O feminismo mudou a minha relação com a minha mãe. Eu passei a vê-la de forma mais crítica, e também mais humana. Eu passei a valorizar mais a minha mãe, embora essa valorização tenha uma grande carga paradoxal, pois é admiração calcada em sacrifícios que ela não deveria ter feito.
Por Vanessa Fogaça Prateano*, da Revista Fórum
Não foi fácil escrever este texto. Pensei nele milhares de vezes antes de iniciá-lo. Talvez o derradeiro empurrão tenha sido um texto da minha amiga e companheira de militância Xênia Mello, sobre a relação dela com a mãe negra e empregada doméstica, texto por sua vez motivado pelo filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert.
Este texto não é definitivo, pode gerar ruídos, más impressões e tudo mais. Mas ele é honesto, doloroso e libertador.
Eu tenho 26 anos, farei 27 no próximo domingo. Minha mãe tem 48 anos. Nossa relação é intensa, complicada, marcada por grande cumplicidade e admiração recíproca, como muitas relações entre mãe e filha.
Não sei se ela lerá isto aqui, mas talvez pessoas próximas e parentes leiam e comentem, ou mostrem o texto a ela.
O feminismo mudou a minha relação com a minha mãe. Eu passei a vê-la de forma mais crítica, e também mais humana. Eu passei a valorizar mais a minha mãe, embora essa valorização tenha uma grande carga paradoxal, pois é admiração calcada em sacrifícios que ela não deveria ter feito.
Minha mãe ficou órfã de mãe por volta dos 6 anos de idade, no início dos anos 70. O pai, então, a mandou ir morar com uma cunhada, irmã da minha falecida avó — que morreu de leucemia ao dar à luz o sexto filho. Minha mãe e uma tia, mais jovem do que minha mãe, passaram a morar na fazenda dos tios, no interior de São Paulo, num distrito de Itapeva, no sudoeste do estado, chamado Guarizinho. E ali se iniciou uma história comum a tantas meninas brasileiras e além.
Minha mãe trabalhava em minas de carvão. E fazia o serviço doméstico. Eu me lembro de ela dizer que uma das imagens e lembranças mais bonitas de sua infância era o clarão que as chamas dos fornos faziam quando eram abertos, o que me provocou imensa tristeza, pois era uma memória associada a um trabalho que ela não deveria estar fazendo.
E de dizer sempre que sua tia era capaz de esfregar-lhe o rosto na privada e fazê-la limpar novamente caso a limpeza não estivesse a contento. Ela acordava de madrugada para fazer comida para os “camaradas”, os homens que trabalhavam na fazenda, e cozinhava em cima de um banquinho, pois mal alcançava o fogão a lenha.
Não brincava, não ia à escola, não recebia visitas, não tinha afeto, nunca foi pega no colo. Não foi criança. Não ia ao dentista e a instrução da tia era para que todos os dentes das crianças que estivessem doendo fossem arrancados, assim não precisava pagar pelo serviço profissional. Por ironia ou graça da vida, minha irmã em breve se formará dentista.
Quando finalmente conseguiu fugir do lugar, voltou para a cidade e foi trabalhar na casa de um casal conhecido. A patroa implicava com suas roupas, a fazia comer na cozinha e a impedia de ficar perto do patrão, pois ela não podia ficar no mesmo recinto em que ele estivesse. A patroa a seguia de perto.
Cansada de tudo aquilo, arranjou o segundo emprego; começou como babá e dormia na casa da família. Nem tinha o próprio quarto, pois dormia com as crianças. Nada de privacidade, de individualidade. Um dia fez a comida e os patrões gostaram. Passou a cozinhar e a limpar também, ganhando um pouco mais. Nunca teve registro assinado em carteira, mas sempre disse que era tratada como se fosse da família pelos segundos empregadores.
Em 1988, eu nasci e minha mãe deixou de trabalhar fora de casa, em casa de “família”.
Durante muito tempo eu achava estranho e às vezes irritante o fato de minha mãe gostar tanto de brinquedos. Ela cuidava dos nossos com o maior zelo. Às vezes mal podíamos brincar com eles, pois ficavam em cima do guarda-roupa apenas para serem apreciados. Cuidava com bastante zelo das minhas bonecas (as quais eu não apreciava muito), em especial o “Bonecão da Estrela” que eu havia ganhado em um aniversário, comprado com muito custo. Eu não entendia esse gosto da minha mãe por brinquedos, achava estranho, vergonhoso. Minha mãe, já adulta, gostar de brinquedo desse jeito? Nunca havia parado pra pensar que ela não teve sequer uma boneca de pano.
Também ficava brava por minha mãe não ter voltado a estudar e não ter insistido com meu pai quando ele disse que não havia necessidade. Eu achava interessante a vida do meu pai, o fato de ele não perder tempo com picuinha de criança ou com limpeza, de ler jornais toda noite, de entender de futebol e política. Minha mãe passava o dia limpando, não gostava de ler, adorava novela e era extremamente grata à tia que a humilhou, espancou e lhe tirou da escola. Aquilo me irritava e constrangia. “Ela me ensinou tudo o que eu sei”, ela dizia.
Eu me indignava com o que parecia uma resignação, eu, que sempre fiz questão de não calar nada, e dizia que não seria daquele jeito, resignada com o que a vida me trouxesse. Eu queria que minha mãe se levantasse, e gritasse, e tivesse uma outra vida.
Também me irritava tanta preocupação com limpeza e com a aparência, com o cuidar do corpo, estar sempre apresentável para os outros.
Aí eu me tornei feminista. No início, por volta dos 14 anos, uma feminista que resumia o movimento a salários iguais, acesso a profissões historicamente associadas aos homens e mais participação política. Eu continuava achando que mulheres, como minha mãe, que ficavam em casa, eram preguiçosas, pouco esforçadas e até mesmo exploradoras dos maridos, pobres coitados. Não via aquilo como trabalho. Não era uma vida interessante que uma menina que crescia nos anos 2000 deveria almejar, após tanta luta nas décadas anteriores.
Eu queria a vida das mulheres que eu aprendera a admirar por estudarem e trabalharem, e irem às ruas, intelectualizadas, politizadas.
Na minha infância, tínhamos acesso a poucas coisas. Brinquedos caros eram raros. Os marcantes dados por meu pai — na minha cabeça, quem me dava tudo era meu pai — foram o “Bonecão” e uma caixa de Lego. Eu queria muito frequentar escola particular, mas não havia qualquer condição, e eu me irritava. Tirar fotografia era coisa rara, pois revelar os filmes custava uma nota. E eu me perguntava por que minha mãe não “trabalhava” para que a gente tivesse uma vida melhor e com mais bens materiais.
Por mais que nós nos relacionássemos com pessoas como nós, com a mesma trajetória e mentalidade, de classe média baixa, as mães de minhas amigas tinham uma profissão — bancárias, comerciantes, enfermeiras, secretárias, professoras. A minha não, mas eu não tocava no assunto. Uma vez até menti que a minha era bancária, porque achava o termo bonito e porque não queria dizer que minha mãe “não fazia nada”, como sempre ouvi dizer em relação às mães que não trabalhavam “fora”. Ela também não gostava que mencionássemos que não terminou o ensino fundamental e eu nunca dizia que isso não era uma vergonha e que ela não tinha culpa.
Por muito tempo eu fui violenta, ingrata e arrogante com minha mãe, cheia de mim porque eu seria diferente, eu me esforçaria, iria para a escola e para a faculdade, eu faria diferente, eu leria livros e não ficaria dentro de casa apartando briga de filho e me preocupando se há vestígio de pó nos móveis.
Mas, por meio de muita porrada e também de amor de pessoas ao meu redor e até estranhas, o meu feminismo passou a ver além de salários iguais e acesso a profissões “masculinas”. Meu feminismo passou a considerar questões de classe e a ver a forma desvalorizada com a qual o serviço doméstico em casa e em casa dos outros é tratado. Aquele serviço que não é produtivo, que não tem valor. A trajetória de tantas meninas que são “dadas” para famílias em troca de comida e uma cama. E a questão racial por trás dessas trajetórias, num país onde o trabalho doméstico é herdeiro direto da mentalidade escravocrata e o quartinho de empregada é a nova senzala.
E eu passei a ver a minha mãe como a mulher forte que ela é, dona de uma resiliência, um humor, uma serenidade e uma inteligência ímpares, simples, pragmática, direta, um conhecimento e um modo de ser que não está nos livros que eu estudei, porque o conhecimento das mulheres nunca foi valorizado, porque trabalho de mãe não é trabalho.
Passei a vê-la como a pessoa sobre quem todos nós nos apoiamos e que permitiu ao meu pai trabalhar, ler jornal, debater política e ver futebol, meu pai, que deu tudo de si pelos filhos, mas que nada seria sem aquele trabalho invisível de minha mãe. A mim ser jornalista, mestranda em estudos de gênero, futura advogada. Um trabalho invisível, diário e desvalorizado que permitiu a outras mulheres, naquela época suas patroas, e agora eu, ter uma profissão e ir além do espaço doméstico que eu sempre rejeitei.
Mas eu não queria que fosse assim, pois meu objetivo não é, em si, louvar os sacrifícios de minha mãe. Nenhuma mulher deveria se sacrificar assim.
A trajetória de menina vítima de trabalho infantil, sem direito a escola, afeto, brinquedo e saúde, mesmo quando superada, não é motivo de orgulho em si, porque nenhuma pessoa deveria ser submetida a isso. A mentalidade meritocrática, de superação e perseverança esconde uma estrutura machista, elitista e racista que nos impede de ver que não superaremos esse cenário individualmente, com poucas histórias a serem contadas no Globo Repórter, e que darão a falsa impressão aos que estão no andar de cima de que, se fulano tem força de vontade, fulano consegue, e de que não há dívidas históricas a serem pagas a mulheres, negros, indígenas.
Por outro lado, essas histórias existiram e ainda existem. Vão existir por muito tempo. E elas precisam ser levadas em conta pelo feminismo. Elas precisam ser visibilizadas. Não adianta debater feminismo na academia e se esquecer de que há mulheres sacrificando suas vidas, seu tempo, lazer e a convivência com seus próprios filhos para que outras mulheres se libertem, seja sua mãe ou sua “empregada”. A libertação não será individual.
No fim, o que queria dizer é que o feminismo mudou minha forma de me relacionar com minha mãe, mas que foi preciso que esse feminismo mudasse a si mesmo antes de tudo. Que ele se tornasse interseccional. Inclusive, que ele fizesse o caminho de volta pra casa, que se voltasse um pouco para o espaço doméstico, quando durante toda a sua história o que ele queria era ir para o espaço público. Minha mãe não foi uma mulher que precisou ficar longe enquanto eu crescia, caso de milhares de outras, cuidando dos filhos dos outros. Mas ela sacrificou muita coisa por outras pessoas e também por mim e durante parte da minha militância ela ficou esquecida.
Meu objetivo aqui não é apontar caminhos, nem em uma direção nem em outra. Não é louvar de forma acrítica o trabalho doméstico e a maternagem como atividades primordiais da mulher, como se esse sacrifício fosse natural e maravilhoso, nem dizer que o ideal é que as mulheres tenham profissão e que a mulher que fica em casa é escravizada e vítima sempre. Os tempos mudaram. Há mudanças e fissuras e há permanências, estruturas. O que quero dizer é que nem todas já podem escolher, e que precisamos visibilizar o trabalho doméstico dentro do feminismo, sem demonizá-lo nem louvá-lo.
Precisamos falar sobre trabalho doméstico coletivizado, seja o cuidado com as crianças, seja com a alimentação e a limpeza. Precisamos falar sobre trabalho doméstico e questões raciais. Sobre a divisão igualitária de tarefas entre homens e mulheres, pais e mães, e além, porque a família não pode dar conta de tudo. Sobre qual mulher avança e qual mulher fica pra trás. Sobre a feminista e suas relações com sua mãe e com a trabalhadora doméstica que trabalha em sua casa.
Que o feminismo permita às mulheres amar a admirar as mulheres ao seu redor como eu aprendi a amar e a admirar minha mãe e mulheres como minha mãe, em toda a sua complexidade e simplicidade, força e beleza. E, mais do que isso, a serem justas umas com as outras e a lutar pelo direito de todas, porque o feminismo é afeto, mas é mais do que isso: é a busca e a realização de direitos e de justiça.
*Vanessa Fogaça Prateano é jornalista, mestranda em Estudos de Gênero, estudante de Direito e feminista.