De estrelas e putas vidas

Talvez pouca coisa seja mais reveladora da hipocrisia e moralismo irresponsável de nossos tempos do que não conseguirmos admitir que mulheres trabalhadoras estejam sendo sistematicamente isoladas de decisões sobre o trabalho que exercem, silenciadas, relegadas à categoria de seres não pensantes, empurradas para a clandestinidade ou mesmo mortas em série pela máxima culpa de uma sociedade que prefere o pânico moral à sensatez.

Por , do Lugar de Mulher 

Foi isso que acabou por me mostrar Stédile no encerramento da Cúpula Social do Mercosul, da qual participei em julho último. Presentes em muitas das mesas mas somente através de citações alheias, a representatividade das prostitutas se viu mais uma vez prejudicada – era eu a única trabalhadora sexual presente. Na fala de encerramento, Stédile me surpreendeu ao citar a chacina de cinco mulheres ocorrida num bordel do Rio Grande do Norte, pedindo um minuto de silêncio. No entanto, atribuiu essas mortes ao fato de as vítimas serem negras – sem, nem de passagem, citar o fato de que essas mulheres tinham claramente outro ponto em comum: eram todas trabalhadoras sexuais.

Estando num limbo legal onde exercer nossa atividade não é crime mas tudo o que a cerca é criminoso, frequentemente não temos a quem recorrer quando ameaçadas. Por outro lado, não é segredo que nossas mortes doem menos à sociedade por que nossas vidas valem nada: há poucos dias foi descoberto um serial killer no Pará que em oito anos matou no mínimo seis mulheres – todas prostitutas. Ele diz que já não tem certeza do número, pois começou a série de assassinatos em 2007. Não surpreendentemente ninguém se interessou em investigar seriamente essas mortes durante esses anos todos, e o assassino só foi descoberto por que uma das vítimas sobreviveu e o denunciou.

É neste contexto – e é bom ressaltar que essa situação não é exclusividade brasileira – que um grupo de atrizes de sucesso, encabeçado por Emma Thompson, Meryl Streep, Kate Winslet, Anne Hathaway, Angela Bassett decide entrar em conflito com a Anistia Internacional por conta de um documento que deve ir à votação e recomenda a descriminalização e regulamentação do trabalho sexual ao redor do mundo. É particularmente interessante perceber que esta tem sido uma demanda das associações de trabalhadoras sexuais já há bastante tempo, é importante perceber que a falência do modelo sueco já está mais do que clara e a descriminalização é um mecanismo que empodera as trabalhadoras, trazendo mais controle sobre as relações de trabalho e criando mecanismos legais para que cobrem seus direitos, assim como facilitando a fiscalização e denúncia de irregularidades tais como exploração sexual de menores e outros abusos. Tudo isso que temos dito há tanto tempo é contestado por mulheres que jamais exerceram o nosso trabalho mas aparentemente sabem mais do que nós a respeito dele. Ou no mínimo são mais ouvidas!

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Num momento em que a repressão às trabalhadoras só faz aumentar, com a Argentina tendo proibido os anúncios em jornais já em 2011 e levando à votação a lei Larroque, que visa proibir anúncios em sites de internet, e a Europa se mostrando muito mais simpática a projetos abolicionistas do que me pareceria seguro enquanto trabalhadora sexual, causa-me espécie que a CATW (Coalizão contra o Tráfico de Mulheres) aponte a descriminalização do trabalho sexual como algo catastrófico. Pra quem vive o dia a dia da indústria do sexo é muito claro que ocorre o oposto, temos sido cada vez mais oprimidas por tanta “proteção” e isso sim tem sido desastroso, negando direitos e mesmo ceifando vidas.

É inegável que, enquanto escrevo esse texto, me vem uma imensa sensação de perda de tempo. Eu sou aquela cuja palavra é constantemente invalidada – eu sou uma proscrita, e para cada uma das palavras que escrevo há alguém que sabe mais que eu, estudou mais que eu, leu mais que eu e portanto pode falar melhor do que eu sobre as coisas da minha vida. Há sempre por perto uma pessoa que já leu sobre prostitutas, e então as prostitutas sobre quem ela leu valem mais do que as prostitutas com quem convivi e a quem conheço tão bem. Elas sabem mais de nós do que nós mesmas, ou pensam saber – e seguir deixando que mulheres corram risco por conta do estigma sobre suas profissões não lhes dói, o saber teórico delas parece ter mais valor do que nossas putas vidas.

Elas, que nunca exerceram ou exercerão o trabalho sexual, questionam por que é que prostitutas organizadas podem falar pela maioria – o que eu de fato não compreendo é de onde sai tanta empáfia. Se as trabalhadoras sexuais organizadas não podem falar pela “maioria”, por que devemos admitir que alguém que odeia nosso trabalho sem nunca tê-lo exercido fale por nós? De nenhum outro lugar tiraram essas ideias, se não da imensa arrogância que carregam consigo.

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