Como um festival que celebra a cultura negra me ensinou o que é pertencimento

Resistimos porque estamos nos amando e subvertendo a noção de belo que nos foi dada.

O Afropunk conecta negros de todo o mundo por meio de suas produções na música, arte, cinema, fotografia, comportamento e moda.

 

eu perdi um continente inteiro

um continente inteiro da minha memória.

diferentes de todos os outros hifenizados americanos

meu hífen é feito de sangue. fezes. osso.

quando África diz oi

minha boca é um coração partido.

porque não tenho nada na minha língua

para respondê-la

eu não sei como dizer oi para minha mãe.”

 

Por Neomisia Silvestre, do HuffPost Brasil 

Descobri recentemente os escritos da americana Nayyirah Waheed, que publica, em seu Instagram, poemas concisos mas tão profundos que nos tocam e alertam de imediato para questões de autoestima, identidade e ancestralidade. Suas entrelinhas e sutilezas me provocam a pensar num questionamento atual: pertencimento.

Muito se fala da importância de conhecermos nossas origens e nos sentirmos conectados por meio de determinada cultura, tradição, povo. Mas como pensar em origem, descendência e herança quando se trata de uma população marcada por um processo brutal de escravidão que rompe com qualquer memória de pertencimento e preservação por parte de gerações futuras?

Penso que nós, afro-brasileiros, movidos por um desejo de fazer parte, é que tomamos frente e criamos iniciativas em diversas áreas de atuação. Elas provocam e promovem o (re)encontro e repensam essa ausência imposta do nós, que vai desde a não representatividade ao projeto de genocídio da população negra.

São coletivos, frentes negras, movimentos a fim de criar possíveis caminhos na diáspora para dialogar – nem sempre com sucesso – de forma empática sobre pautas que nos são caras: existir do modo como somos e queremos é a principal delas.

Não diferente, o Afropunk também nasce nesse contexto da falta, da não visibilidade e do não pertencimento. O maior festival de música negra do mundo, presente hoje em Paris, Londres, Brooklyn, Atlanta e Joanesburgo, foi criado em 2005 por jovens negros que não se sentiam representados na cena punk rock americana.

A partir do documentário Afropunk, produzido por Matthew Morgan e dirigido por James Spooner, em 2003, o movimento ganhou visibilidade e passou a ser um festival anual. É, também, uma plataforma alternativa que conecta negros de todo o mundo por meio de suas produções na música, arte, cinema, fotografia, comportamento e moda.

A primeira edição do Afropunk Fest aconteceu no Brooklyn Academy of Music (BAM), em Nova York. Foi organizado de forma independente, com shows, exibição de filmes e um público ávido por partilhar suas paixões e inquietações, como a valorização da identidade negra e o racismo presente na sociedade americana. Ao longo dos anos, o festival levou nomes como Public Enemy, Mos Def, Blitz The Ambassador, Macy Gray, Erykah Badu e a rapper brasileira Karol Conka para seus palcos. Peso!

No entanto, para além de um festival com artistas negros e para um público majoritariamente negro, o Afropunk tem se consolidado como umas das principais referências contemporâneas quando se pensa em estética negra, empoderamento e movimento anti-racismo.

Segundo Lou Constant-Desportes, editor-chefe do afropunk.com, a hashtag “We The People”, usada nas últimas edições de Paris e Londres, é uma maneira de dizer que nos dedicamos a lutar juntos por nossos valores e nossa liberdade. Juntamos a comunidade para celebrar a nós mesmos e nossas culturas, ao mesmo tempo em que estamos enfrentando injustiça e opressão.

Lou, que recentemente esteve no Brasil, diz se sentir muito inspirado ao ver como jovens criativos e ativistas afro-brasileiros estão se organizando para criar plataformas alternativas com suas próprias mãos. “Se não têm dinheiro ou acesso a plataformas mainstream, encontram outras maneiras de fazer acontecer, criar e promover seus próprios eventos, sua própria arte, lutando pelo que acreditam. Isso é o que chamamos de ‘D.I.Y. – Do It Yourself’ (Faça você mesmo) e que é muito importante para o Afropunk”.

A Cool Hunter e blogueira baiana Magá Moura (foto acima), já participou de edições anteriores do festival e, no Brasil, é referência do chamado “close”. Para ela, de uns anos pra cá, dada às manifestações de ativismo, protagonismo e espaços que estão aos poucos sendo ocupados por pessoas negras, nós já estamos nesse movimento.

Essa parada do close, de estética, de dar bafo não significa só isso pra gente, mulheres e homens negros falando. O lugar em que estamos é de empoderamento, é de se sentir belo, é de se sentir representado e visto. Quanto tempo a gente passou sem ser visto? E o Afropunk, mesmo não acontecendo no Brasil, está fortalecendo isso e trazendo ainda mais esse poder e essa inspiração pra gente se sentir lindo, usar o cabelo que quiser, usar o nosso cabelo natural ou artificial ou colorido. É pra gente se expressar da forma que se sentir mais tranquilo e mais você mesmo.

No Brasil, em que a população negra é maioria, paradoxalmente essa “leitura” do corpo negro ainda gera incontáveis violências físicas e psicológicas, de cotidianas chacotas munidas de inferioridade e de preconceito no âmbito escolar e profissional. Uma leitura que é fruto do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, que atinge do black power colorido empoderadão ao adolescente negro periférico.

Ainda assim, vivemos um período em que muitos desses corpos têm despertado para a utilização de sua estética e autoestima como corpo-protesto. Seja por meio do cabelo ou de signos da cultura negra como suporte de enfrentamento ao racismo e/ou forma de se reconectar às origens; como nossos ancestrais, que carregaram em seus corpos a memória de suas danças, rituais e tradições com o objetivo de preservar sua identidade e cultura.

Assim como Magá, o fotógrafo português e diretor criativo Abdel Tavares é uma figura colorida e que não passa despercebido. Seu chapéu vermelho é uma assinatura, uma marca que ele carrega desde que comprou o primeiro em uma loja de carnaval, em Lisboa. “Para mim, os olhares não fazem diferença, porque visto umas coisas diferentes mesmo. Para algumas pessoas, o turbante, por exemplo, continua a ser alvo de racismo. E acho que temos que ser diferentes mesmo, mostrar a nossa cultura, porque nas diferenças é que encontramos todas as cores”.

Para ele, criador do blog Black Fashion Stars, dedicado à cultura africana e pessoas negras de todo o mundo, o Afropunk é um evento que representa, sobretudo, a liberdade e a celebração.

Liberdade que se dá no modo como esses corpos negros estão rompendo com padrões e criando possíveis futuros. Sob a ótica da própria identidade e de sua cultura, reinventam outra realidade no hoje e no amanhã. Afrofuturismo. Uma celebração da negritude que respeita suas individualidades, atitudes e subjetividades fortalecidas pelo poder coletivo. Close certo.

We The People temos a vontade de curar as divisões que ameaçam reduzir nossos sonhos às cinzas. Acreditamos em ressuscitar o poder criativo de nossa diversidade. Nós abrimos nossos corações e mentes, e dançamos ao ritmo de um novo futuro. Juntos.Manifesto #wethepeople

A designer e hair stylist inglesa Mariette Immaculate viaja o mundo todo em busca de design, música, moda e estilos de vida. “Gosto desse evento porque posso ver muitas criações. É bom ter um espaço assim, em que podemos nos expressar juntos, estarmos juntos, fazer amizade. O Afropunk é uma comunidade e, aqui, se pode apreciar o que tantas pessoas têm feito, expressado. É bom ver que o movimento cresce e que você pode encontrar pessoas criativas de várias cidades do mundo. É importante que os negros tenham inspirações de outros negros, perceber as coisas que têm a ver com ele”.

A identificação que a juventude negra brasileira tem hoje com o evento serve de encorajamento e conexão com o que se tem produzido mundo afora. E isso se dá pelo modo como nós, negros, estamos nos amando e subvertendo a noção de belo que nos foi dada.

Esse reflexo positivo resulta também em um questionamento sobre o mito de que somos um país democraticamente racial, no modo como #SomosTodosHumanos quer deslegitimar o #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam). Quando não se trata de disputa de quem é mais importante, mas de reconhecer e atentar para o fato de que a cada dez pessoas assassinadas no Brasil, sete são negras.

“O Brasil é um dos países que mais segue nosso conteúdo editorial em redes sociais. Então, sabemos que existe uma grande comunidade esperando por nós e nos sentimos muito conectados a sua criatividade e suas lutas”, diz Lou, que não confirma data, mas adianta que sua equipe tem trabalhado para realizar muito em breve uma edição Afropunk por nossas bandas.

Mas deixo aqui a provocação do quanto a equação privilégio branco + “eu amo a cultura negra” resultaria em um público de maioria não-negro num festival como este por aqui. Enquanto este dia não chega, as próximas edições acontecem em Atlanta (14 e 15 de outubro) e Joanesburgo (30 e 31 de dezembro).

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