Crianças e adolescentes pretos têm duas vezes mais chances de serem abordados pela polícia do que brancos, diz pesquisa da USP

Enviado por / FonteG1, por Camila Quaresma

Levantamento é do Núcleo de Estudos da Violência e acompanhou 800 pessoas por quatro anos; em todos os cenários, pretos tiveram mais contato com a polícia. Questionada, a SSP afirmou, em nota, que 'abordagem policial obedece aos parâmetros técnicos' e que 'revisou protocolos de abordagens'.

Uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da USP, apontou que crianças e adolescentes pretos de 11 a 14 anos têm duas vezes mais chance de serem revistados por policiais na cidade de São Paulo do que os brancos.

O levantamento acompanhou por quatro anos, de 2016 a 2019, 800 crianças e adolescentes, tanto do gênero feminino quanto do masculino, matriculados em 120 escolas públicas e privadas da capital. Todos os entrevistados responderam 30 questões por ano e tinham a mesma idade: nasceram em 2005 estavam com 11 anos em 2016.

No total, 21,51% das crianças que se declararam pretas afirmaram ter sido revistadas pela polícia no primeiro ano da pesquisa, quando todos os 800 entrevistados tinham 11 anos e responderam o questionário. Entre os que se dizem brancos, apenas 8,33% disseram o mesmo, e 9,74% dos pardos. Os percentuais sofrem algumas alterações nos demais anos do levantamento, mas o padrão permanece, com pretos liderando a estatística (confira abaixo nos gráficos).

Quando questionados sobre abordagem policial, os números mostram duas vezes mais interação com pretos. Em 2016, com todos os 800 participantes, 27,47% dos que se declararam pretos foram parados pela polícia, ante 18,83% dos brancos e 12,84% dos pardos.

“Os brancos são muito menos parados [pela polícia] do que os pretos. O relatório chama a atenção para um debate fundamental de longo prazo, que é o da abordagem policial desproporcional por raça”, aponta Renan Theodoro, um dos organizadores do relatório, sociólogo e pesquisador da USP.

“A gente sabe que a polícia tem abordagens diferentes a depender de questões como raça e cor, e isso é entrecruzado com a condição socioeconômica. É um estranhamento da nossa parte saber que a polícia chegaria a parar na rua uma criança de 10 a 11 anos”, afirma.

Ou seja, os dados mantêm um padrão quando se trata de ser parado pela polícia e revistado. A porcentagem de adolescentes pretos que afirmaram passar por situações como essas é duas vezes maior do que a quantidade que participou da pesquisa _cerca de 11%.

“Qual é a pegada do estudo? Qualquer cidadão, independentemente de onde mora, a que se dedica, da cor da pele, tem que ter a mesma chance de ser parado pela polícia. É mais provável que a polícia pare meninos pretos do que brancos _em uma proporção sendo até o dobro. Não era para aparecer 20 respostas de meninos pretos que foram parados e, sim, só 10, se não houvesse viés. Estamos informando que há essa relação estatística. A conclusão do teste é essa: se não houvesse viés, deveria ser respeitada a proporção amostral”, destaca.

“Não é que a maioria das pessoas paradas são pretas. É que, enquanto um menino branco pode ser parado, sim ou não, a chance de um menino preto é duas vezes maior. Não é a quantidade de pessoas que estão sendo paradas que importa nesse estudo, é a proporção delas em relação ao que elas representam na sociedade”, questiona o pesquisador.

Questionada, a SSP afirmou, em nota, que a “a abordagem policial obedece aos parâmetros técnicos disciplinados por Lei e são padronizados por meio dos chamados Procedimentos Operacionais Padrão. Ao longo dos anos, a Polícia Militar tem buscado evoluir e aprimorar sua atuação de maneira contínua”.

A pasta ainda citou a criação da Comissão de Mitigação e Não Conformidades, responsável por “analisar todas as ocorrências de mortes por intervenção policial” e afirmou que “revisou protocolos de abordagens” (confira abaixo a nota completa).

A pesquisa

A pesquisa compara brancos, pretos e pardos de acordo com o porcentual desses adolescentes na cidade, ou seja, eles não foram divididos igualmente porque em São Paulo há mais pessoas que se declaram brancas do que pretas. Mesmo com um porcentual maior de brancos, os pretos ainda têm mais chances de ser abordados.

O porcentual dividido entre raças na pesquisa é o mesmo da população de SP:

  • 47,13% brancos
  • 11,50% pretos
  • 27,25% pardos
  • 5,13% indígenas
  • 2,75% asiáticos
  • 6,25% não souberam ou não quiseram declarar

O levantamento “A experiência precoce e racializada com a polícia: contatos de adolescentes com as abordagens, o uso abusivo da força e a violência policial no município de São Paulo”, foi dividida em três categorias: contato indireto (pessoas que viram uma certa ação acontecer); contato direto (quando aconteceu com os próprios entrevistados); e vitimização causada pela polícia, ou seja, quando jovens são xingados ou agredidos por oficiais.

Para abordar alguém é preciso que exista um contexto criminal: ou a “fundada suspeita” ou que a pessoa tenha uma “atitude suspeita”, mas, segundo a pesquisa, não há nos manuais da Polícia Militar uma definição sobre o que é suspeito, pois isso cabe ao policial decidir.

“Essa indefinição amplia demais o poder discricionário do policial e abre espaço para ações baseadas em estereótipos ou preconceitos”, afirmam os pesquisadores. O levantamento pontua um cenário em que mostra que, quando é criada imagem de uma pessoa suspeita, ela é preta.

Revistados pela polícia

2016 – 11 anos – primeiro ano da pesquisa

  • Pretos – de 11 entrevistados, 24,35% foram abordados
  • Brancos – de 47 entrevistados, 43,58% foram abordados
  • Pardos – de 27 entrevistados, 19,23% foram abordados

2019 – 14 anos – último ano da pesquisa

  • Pretos – de 11 entrevistados, 22,97% foram abordados
  • Brancos – de 44 entrevistados, 35,13% foram abordados
  • Pardos – de 33 entrevistados, 31,08% foram abordados

A gravidade de ações como agressões verbais pela polícia foram consideradas separadamente por se tratar de ações ilegais. Elas foram adicionadas nos últimos dois anos de estudo, em 2018 e 2019.

Xingado por polícia

2018

  • Pretos – de 10 entrevistados, 20% foram xingados
  • Brancos – de 43 entrevistados, 46,66% foram xingados

Um parte pequena dos jovens afirmou que foi agredida pelos policiais – um cenário que foi analisado apenas nos últimos dois anos de estudo. Em 2018, 1,10% dos jovens entrevistados respondeu que foi agredido e,- em 2019, 1,42%. No entanto, mesmo com poucos adolescentes respondendo, os negros ainda assim foram mais agredidos do que os brancos.

Agredidos pela polícia

2018

  • Pretos – de 10,08 entrevistados, 25% afirmaram ter sido agredidos
  • Brancos – de 43,92 entrevistados, 25% afirmaram ter sido agredidos

2019

  • Pretos – de 11,25 entrevistados, 40% afirmam ter sido agredidos
  • Brancos – de 44,44 entrevistados, 10% afirmam ter sido agredidos

Mortes de adolescentes por PMs

A pesquisa mostra um cenário de abordagem por policiais no entanto, se considerarmos a mortalidade de adolescentes em intervenções policiais, em 2022, São Paulo apresentou redução no indicador, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Unicef. O número caiu 80% no estado no ano passado, quando comparado a anos anteriores, o menor índice desde 2001.

A queda se deu após a implementação de câmeras nos uniformes dos policiais militares.

  • Em 2017, foram 171 mortes provocadas por intervenções de policiais militares (MDIP) em serviço de jovens entre 15 e 19 anos;
  • Em 2021, ano seguinte à implementação das câmeras, foram 42 mortes (-75%);
  • Já em 2022, foram registradas 34 mortes, o menor número da série histórica (redução de 80,1%, se comparado a 2017) compilada pelo Ministério Público de São Paulo no relatório Letalidade Policial em Foco, único que traz dados por faixa etária.

O que diz a Secretaria da Segurança Pública

“A Polícia Militar esclarece que a abordagem policial obedece aos parâmetros técnicos disciplinados por Lei e são padronizados por meio dos chamados Procedimentos Operacionais Padrão. Ao longo dos anos, a Polícia Militar tem buscado evoluir e aprimorar sua atuação de maneira contínua.

A PM criou a Divisão de Cidadania e Dignidade Humana e revisou protocolos de abordagens. Nas escolas de formação da PM, todos os agentes estudam ações antirracistas nas disciplinas Africanidades e Direitos Humanos – Ações Afirmativas. A PM também tem participação acadêmica no grupo de trabalho “Movimento Antirracista – Segurança do Futuro”, sob coordenação da Universidade Zumbi dos Palmares.

Foram implementadas ações para promover a segurança e a integridade da população e dos policiais, como o uso de equipamentos de menor potencial ofensivo, por exemplo, e de câmeras corporais que registram a ação. Uma Comissão de Mitigação e Não Conformidades analisa todas as ocorrências de mortes por intervenção policial e se dedica a ajustar procedimentos e revisar treinamentos.

A disciplina também foi reforçada com a implementação de um sistema de compliance que se tornou referência no serviço público e promove a integridade, a ética e o cumprimento de normas e regulamentos na força policial.

A Polícia Civil, por meio da Academia de Polícia Civil “Dr. Coriolano Nogueira Cobra” também conta com diversas disciplinas empregadas pela Formação Técnico-Profissional ou de Capacitação e Formação Continuada, cujo objetivo é estabelecer diretrizes e parâmetros objetivos, racionais e legais, sem qualquer tipo de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, origem, onde o policial civil, no desempenho da sua atividade, possa atuar em conformidade e respeito a princípios basilares do Estado Democrático de Direito, sobretudo o da dignidade da pessoa humana.”

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