Crianças descartáveis?

Em tempos de pandemia, existem questões que se tornam emergentes: Quem são aqueles que podemos suportar a perda? Porque, ainda, são consideradas descartáveis? São questões assustadoras, mas reais na atual conjuntura de discussões acerca da volta as aulas.

Sei que são só palavras que agora derramo sobre o papel, mas elas estão repletas de ideias que tento oferecer como forma de propor um diálogo. Vivemos momentos difíceis, tempos doentes, que podem ser oportunidade ou, simplesmente, um momento inútil, que devemos apagar da memória. Eu sempre acredito na possibilidade da aprendizagem, em repensar rotas, em construir novos caminhos possíveis.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, provoca-nos a pensar. Ele fala sobre relações liquidas, sobre a modernidade que expressa uma necessidade obsessiva com a modernização, e isso ocorrendo de forma viciante e compulsiva. Tudo fica “velho” e “obsoleto” muito rápido. Modernização então significa que temos que transformar tudo em algo melhor, pois não aceitamos mais as coisas como elas são. Nada é feito para durar muito tempo. Nem as relações.

Relações líquidas, em Bauman, segue esse sentido e nossas reflexões também. Precisamos pegar algo que era sólido, fundi-lo para torna-lo líquido e moldá-lo novamente. Queremos impedir que as coisas sejam fixas, que sejam tão sólidas que não possam mudar. Com isso, o tempo se torna veloz. Porque acreditamos que nada é para sempre, pois existem novas oportunidades e as antigas devem ser descartadas. Tudo sempre podendo ser substituído pelo mais moderno. E, dessa forma, nossas relações pessoais e, até a ideia que fazemos de nós mesmos, muda de uma hora para a outra. Somos educados para sermos transformáveis, ou como dizem, flexíveis.

Mas, como isso se relaciona a criança e a volta as aulas?

Na contemporaneidade, podemos compreender que os vínculos familiares tem adquirido novos formatos. O sucesso das pessoas que compõem uma família pode ser medido pela sua capacidade de se desvincular de tudo que possa ser um impeditivo para a sua mudança, que crie laços que o prendam. Precisamos ser livres, sem raízes. Dentro das famílias, crianças bem pequenas são incentivadas a “se virar sozinhas”. Tornar crianças autônomas é essencial para o seu desenvolvimento, mas devemos estar atentos para o perigo que se esconde ao confundirmos dar autonomia com romper os vínculos de cuidado, carinho e proteção tão essenciais na infância.

Crianças precisam de laços afetivos e de cuidados constante, precisam se sentir seguras em relacionamentos sólidos com seus responsáveis, mas como nós adultos podemos garantir isso, se estamos tornando nossas relações descartáveis?

As relações passam a ser frágeis, com prazo de validade, pois devemos nos manter sempre flexíveis. Para atender a essa demanda, apressamos o crescimento da criança, diminuindo a sua dependência, enquanto a tornamos capaz de se governar. Ela é essencial em um determinado momento, mas logo se torna um impeditivo para a nossa flexibilidade. E o que devemos fazer com elas?

Escola, cursos, aulas, entre outras atividades carregam a desculpa de que estamos oportunizando a criança, desde muito cedo, acesso a uma grande variedade de conteúdos para que, na fase adulta, possa competir pelas melhores vagas no mercado de trabalho. Mas, na verdade, estamos impedindo que a criança tenha tempo para o ócio, para o brincar, para o fazer “nada”, pois isso aumenta a nossa flexibilidade de tempo. Precisamos rapidamente nos desconectar das necessidades da criança para atender as nossas novas demandas. A criança que foi essencial em um momento, em outro se torna um estranho a própria família.

A criança não passa de uma mera mercadoria, descartável como qualquer outra. E diante dessa realidade, a volta as aulas é possível. Como o copo descartável, a criança também pode ser jogada fora, pois a sua utilidade chegara ao fim.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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