Drama do povo negro é retratado em livro de Cristiane Sobral

O tema está em ‘O tapete voador’

Por Geraldo Lima Do Correio Braziliense

Cristiane Sobral: ideologia e poesia ao narrar a vida dos negros (foto: RicardoPacheco/Divulgação)

Cristiane Sobral, poeta, escritora, atriz, diretora e professora de teatro, nascida no Rio de Janeiro e radicada em Brasília, é uma das vozes mais contundentes da literatura negra brasileira. E, ao falar de literatura negra, falo do texto literário (poesia ou prosa) que, segundo Zilá Bernd, no seu livroIntrodução à literatura negra (Editora Brasiliense, 1988), “configura-se como uma forma privilegiada de autoconhecimento e de reconstrução de uma imagem positiva do negro”.

E é assim nos 18 contos que compõem o livro O tapete voador (Editora Malê, 2016), de Cristiane Sobral.

Nesse seu livro, Cristiane Sobral nos dá mostra de como esse tipo de narrativa se propõe como objeto estético e, ao mesmo tempo, como instrumento de conscientização do indivíduo negro sobre a importância de assumir a sua verdadeira identidade racial e cultural. O confronto, aí, é contra a ideologia do embranquecimento.

A estratégia, nesse caso, é tomar uma situação cotidiana que exponha o problema da discriminação racial ou do conflito identitário do negro brasileiro, de modo objetivo, quase didático, de maneira que o leitor saia da leitura do texto com sua consciência mudada, ou, na linha do que alguns dos contos de O tapete voador sugerem, renasça com nova identidade cultural ou resista sem abrir mão das suas convicções raciais.
E é de modo consciente e corajoso que Cristiane se equilibra entre estes dois polos (o estético e o ideológico) na construção dos 18 contos que compõem esse seu livro. A sua habilidade na construção da narrativa que privilegia o elemento estético e a fabulação fica visível no conto Bife com batatas fritas. Nele, a questão estética e a temática social são bem articuladas, de modo que o leitor não tem como não se comover com o quadro de miséria e orfandade de uma criança de periferia. Esse é, aliás, um dos melhores contos do volume e poderia figurar em qualquer antologia dos melhores contos brasileiros.

Surpresas

No conto O limpador de janelas, o que chama a atenção é o modo como a narrativa se constrói a partir de frases muito curtas, fragmentadas, o que torna o ritmo acelerado e surpreendente, dando conta das várias peripécias amorosas do protagonista.  Ao final, o personagem Samuel, um quase pícaro, um “pegador” nato, verá que a condição de negro em terras tupiniquins vai sempre lhe reservar surpresas desagradáveis.
Ainda que predomine o realismo, algumas histórias flertam com o fantástico, como nos contos O galo preto e A samambaia.  O tom de sarcasmo, de deboche e de ironia molda algumas dessas narrativas, tornando ainda mais agudo e crítico o olhar da autora sobre os episódios de discriminação racial e de negação da própria negritude, como é o caso dos contos Lélio e Afrodisíaco (neste, ironiza-se o propalado vigor sexual dos negros). Ora narradas em terceira pessoa, ora em primeira — nesse caso, majoritariamente narradas por mulheres —, as histórias compõem um painel de situações variadas em que o indivíduo negro se vê frente a frente com a questão do preconceito racial, da miséria ou da crise de identidade.
A subjetividade feminina é também ponto de destaque nessas histórias de enfrentamento e reconstrução da imagem, como nos contos Vox mulher, em que a protagonista expressa, numa linguagem marcadamente poética e intensa, seus desejos e seu orgulho de ser mulher negra, e Pixaim, no qual uma mulher rememora, de modo comovente, sua infância passada no Rio de Janeiro e marcada pelo sofrimento de se ver obrigada a mudar sua imagem, com o alisamento desastroso do cabelo, e reafirma, já residindo em Brasília, seu orgulho e sua alegria de se ver no espelho como ela realmente é: uma mulher negra e madura. “A gente só pode ser aquilo que é”, afirma ao final, num claro recado aos que procuram negar a sua origem.
Num país em que a representatividade da população negra é baixíssima nos circuitos literários, nos quais circulam com maior desenvoltura as obras dos autores brancos e das autoras brancas, é de se celebrar o trabalho de escritores e escritoras como Cristiane Sobral, que dão voz e vez em suas narrativas e poemas à nossa gente tão excluída.

+ sobre o tema

Sete ensinamentos do feminismo para a teoria política

O feminismo, em suas diferentes vertentes, desvelou os mecanismos...

Possível nome, Vera Lúcia Santana representaria uma força negra no TSE

Após ser a primeira mulher negra a estar na...

A Mulher Invisível

Tem uma frase no filme Histórias Cruzadas que marcou...

E as mulheres nas letras do gangsta rap?

Moro no litoral norte e, recentemente, mulheres de Ubatuba...

para lembrar

Talita Avelino retrata a coragem da mulher negra em “Rio Vermelho

Talita Avelino retrata a coragem da mulher negra em...

Mulheres abrem mão de carreira por causa de maridos, não de filhos, diz estudo

Christine Lagarde é diretora do FMI (Fundo Monetário Internacional);...

Plataforma UNA é criada para incentivar políticas contra desigualdade de gênero

A plataforma UNA já conta com 417 iniciativas, em...
spot_imgspot_img

Lula sanciona lei que aumenta pena para feminicídio

O presidente Lula (PT) sancionou, nesta quarta-feira (9), a lei que aumenta do feminicídio para até 40 anos. O texto também veta autores de crimes contra mulheres de...

Nota Pública ao PL 4266/2023: Consórcio Lei Maria da Penha – 2024

O Consórcio Lei Maria da Penha pelo Enfrentamento a Todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres (Consórcio Lei Maria da Penha),...

Só sete estados têm leis específicas de proteção contra assédio sexual a servidores

Apenas sete estados contam com leis que visam ampliar a proteção contra assédio sexual de servidores. Nesses locais, os estatutos de profissionais públicos vão além do...
-+=