti-política, anti-PT e conservadorismo.
Por meio da forma enviesada de tratar questões como a segurança pública e a situação econômica do país, os meios de comunicação também ajudaram a construir o “mito” e seus asseclas. Agora estamos todas e todos assustados com os discursos violentos proferidos por Bolsonaro, mas falas semelhantes ocupam, há anos, a TV. Ou não ganharam popularidade, por meio dos programas policialescos, expressão como “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos para humanos direitos” e tantas mais? Tudo isso ocorreu sem que a sociedade e os órgãos públicos responsáveis pela proteção aos direitos humanos agissem contra tais violações de direitos, em emissoras que são, vale lembrar, concessionárias públicas.
O mesmo país que, por não ter feito o balanço do período militar, inclusive do apoio dos principais meios de comunicação a ele, não conhece o que de fato ocorreu durante a Ditadura e então se abre a falas que naturalizam sua volta.
É este o tamanho do risco que vivemos. Mesmo assim, Record e Band já definiram seu apoio a Bolsonaro, violando inclusive a lei eleitoral. Articulistas e apresentadores da Globo seguem na linha de que não já mal maior ao país que o PT. Tudo indica que a democracia, se padecer ainda mais, o fará também por efeito do sistema midiático.
*Helena Martins e jornalista, doutora em Comunicação pela UnB, professora da Universidade Federal do Ceará e integrante da coordenação do Intervozes