Grupos, diretores e autores ampliam representatividade e buscam mais participação no mercado
Por Luiz Felipe Reis Do O Globo
Entre ações de combate ao racismo, discussões sobre colorismo e clamores por representatividade, visibilidade e participação no mercado, a cena teatral carioca começa a mudar de cor. No palco e na plateia. Espetáculos liderados por artistas negros têm tido suas salas lotadas, muitas vezes com 85% do público também negro. O que surgiu nos últimos anos e agora salta aos olhos é um movimento de empoderamento cultural comandado por toda uma geração de grupos, autores, diretores, produtores, técnicos e empreendedores culturais negros.
A cena também avança em visibilidade, com mais peças em festivais, mostras e na programação regular dos teatros do Centro e da Zona Sul do Rio.
O teatro negro do Rio tem longa história. E toda essa nova geração leva à frente o legado de ícones como a Companhia Negra de Revistas, o Teatro Experimental do Negro (TEN), a Cia. dos Comuns e muitos outros, como Ruth de Souza e Léa Garcia.
Há uma nova geração sim, e o que há de novo é que estamos juntos. Muitos já vinham trabalhando individualmente, mas com a crise do teatro no Rio e sabendo que seríamos os primeiros a serem preteridos, resolvemo nos unir — diz Rodrigo França, que escreveu e dirigiu espetáculos como “O Pequeno Príncipe preto”, prestes a voltar aos palcos. — Em vez de esperar convites, criamos nossa própria cena, idealizando, produzindo e assinando peças e mostras. Somos inquietos com a representatividade, visibilidade, narrativa e empregabilidade. A grande diferença desta geração talvez seja essa: em vez de falar mal do sistema que segrega, criamos nosso sistema.
E para difundi-lo, claro, a internet é o caminho:
‘Em vez de esperar convites, criamos nossa própria cena, idealizando, produzindo e assinando peças e mostras. Somos inquietos com a representatividade, visibilidade, narrativa e empregabilidade.’
— A ideia é levar adiante a experiência dos que vieram antes de nós e abrir espaço utilziando novas ferramentas, como a internet, que nos ajuda a agrupar, incluir e fortalecer ações não só no Rio, mas de todo o país — diz o ator e autor Licínio Januário, do Coletivo Preto.
EM OUTRA PROPORÇÃO
Entre as ações coletivas destacam-se a Segunda Black, produzida por Paulo Mattos, que concorre ao Prêmio Shell 2018 na categoria inovação e realiza, em outubro, a sua segunda edição.
— A luta é antiga. O que é novo é a proporção desse movimento — diz Sol Miranda, do Grupo Emú. — Se estamos num grande momento é porque o que acontece nas artes é consequência de uma rede maior de movimentos sociais e políticos que, há anos, têm lutado e ampliado o número de pessoas negras em espaços de liderança. Tudo isso faz com que estejamos em maior número nos espaços culturais da cidade.
Conheça os jovens criadores que impulsionam o teatro preto pela cidade.
CIA.PIONEIRA SE AFIRMOU SOBRE RACISMO NOS ANOS 1920
A história do teatro negro no Brasil carece de visibilidade, mas sua tradição é quase centenária. Ela começa em 31 de julho de 1926, com a estreia, no Cine-Teatro Rialto, do espetáculo “Tudo preto” — primeiro da Companhia Negra de Revistas. Inspirada na parisiense Revue Nègre, cuja grande estrela era a americana Josephine Baker, a companhia brasileira foi a primeira do país formada exclusivamente por negros e mulatos, como lembra o escritor e jornalista Lira Neto em seu livro “Uma história do samba” (Companhia das Letras).
A companhia foi fundada pelo baiano João Cândido Ferreira, nome artístico De Chocolat (sucesso nos palcos cariocas como cantor, ator, dançarino e produtor), em sociedade com o cenografista português Jaime Silva. E tinha em seus quadros músicos como Donga e Pixinguinha. Foi o autor de “Carinhoso”, aliás, quem regeu a orquestra em “Tudo preto” — superprodução que contava com 32 cenários.
A equipe incluía o violonista e pistonista Sebastião Cirino (ex-menino de rua e ex-detento da Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande), além de muitos artistas em início de carreira ou que nunca haviam subido ao palco. Os mais experientes assumiam os principais papéis. Como de costume no teatro de revista, mulheres bonitas compunham a cena — nesse caso, 20 “black girls genuinamente brasileiras”, como era descrito no programa.
ATAQUES RACISTAS
A imprensa da época recebeu com certa desconfiança a notícia de uma companhia de teatro negra. Em seu livro, Lira Neto relata inclusive uma piada racista da revista satírica “O Malho”, que sugeriu a instalação de “câmaras inodoriantes” para receber o espetáculo. Após a estreia, “Tudo preto” foi saudada com críticas positivas — que não deixavam de mencionar, porém, a desconfiança inicial, em ressalvas como “se houve quem fosse ontem ao Rialto pensando que ia ter larga oportunidade de chacotear” ou “contra a expectativa geral”.
Empolgados com o sucesso, De Chocolat e Jaime Silva prepararam outro espetáculo, “Preto e branco”. Sem o mesmo apuro e mal ensaiado, ele provocou uma crise que culminou em briga entre os sócios. O fracasso reacendeu o racismo. Jaime ficou com a companhia, enquanto De Chocolat organizou a Ba-Ta-Clan Preta. Já em nova fase, a Companhia Negra de Revistas apresentou uma jovem contratação, um talentoso menino de 11 anos, Sebastião Prata, apelidado de Pequeno Otelo — e que depois ficaria famoso como Grande Otelo.