A ciência não é neutra, muito pelo contrário: racismos em Max Weber

Esse texto tem como base de sua reflexão algumas obras específicas em torno da história das ciências sociais no Ocidente, como as de Wulf D Hund, Andrew Zimmerman e Jessé Souza. A ideia de um racismo estruturalmente embrenhado nas ciências sociais, fundadas todas ao longo do século XIX, não deveria causar nenhuma surpresa. Porém, não é isso que vemos sendo trabalhado nas reflexões em torno dos autores clássicos e, especialmente, dos mais canônicos, ainda hoje referenciados de maneira praticamente acrítica ou em abordagens que tentam “purificar” tais autores.

Ora, quais autores? Praticamente todos os ocidentais que estudamos desde os nossos livros didáticos até os cursos de pós-graduação para onde vamos em países “centrais”: quem falará de origens do racismo moderno em Adam Smith, David Hume, Immanuel Kant ou Voltaire? Relegamos tal “mal de origem” a nomes hoje só conhecidos pela academia especialista, como Herbert Spencer ou o conde Arthur de Gobineau que, aliás, fora aqui recebido com pompas pelo Imperador Dom Pedro II.

Apesar de haver muitas obras a respeito, tanto no Brasil quanto no exterior, tais apontamentos críticos que pretendem, dentre muitas outras coisas, explicitar algo como “a tolice da inteligência brasileira”, na provocação de Jessé Souza, continuam de difícil circulação em nossos livros didáticos ou em nossos cursos de pós-graduação em Ciências Humanas – e a filosofia está aí inclusa. Poderia ser diferente, pois o que desenvolvemos aqui não é uma crítica a algo marginal no imaginário científico de tais tradições consolidadas, mas, na realidade, o chão sobre o qual é plantada a dita “árvore do saber”. Um chão invadido, demarcado, perfurado, semeado e escamoteado, do qual obtêm-se frutos ignorando-se as sombras.

Em uma entrevista ao Globo News no dia 14 de agosto de 2023, o cientista político Steven Levitsky, autor de Por que as democracias morrem, obra que fez muito sucesso – bastante midiático diga-se de passagem –, comentava sobre a ascensão da extrema-direita pelas bandas dos Estados Unidos. já em vias de lançamento de novo livro. Perguntado sobre as causas desse “neofascismo” yankee (ele não usa essa expressão), o professor de Harvard fala sobre como o homem branco norte-americano, self-made man, se viu confrontado com a ascensão de uma “democracia multirracial”, nas palavras dele. Era o branco cristão perdendo espaço de poder. E utilizar-se mesmo da força para impedir isso, como Donald Trump fez, é o que essa gente queria e ainda quer.

Bem, isso não está muito distante da crítica às cotas raciais e sociais que parte significativa do campo político, cultural e acadêmico branco e ,mais ou menos, bem instalado no Brasil fez há cerca de vinte anos atrás, pouco depois de quando eu entrei na Universidade, ainda sem tais políticas de ações afirmativas. Nomes como Lilia Schwarcz e Demétrio Magnoli, hoje tão distintos no espectro político, eram contra as cotas. Ambos reivindicando o lugar de análise “neutra” do cientista social. E esse lugar naturalizado na percepção de nossa sociedade é o que importa para essa análise sobre Max Weber (1864-1920), sua ciência social e seu racismo inveterado, de modo a compreender como esse intelectual alemão, um dos fundadores canônicos da Sociologia, transpassa toda uma visão problemática sobre relações raciais em suas obras.

Quando falamos em “tipos ideais”, modelos de dominação, ciência como vocação, política como vocação, burocratização, impessoalidade, desencantamento do mundo, espírito do capitalismo e, por fim, Ocidente – esse com “O” maiúsculo do qual a maioria dos países do mundo não faz parte, inclusive as ex-colônias periféricas como nós e quejandas –, fazemos isso tudo soar como “dados objetivos da observação neutra do cientista social”. E aplicamos isso à realidade, presente e passada. Uma hierarquização arbitrária baseada no escamoteamento de tragédias ocidentais (imperialismos, nazismo, racismo estrutural, fascismos, crises econômicas, xenofobia, padrões de beleza, escravidão etc.) em nome da ciência social que cultivamos, academica e escolarmente.

Retrato de Max Weber. 1918. Fonte: Wikipédia.

No caso de Weber, fala-se da emergência de um neorracismo em sua obra. Há aí uma troca do termo “raça” pelo de “cultura”. Mas, ainda que pontualmente, nota-se o tradicional racismo científico que associava “raças inferiores” a caracteres animalescos e que, aqui, foi transplantado para o debate sociocultural e suas hierarquias. Por exemplo, as observações de Marianne Weber, mulher de Max, acerca das opiniões do marido na viagem que ambos fizeram em 1904 ao sul dos EUA. De um lado, ele fala de homens educados que seriam “meio negros, um quarto de negros ou um-centésimo de parte negra que nenhum não-americano poderia distinguir dos brancos”, pois eles revelariam a “virtude de sua descendência e talentos pertencentes à sua raça mestre [ou seja, sua parte racial mais forte/branca]”. Por outro lado, Weber deduz tal superioridade a partir de um contraste que fez com os “semi-macacos que podemos encontrar nos latifúndios e nas cabanas de Preto do chamado ‘Cinturão do Algodão’” do sul dos EUA.

É preciso articular as disposições nacionalistas, imperialistas e racistas de Max Weber para compreender o alcance de tais reflexões. E isso está tanto nos seus primeiros trabalhos quanto nos últimos. Em seu discurso “Nação, estado e política econômica”, de 1895, ele já falava do “papel desempenhado pelas diferenças físicas e raciais entre as nacionalidades na luta econômica pela existência”. Nesse caso, Weber contribuiu com um cruel anti-eslavismo que, à época, era uma das bases para os racismos na Alemanha. Essas afirmações não eram ditas apenas com o vocabulário do racismo biológico desse contexto, mas com palavras e formulações de um racismo cultural.

Neste caso, para Weber, os poloneses teriam características “raciais e psicológicas” que os diminuíam quando comparados aos alemães, em termos de adaptação econômica e social. O catolicismo também era motivo de restrição que ia contra a nação protestante alemã, além de se sugerir que os camponeses poloneses teriam uma “mais baixa maneira intelectual e física de vida”. Inclusive, ele fala que os poloneses estariam dispostos a comer grama, diferente do livre camponês alemão. Fala em “maré de eslavos”, da necessidade de “fechar fronteiras orientais” contra essa “raça inferior”. Em síntese, Weber apresenta uma “eterna luta para preservar e elevar a qualidade de nossas espécies nacionais”.

O processo de construção e defesa da nação – no caso, a alemã – perpassa na identificação de um grupo principal, visto como nacional, que representa esse “corpo” imaginado como a nação e seus ditos valores sociais e culturais hegemônicos, colocados em uma hierarquia impactada pelas diferenças étnico-raciais. Como dizia Weber: “[…] deixar duas nações com diferentes constituições corporais – estômagos construídos de maneira diferente… – competir livremente na mesma área, [os] trabalhadores alemães teriam de descer um degrau cultural… Houve certa vez uma grande oposição à importação de trabalhadores chineses para o leste, mas a importação de poloneses é de longe um perigo maior para a cultura, pois os nossos trabalhadores alemães não seriam assimilados pelos chineses”.

Sua militância cultural conquistou as camadas intelectuais no clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, publicado em 1904/1905. Aí o exemplo de Benjamin Franklin aparece como ilustração do furor pelo lucro e trabalho racional. O fato de Franklin ter parado de trabalhar e viver do trabalho de outros não é lembrado por Weber, ao citar os conselhos puritanos do político norte-americano. Na introdução desse seu estudo sociológico sobre a religião e a construção da sociedade ocidental, podemos ver um legado em matéria de racismo à la Weber, por assim dizer.

Essa introdução termina com Weber avaliando as ciências raciais na época dele, em que “admite ser inclinado em pensar na importância da hereditariedade biológica como algo muito grande”. E sobre os “tipos de racionalização” desenvolvidos apenas no Ocidente, parece óbvio para ele “que a mais importante razão resida em diferenças de hereditariedade”. Contudo, não haveria ainda “forma de medir isso […] com exatidão” porque a neurologia e psicologia raciais comparadas “não progrediram ainda em seu presente de maneiras muito diversas dos seus promissores começos”. Ou seja, tais ciências raciais apenas não teriam se desenvolvido plenamente para comprovar tal precedência hereditária na racionalidade que, segundo Weber, só existiria no Ocidente.

Aqui, a invenção do Ocidente é reiterada. A valoração da história da cultura ocidental é de caráter supremacista. E, novamente, Weber deixa evidente sua concepção racista e eurocêntrica sobre a realidade social. Como ele aponta: “[…] se esse desenvolvimento ocorreu apenas no Ocidente, a razão deve ser encontrada em características especiais em sua evolução cultural que lhe é peculiar. Apenas o Ocidente conhece o Estado no sentido moderno, com uma administração profissional, baseado nas leis e na cidadania […]. Apenas o Ocidente conhece a lei racional, feita por juristas e racionalmente interpretada e aplicada, e apenas no ocidente é encontrado o conceito de cidadão […] porque apenas no Ocidente novamente há cidades nesse sentido específico. Finalmente, a cultura ocidental é mais ainda distinta de toda outra pela presença de homens com uma ética racional em sua conduta de vida. Mágica e religião são encontradas em todos lugares; mas uma base religiosa para ordenação da vida que leve ao racionalismo explícito é novamente algo peculiar ao Ocidente apenas”.

Tais avaliações, como muitas outras que não temos espaço para desenvolver aqui, iam junto a um contexto de ofensivas imperialistas de potências europeias sobre diversas partes do mundo. Aqui, Max Weber era um assíduo defensor do estabelecimento colonial “nas regiões incivilizadas como a África” a partir de “uma enérgica política imperialista que visava à expansão do território germânico e de sua esfera de interesse”. Tal imperialismo ainda poderia conter os ímpetos socialistas dos trabalhadores alemães que, assim, se inclinariam mais para o nacionalismo do que para a luta de classes.

Em seus Ensaios Reunidos sobre Sociologia da Religião, Max Weber soube abordar cada região do mundo como possuidora de uma única civilização, exemplificada por sua religião, a qual determinava a política, a economia, o nível de racionalização e, até, a psicologia individual daquela sociedade. Nessa pesquisa parcialmente concluída, Weber não apresenta o mundo como um lugar maduro para a conquista europeia, como um imperialista ideólogo poderia fazer; todavia, ele enfatiza-o como um espaço diferenciado de áreas culturais imutáveis, com as quais a Europa poderia lidar como bem entendesse diante do seu avanço imperialista.

Assim, é perceptível como Weber deslocou sua atenção, em seus trabalhos sobre a religião, de uma questão específica em torno das forças de trabalho segregadas na Alemanha e, em menor extensão, nos Estados Unidos para uma teoria geral da cultura e da economia. Fazendo isso, ele elaborou uma macroeconomia cultural que continua praticada até hoje.

Dessa forma, vimos como Max Weber construiu uma ciência comprometida com a fixação de distinções culturais quase que essenciais, vistas teoricamente como “tipos ideais” e marcadas por condicionantes que impediriam o desenvolvimento rumo ao capitalismo. Algo que, quando vemos os países asiáticos hoje em dia, revelou-se totalmente insuficiente.

A hipocrisia weberiana é a hipocrisia do Ocidente, que mantém o racismo em sua base, cujos monumentos de suas vitórias foram erguidos, pela indiferença, com a reiteração dos mortos no Mar Mediterrâneo que o circunda, e em outros espaços também encapsulados pela indiferença ocidental. Aqui, a moderação e a razão burguesa tornaram-se estratégias bélicas da paz. Também noções como culturas políticas tenderam a enrijecer a verificação da legitimidade política em outras regiões, cujas instituições e práticas não se alinham às clássicas tipologias ocidentais. Na construção de Weber, só há encontro entre verdade e essência no Ocidente. Apenas no Ocidente haveria política, Estado, ciência, economia racional etc.; ainda que tal economia racional devesse ser submetida a critérios irracionais, como valor nacional ou conservação da raça e da cultura.

Na primeira vez que abordei esse tema, à época em formato de podcast, um dos maiores especialistas em Max Weber no Brasil, após justas considerações, me lembrava a frase presente na obra Os Irmãos Karamazov (1880), de Fiódor Dosoievski: “Quem não deseja a morte do próprio pai?”. Confesso que a escolha da citação me deixou encucado. Afinal, seria Max Weber o pai de quem? Certamente pela minha cor, e também a do meu ilustre interlocutor, caberia perguntar sobre a genitora. Não estaríamos antes em um tempo de refletirmos mais sobre as mães silenciadas na história, na mesma medida em que estão obrigadas a cuidar, criar, educar e ensinar tais filhos bastardos? Reflexões a se fazer dentro e fora de sala de aula, ao se observar a realidade social e os muitos atravessamentos que demarcam desigualdades e práticas de exclusão, as quais precisam ser politicamente denunciadas e combatidas, de forma individual e/ou coletiva.

Assista ao vídeo do historiador Thiago Lenine Tito Tolentino no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI23 (8º ano: Estabelecer relações causais entre as ideologias raciais e o determinismo no contexto do imperialismo europeu e seus impactos na África e na Ásia); EF08HI27 (8º ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas); EF09HI36 (9º ano: Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas (expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros)).


Thiago Lenine Tito Tolentino

Doutor em História Universidade Federal de Minas Gerais; Professor Adjunto no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia;

E-mail: [email protected]

Instagram: @thiagolenine


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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