Enquanto o país esfria, a cultura negra ferve

Estados Unidos da América. No início dos anos 70, o movimento negro americano exibia sinais de exaustão. Os últimos 15 anos haviam sido ainda mais difíceis que os anteriores. Conspirações do FBI, atentados, e assassinatos tornavam a militância um fardo quase insuportável. 

Por Dodô Azevedo, Da Folha de S.Paulo

Jonathan Raymundo,- homem negro, de barba e dreads, vestindo camiseta estampada cinza- olhando para frente
O professor Jonathan Raymundo, um dos idealizadores do Festival Wakanda in Madureira (Foto: Matheus Raymundo/ divulgação)

Reuniões dos grupos de ativistas corriam tensas e belicistas. Nasceu, então, a ideia de que, para o bem da saúde mental e espiritual dos ativistas, era necessário também um outro tipo de reunião. Era necessário também encontrar-se para celebrar e sorrir. Trocar afetos. Olho no olho.

Nascem, então, as Block Parties, festas de rua diurnas onde os militantes experimentavam finalmente também um outro modo de exercer militância. O sorriso, a pessoa por trás do ativista, o conhecer-se para além do ofício. Em 8 de agosto de 1973, em uma Block Partie em Nova York, nasce o Hip Hop. O planeta inteiro jamais será o mesmo.

Agora estamos no Brasil. Onde outra história, ainda mais rica, transcorreu-se. Coisa para historiador negro brasileiro contar.

No dia 19 de março de 2018, no Rio de Janeiro, momento em que já se estabelecia crise econômica e cultural no país, acirrando-se as desigualdades logo estressando militâncias, o historiador negro brasileiro Jonathan Raimundo teve, com amigos, uma ideia. Que tal um piquenique só de pretos em um domingo à tarde? Postou a ideia no Facebook. Compareceram 30 pessoas. Sucesso. Tarde inesquecível. Resolveram repetir o evento. 70 pessoas. Enquanto a movimentação cultural no país esfria e é apequenada, o piquenique negro cresceu, invisível ao olhar da cidade branca. As 70 pessoas se transformaram em mil, depois em duas mil. Hoje acontece a última edição do ano evento, o Festival Wakanda in Madureira. Vai gente de todo o canto do Rio de Janeiro. Vai caravana de São Paulo . Vai gente. Gera-se empregos. O dinheiro circula entre negros. Sucesso visível.

Convidado pelo Quadro-negro, Jonathan, produtor, professor e colunista do “Movimento Black Money”, escreve sobre como se faz. Enquanto faz como se escreve.

O sucesso visível do fazer por si invisível – por Jonathan Raimundo

Em um texto escrito por mim em 2016 dizia que “ser Negro é estar sempre entre tempos, é ter no caminhar inúmeros pés que gastaram a sola na construção do chão que hoje caminhamos”.

Penso que para analisar as construções Negras hoje é preciso ter o tempo como farol. Para nós a ancestralidade é o centro do nosso modo de ser no mundo. Vemos nascer pela cidade, em tempos de crise econômica, ações de sucesso iniciadas por grupos historicamente oprimidos, sem o apoio de políticas públicas. É o caso do Festival Wakanda in Madureira, que nasce da ação coletiva e autônoma do povo Negro, que sem ter em vários níveis, resolve fazer por si mesmo.

Por si. Sem ter respeito, resolve se respeitar, sem ter incentivo econômico, faz o dinheiro girar entre si, sem ter apoio cultural, põe seus próprios talentos a disposição da comunidade.

Como não voltar à História do Negro no Brasil para entender o que fazemos hoje?

Como esquecer das casas coletivas (Zungus) que abrigavam negros livres, fugidos e escravos se tornando pontos de resistência cultural.

Como esquecer as juntas de alforria, Instituições autônomas feitas entre negros de ganho e libertos, que compravam cartas de alforria.

Como esquecer o terreno da Tia Ciata, a Tia Bebiana organizando pequenas corporações marcadas pela solidariedade, da construção da primeira Escola de Samba, das Irmandades Negras?

Há numa mesma cidade uma paralisia e uma efervescência cultural invisibilizada pelo racismo, cujo vigor compõe a história de um povo que resiste e transborda.

A última edição do evento Feira Preta, ocorrida em São Paulo entre 7 e 8 de novembro de 2019, movimentou mais de 35 mil pessoas, gerando mais de 300 empregos, mais de um milhão e meio de circulação monetária.

Há o grupo Awurê, o Bengala na Mesa na resistência do samba de terreiro, a Rede Carioca de Roda de Samba etc.

Os Negros continuam promovendo as tecnologias sociais para efetivar o seu ser no mundo e, mesmo alijados das políticas públicas, continuam criando e promovendo o avanço civilizatório desta sociedade.

Os Negros continuam.

Jonathan Raymundo é bacharel e licenciado em História pela UERJ.

FESTIVAL WAKANDA IN MADUREIRA

Quando Sáb., até às 22h, no dia 14/12

Onde R. Soares Caldeira, 115, Madureira, Rio de Janeiro

Preço R$ 12 a R$ 40

Classificação Livre

+ sobre o tema

Sabrina Nonata, filha de Camila Pitanga em Babilônia, conta que sofreu preconceito

Uma cena linda encantou o público recentemente em Babilônia....

‘As Cores da Serpente’, um documentário muito além do grafite

Com direção de Juca Badaró, o filme ''As Cores...

Historiadores dos EUA dizem que Portugal deve pedir desculpa por tráfico de escravos

Especialistas sublinham o papel do país no comércio internacional...

para lembrar

Pelo tombamento do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo

Conforme notícia do portal da Associação Nacional dos Defensores...

Monfils surpreende Federer e mantém sonho de título francês em Paris

Tenista local salva cinco match points para derrotar suíço...

Protegida dos Hypolitos, “nova Daiane” aumenta fenômeno teen da ginástica

Diego Hypolito estava em São Bernardo, na grande São...

Elza Soares e Emicida

A carreira de Emicida teve início no começo dos...
spot_imgspot_img

Reconhecimento da Unesco pode difundir ainda mais Maracatu Nação

O envio do dossiê do governo federal com o pedido de reconhecimento do Maracatu Nação, também conhecido como baque virado, como Patrimônio Cultural Imaterial...
-+=