As Mulheres da Ruta Pacifica da Colômbia por muito tempo usaram e ainda usam a palavra de desordem “Nem a paz que nos oprima, nem a guerra que nos mate”. Na nossa nota manifesto em alusão aos 11 anos da Lei Maria da Penha, usamos esta insígnia. Hoje, ela se revitaliza. Há uma discussão no judiciário em torno da Lei Maria da Penha, encabeçada pelo Conselho Nacional de Justiça, afirmando que esta deveria promover a pacificação da família. Promover a paz, em vez de combater a violência. Desde 2014 a ministra insiste nessa proposta, que está sendo rapidamente aceita. A campanha “A Paz começa em casa”, lançada naquele mesmo ano, iniciativa do CNJ, foi criada com o objetivo de sensibilizar o judiciário para dar uma resposta às famílias, priorizando os julgamentos de casos de violência contra as mulheres.
Por Analba Brazão, do Soscorpo
Neste ínterim, o processo avança acelerado, e as varas e juizados de violência doméstica estão recebendo a nomenclatura de varas ou juizados “Pela paz em casa”. Esta proposta contraria o que a Lei Maria da Penha (LMP) propõe como elemento central, que é o debate em torno de violência doméstica como consequência da desigualdade estrutural de gênero. A mudança da nomenclatura representa, portanto, uma grande perda política. Não é só a questão do nome, mas do que este significa para a luta pelo fim da violência contra as mulheres. Ter a Vara e Juizados tratando especificamente da violência contra a mulher foi uma conquista de anos de luta do movimento feminista brasileiro. Deu mais visibilidade a este fato social, além de ter previsto a prevenção e a repressão deste crime tão presente na vida das mulheres brasileiras.
Que Paz é esta que o Estado está querendo? Uma paz que esconda a real situação das mulheres? E novamente invisibilize a mulher em prol da “paz na família”?
O consórcio de organizações que elaborou a Lei Maria da Penha foi retomado em caráter de urgência. Hoje, mais amplo, com várias advogadas feministas. Em 2016, em decorrência do cenário adverso que assola o quadro político no país, do desmonte da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), das ameaças no Congresso Nacional de alteração do texto original da LMP (com destaque para tramitação do PLC 07/2016) e por ocasião do aniversário de 10 anos da norma, o Consórcio se reúne novamente e, com muito esforço voluntário, imprime um ritmo cotidiano de discussão, acompanhamento e monitoramento da implementação da Lei Maria da Penha, ampliando a discussão para a figura da alienação parental, por considerar uma nova forma de violência contra as mulheres e implicar no acesso à justiça para as mulheres.
Assim em junho e julho de 2016, o Consórcio elenca como prioridade atuar para não aprovação do PLC 07/2016, cria o grupo de whatsApp para agilizar as discussões e decisões, faz o levantamento das proposições legislativas em tramitação na Câmara e no Senado Federal e participa da Reunião promovida pela ONU Mulheres e Instituto Maria da Penha para fazer o balanço dos 10 Anos da LMP. A Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e Sos Corpo têm acompanhado os debates no grupo do WhatsApp do Consórcio, devido a atuação permanente na luta pela implementação da Lei Maria da Penha.
O Consórcio tem acompanhando de perto as propostas legislativas de mudança na LMP (mais de 100 proposições) e incidindo no judiciário na tentativa de destacar a não efetivação da lei e da incompatibilidade de se aplicar a justiça restaurativa (e outras práticas como constelação familiar, colching, círculo da paz, conciliação e mediação) por seguirem a mesma lógica de proteção da família, tratarem um tema complexo como um conflito apenas individual, tirarem o foco da mulher enquanto vítima de violência e buscar dar resposta processual mais rápida e célere no intuito das Varas atingiram as metas de processos julgados estabelecidas anualmente pelo CNJ. A Justiça Restaurativa, em várias partes do Brasil, está implementando a realização de “constelação familiar”¹. Uma idéia encampada pelo CNJ e que vai contra o próprio sentido da LMP.
A idéia de violência familiar está se alastrando nas Varas e Juizados e a forma como será e já está sendo aplicada é motivo de grande apreensão dos movimentos de mulheres. Este modelo retoma uma questão antiga em relação ao tratamento aos agressores, metodologia da qual nós da AMB divergimos, na época, por entender que estaríamos reconhecendo que os agressores seriam vistos como doentes e a violência contra as mulheres como uma patologia. O que não significa que não defendamos a ressocialização e práticas não meramente punitivas. As defendemos como uma política para o sistema penal como um todo.
O consórcio realizou uma audiência com a Ministra do Supremo Carmen Lucia. Nesta ocasião, foi pontuado o momento crítico em que se encontra a LMP, a ausência das políticas no executivo, os desafios no legislativo, as questões estruturantes que precedem a violência contra mulheres e a importância dos estudos e pesquisas, tanto na academia como nas organizações feministas e movimentos sociais. O resultado não foi muito animador, a ministra defende de que a função da Lei Maria da Penha é a pacificação social na família e que a Lei deveria estar voltada para promover a paz em vez de combater a violência. Ela concorda com o cenário que foi apresentado sobre o Executivo e Legislativo, e a resistência no judiciário sobre a percepção da violência, mas quanto às questões estruturantes, sua resposta se volta para a perspectiva consolidada da paz social e na família.
Esta proposta da Justiça Restaurativa, vai na corrente da esta onda conservadora, moralista e fundamentalista que assola o país, e o poder judiciário em particular. Ela exclui dos casos da violência contra as mulheres as recomendações do Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da decisão que o Supremo Tribunal Federal tomou em 2012 que impediu que a lei se tornasse inconstitucional, após muita luta do movimento feminista. Nesse período, nós da Articulação de Mulheres Brasileiras protagonizamos diversas ações, tais como a realização de vigílias, a campanha que realizamos em 2007 “mexeu com a Lei Maria da Penha, mexeu com todas as mulheres”, petições online, audiências no Congresso Nacional, visitas aos Ministros do STF e videoconferências nacionais, em parceria com um grupo de advogadas feministas, que faziam parte do consorcio. Temos que neste momento fortalecer mais ainda a Lei Maria da Penha que está sendo atacada permanentemente. Ontem, 10 de outubro nos deparamos com a noticia de que o Senado Federal aprovou o PLC 07/2016, que concede autoridade policial a competência para a concessão das medidas protetiva de urgência. Uma medida completamente inconstitucional. Os movimentos de mulheres e feministas , desde a formulação deste absurdo, tem se posicionado contrário a esta medida, que aponta nitidamente para o desmonte da nossa conquista. A proposta ainda vai para a Sanção Presidencial, por isso precisamos de mais mobilização social para impedir que esta medida seja sancionada.
Estaremos em luta na defesa da vida das mulheres e da Lei Maria da Penha.