Criminalizar o funk é expressão de racismo da sociedade brasileira

O investimento público em arte é uma forma barata e simples de difundir e trazer respeito internacional para a cultura de um país. Você pode até não gostar dos Estados Unidos, mas com certeza respeita a trajetória do rap e paga por (ou conhece quem paga) shows e demais produtos do hip hop.

Apesar disso, no Brasil, há perseguição e esvaziamento da cultura do funk, principalmente com a demonização do baile de favela.

Além de elevar a economia nacional, o funk tem potencial de ser um porta-voz direto das favelas e das periferias para o planeta, e de reduzir desigualdades. Esse movimento artístico permite que vidas negras sejam resgatadas de muitas ameaças do racismo estrutural e que consigam transformar suas dificuldades em arte, renda e inspiração para que novas gerações não precisem passar por dificuldades na busca por valorização.

Mesmo com o potencial do funk, uma minoria branca ainda decide qual tipo de conteúdo merece ser consumido e o que deve ser marginalizado no Brasil. Há ódio contra qualquer produção cultural que envolva negritude e que venha da favela.

As atitudes racistas se atualizam com a sociedade. Apesar de ser crime, o racismo ainda se reproduz de diversas formas, como a falta de saneamento básico, as barreiras de acesso à educação, segurança, saúde e moradia e a tentativa de impedir as manifestações artísticas da favela.

De acordo com o conceito da necropolítica, essas exclusões são formas de nos matar. Tudo isso, dentro dessa estrutura racista, será levado em consideração na tomada de decisões judiciais com a visão do homem branco.

Recentemente, um grupo de artistas de funk se tornou alvo de investigação da Polícia Civil. A instituição pediu a prisão de 14 cantores —entre eles Negão da BL, MC Poze e DJ Markinho do Jaca— que cantaram em bailes funk durante o Carnaval no Rio de Janeiro. Eles são acusados de crimes de infração de medida sanitária preventiva, epidemia e associação ao tráfico de drogas.

Se olharmos o tratamento dado em outros casos de descumprimento às regras de isolamento social, perceberemos a desigualdade do sistema policial. Em 2020, houve uma festa clandestina na casa de praia, em Trancoso, na Bahia, da cantora Elba Ramalho. No mesmo dia, uma decisão judicial havia proibido eventos festivos na região.

Em janeiro, houve aglomeração e desrespeito ao uso de máscara no show da dupla sertaneja Ícaro e Gilmar em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. De volta ao Rio de Janeiro, circularam imagens de festas clandestinas de Carnaval em bairros do Centro e da Zona Sul.

A própria família Bolsonaro é uma das que mais critica as medidas de isolamento em meio ao avanço do coronavírus. Se o crime de infração das medidas sanitárias valesse para todos, muita gente estaria neste barco, inclusive o próprio presidente. Sabemos o critério. O mesmo vale para a imputação de crime de associação ao tráfico.

Em 2019, o DJ Rennan da Penha também foi acusado e preso sem provas, condenado em segunda instância a mais de 6 anos em regime fechado e libertado somente depois de sete meses, por decisão do STF. Todo o argumento de incriminação é tendencioso.

“Falar de um preto que está subindo é fácil. Difícil é você falar de um filho de deputado que está promovendo aglomeração, festinhas e drogas”, afirmou Negão da BL à Record, no início de março.

Querem silenciar o jovem favelado, que usa o funk como ferramenta de ascensão social.

O funk tem servido como ferramenta de denúncia contra a violência policial em meio a “guerra” às drogas e a outras formas de opressão. A música “Rap do Silva” é um ótimo exemplo: “era só mais um Silva que a estrela não brilha/ ele era funkeiro, mas era pai de família.”

A música dialoga com a realidade do favelado que depois de um dia exaustivo só quer se divertir e esquecer dos problemas. Como a demanda por cuidados com a saúde mental é alta e pouco suprida entre essa parcela da população, o funk também serve como forma de lazer e de fuga da realidade dura.

Vivemos num país em que 75% dos mortos pela polícia são negros, de acordo com relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, grupo de estudos sobre violência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco.

O funk “Rap do Silva” nos mostra que, mesmo tentando viver, muitos ainda acabam tendo o mesmo fim do Silva da música. João Pedro, Ágatha, Miguel, Maria Eduarda, Amarildo, Anderson, Marielle, Emily e Rebecca… Todos são “Silva”.

Por isso, gritamos: nunca fomos só mais um Silva. O funk é porta-voz da nossa realidade e não pode ser apagado e esquecido. Pelo contrário, deveria se tornar oficialmente patrimônio cultural brasileiro, porque já ocupou todos os setores sociais.

A igualdade já deveria existir, mas nossa cultura ainda incomoda muita gente. Em 2017, uma sugestão de lei para criminalizar o funk teve 21.985 assinaturas em apoio. O projeto foi rejeitado pelo Senado.

Esse tipo de visão de que o funk atenta contra a família é preocupante porque mostra como os nossos corpos são marginalizados e objetificados. O rebolado, por exemplo, é uma expressão natural de comunicação trazida pelos povos escravizados de diversas regiões africanas.

Segundo a professora Sobonfu Somé, em “O Espírito da Intimidade”, o que entendemos como sensualidade, fortemente expressada na cultura do funk, é uma forma de comunicação com o próprio corpo e com os impulsos sexuais, criminalizados, erroneamente, por algumas correntes religiosas.

Existe toda uma arte produzida em cima do funk. Nossa cultura é rica. Aceitar o funk é compreender a sua narrativa. A luta contra a base racista que estrutura o nosso país é grande e a favela se manterá erguida para poder se orgulhar “e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”.

 

Juam Ferreira
Professor de programação e robótica, poeta, integrante do MNU (Movimento Negro Unificado), do Movimenta Caxias, do Voz da Baixada e do Quilombo Moderno

Pedro Vinícius Lobo
Integrante do Movimenta Caxias e do pré-vestibular social +NÓS

 

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