“Tum, tum-tum”, ouçam, na medida em que leem, o som percussivo que acompanha a seguinte canção congadeira: “Ô embala rei, rainha, eu também quero embalar. O batuque da caixa estremeceu. O batuque da caixa estremeceu. É o Congado, ô, comando é Deus.” A música foi entoada pelo grupo Congado e Catopé São Benedito e São Sebastião no contexto ritual da Festa do Divino, na cidade de São João del-Rei, Minas Gerais, em 2019.
Tratava-se de um contexto tenso e sensível durante a procissão luminosa da pombinha do Espírito Santo. Momento atravessado por uma experiência de ofensa racializada para com os dançantes do Congado e comunidade negra, além do abuso de poder praticado por determinada autoridade religiosa do local. Porém, percebemos na força da canção e performance congadeira o combate afirmativo do grupo, na dimensão da dignidade e autorrespeito pela cultura negra. O episódio se tornou um momento de educação antirracista, perante a legítima demarcação na territorialidade festiva daquela circunstância.
A Festa, antes da pandemia de covid-19, desenvolvia uma agenda com 12 dias comemorativos, entre atividades sagradas com a presença das Congadas e Folias. Ações populares com barraquinhas de quermesse, almoço e café comunitário, shows musicais, bingo e afins. Uma atividade cultural e religiosa promovida no bairro Matosinhos pela Comissão Organizadora da Festa do Divino – CODIVINO. O domingo de Pentecostes – 50 dias após a Páscoa – era o último dia celebrativo, chamado localmente de “dia Maior”. Período que conectava um dos importantes encontros congadeiros são-joanenses. Além disso, fomentava a presença de muitos grupos de Congado (Congada ou Reinado) da região de Minas Gerais. Uma festa que faz parte dos bens imateriais inventariados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
A devoção à pombinha do Divino no diálogo com o ritmo congadeiro diz respeito ao catolicismo negro do tempo presente. Remete a consolidação dos saberes afrodiaspóricos reelaborados e estruturados na tessitura da Igreja Católica – durante o perverso contexto da forçada escravização de pessoas africanas nas Américas. Deste modo, a tradição dos batuques negros nas festas de Pentecostes – também denominadas como festivais Pinksters ou Pinkster Day – reinventa as práticas culturais dos séculos XVIII e XIX, que ocorriam em diferentes regiões do Brasil, Cuba e Estados Unidos, conforme já apontaram os estudos de Leda Maria Martins. Trata-se de uma tradição festiva “amefricana” e “transcultural”.
A performance que envolve a tecnologia das rezas, músicas, danças e o todo da oralitura corporal das ritualísticas congadeiras remonta a cosmopercepção do poder ancestral dos reinos da região do Congo, Angola, Moçambique, dentre outros da África centro-ocidental. Performances co-criadas no continente africano desde o século XV e posteriormente atualizadas nas Américas pelas pessoas do tronco linguístico bantu, junto às Irmandades do Rosário dos Homens Pretos. A significação das tentativas catequéticas gerou leituras e interpretações distintas dos santos católicos, tais quais Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia, Santa Anastácia etc., que foram (e são) mote para a personificação da ambiência de minkisi (singular nkisi). Ou seja, amuletos e portais sagrados do pluriverso material e imaterial dos grupos de Congado.
As danças e batuques dos Reinados Congos atravessaram o espaço e o tempo da história brasileira. Experienciadas nas trajetórias de vida individual e coletiva dos/as detentores culturais, que ora foram fomentados através da Igreja e sociedade dos períodos colonial e imperial, ora perseguidos e reprimidos no imediato pós-abolição pelo Estado, pela polícia e pela Igreja. Depois, tratados pejorativamente como folclore no contexto republicano (com o mito da democracia racial) na ótica de intelectuais e do governo; e sendo hoje reconhecidos e respeitados nos trabalhos de patrimonialização e reparação de memórias afroindígenas. Vide o Decreto n.º 3551/2000 que institucionalizou a cultura afro-brasileira como patrimônio cultural nacional, a Lei 10.639/2003 e a Lei 11.645/2008 que determinam a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, respectivamente – na tentativa de se construir políticas públicas de reparação pelo maior crime da humanidade: a escravização negra e indígena.
Entoamos que na perspectiva endógena, ainda que nas diferentes circunstâncias do espaço-tempo, as Congadas são marcos civilizatórios transnacionais, sinônimos da insubmissa (re)existência da nossa gente negra. São permanências, ainda quando elaboradas no cenário contemporâneo. Nesse sentido, retornamos para a mineira São João del-Rei, com as Comunidades Eclesiais de Base – CEB, da década de 1980, no bairro Tijuco.
Ali, diante do acúmulo das lutas sociorraciais da Pastoral Afro-brasileira – PAB e dos Agentes Pastorais do Negro – APN, conectadas com a teologia da libertação (vertente católica que almejava uma Igreja mais latino-americana e menos romanizada), criaram o Movimento São-Joanense de Cultura Afro-Brasileira – MOSCAB, em 1987. Grupo de consciência negra que contou com a participação do padre e congadeiro Raimundo Inácio (in memoriam). As atividades desenvolvidas pelo MOSCAB desencadearam uma série de organizações políticas e culturais na cidade, isto é, uma rede de associativismo negro.
Assuntemos cronologicamente parte do desdobramento desta rede que se formou: Associação de Congado Santa Efigênia, do bairro São Geraldo, em 1994, tendo no diretório Nivaldo Neves, Efigênia Neves (dona Genica) etc. Grupo de Inculturação Afro-brasileira Raízes da Terra, de 1996, presidido por Vicentina Neves Teixeira. Dona Vicentina é hoje septuagenária, voz referencial e atuante, fez parte do Conselho Municipal das Mulheres. Reinvenção da Festa do Divino na paróquia do Matosinhos, em 1997-1998, encampada pela CODIVINO. Moçambique e Catopé Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, em 2001, no bairro São Dimas, liderado pela capitã Maria Auxiliadora Mártir. Congado e Catopé São Benedito e São Sebastião, de 2003, no bairro Matosinhos, cujo capitão é José Tadeu do Nascimento.
O Congado e Catopé São Benedito e São Sebastião nasceu no ano de 2003. Além das mobilizações sagradas, dois outros sentidos inspiraram os participantes na sua criação: reativar a festa popular de São Sebastião e valorizar a identidade do bairro Matosinhos – do qual Tadeu fez parte da Associação de Bairro no cargo de vice-presidente. A escolha para os patronos optou pela referência ao santo negro São Benedito. Conhecido como ex-escravizado que era chefe de cozinha e guardião dos segredos do rosário, levava comida dos ricos para os pobres. O grupo costuma cantar: “São Benedito, passeou na praça. É um santo negro, é de boa raça.” O outro patrono é São Sebastião, em homenagem ao santo que rege a comunidade da Avenida Santos Dumont, na geografia de São João del-Rei.
O primeiro capitão é o sexagenário José Tadeu do Nascimento, o segundo capitão é o jovem Jailton Francisco do Nascimento e o capitão-mirim é o Arthur Nascimento. Pai, filho e neto compõem a tríade geracional dos batuques, que nas palavras de Tadeu: “é um Congado familiar.” Quem carrega a bandeira é a dona Nazaré. As rainhas são Elzi e Trindade. Mirela, Jane, Gorete, Teresa, dentre demais integrantes, tocam instrumentos como pandeiro, afoxé e timba. O caixeiro de guia é quem dá os tons entre as caixas menores e maiores. Ao que se refere ao teor musical, o primeiro capitão relata o seguinte contexto: “eu não uso partitura. A música vem da cabeça da gente. A gente cria músicas. (…) É música sagrada e abençoada.” Tadeu também nos explica sobre a história congadeira na territorialidade mineira: “quem surgiu primeiro foi o Congo, depois é que veio o Moçambique. O Congo é o mais velho da terra aqui, do estado de Minas Gerais.”
O ciclo festivo deste grupo acontecia no mês de janeiro, nas comemorações de São Sebastião. Praticavam a ritualística dos mastros, que na função de minkisi ativam um tempo sagrado, na confluência do mudo visível e do invisível, na episteme dos Reinados Congo. A festividade ocorria na quadra da comunidade. Realizavam a missa inculturada que remetia aos saberes afrodiaspóricos. A narrativa de Tadeu ensina-nos que: “a missa inculturada é uma missa mais festiva, mais alegre. Mostrando para o povo como era a realidade nos tempos atrás [em África]. Aí vinha broa, rapadura, cana, as frutas. Vinha pipoca também no meio. (…) Os cantos são diferentes, uns cantos alegres, apropriados. Uma missa que é diferente das outras”. O evento religioso é, também, de caráter pedagógico e politizado, carrega como pano de fundo o intento de mobilizar as demandas da negritude e afirmação das belezas e culturas negras.
O Congado e Catopé São Benedito e São Sebastião foi considerado pelo IPHAN, em 2018, como parte do patrimônio imaterial de São João del-Rei. No entanto, o grupo tece críticas sobre a ausência de parcerias e apoio do legislativo e executivo municipal, nos processos de salvaguarda cultural e também no tocante às verbas a incentivo patrimoniais. Nas palavras dos próprios congadeiros, os representantes do IPHAN e da Prefeitura: “queriam saber como é que era esse negócio do Congado, da Folia, essas coisas. Aí tombou como patrimônio histórico. (…) Mas sei lá. Pior que a prefeitura não ajuda em nada! Tombou patrimônio histórico, mas ficou a mesma coisa. Eu tenho certeza que um dia a Receita Federal vai cobrar deles, vai perguntar: “vocês estão ajudando os grupos de Congado?” (…) Se está dando uniformes, instrumentos, essas coisas aí, apoio. Aí como que eles vão fazer? Um dia eles vão passar apertado. Eu tenho certeza! (…) Onde é que eles estão enfiando o dinheiro para ajudar os grupos de Congado, as Folias, essas coisas? Um dia eles vão ser cobrados.”
A sabedoria do capitão Tadeu tonifica questionamentos e incômodos importantes. Visibiliza o incessante combate contra as lacunas da realidade brasileira, no acesso aos direitos de cidadania, fomento e respaldo cultural afro-mineiro. De todo modo, as experiências congadeiras seguem em processos de (re)existências e luta por dignidade. Como ressaltado na canção que abriu e agora fecha o presente texto: “É o Congado, ô, comando é Deus”.
Assista ao vídeo da historiadora Simone de Assis no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 – 9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira, refletir sobre o pós-abolição e a história do tempo presente, desta forma avaliar os seus resultados; EF09HI26 – 9º ano: Através das práticas do Congado e da Festa do Divino pretendemos analisar a cultura de resistência e as redes de associativimo negro. Discuitir sobre as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas.
Ensino Médio: EM13CHS101: Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, tais quais a oralidade, música popular e grupos culturais. O objetivo é promover letramento histórico antirracista. Ademais, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais. Nessa ótica, ampliar os diálogos sobre os passados-presentes, pós-abolição, história pública e educação patrimonial.
Simone de Assis
Mestra em História pela Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ. Participa da Rede de HistoriadorXs NegrXs e do Grupo de Pesquisa Emancipações e Pós-abolição em Minas Gerais.
E-mail: [email protected]
Instagram: @simone.de.assis
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