No Maranhão, o Bumba meu boi é brincadeira afro-indígena

O Bumba Meu Boi é uma das expressões culturais populares brasileiras mais conhecidas no território nacional. No Maranhão, esta manifestação cultural ganha grandes proporções e está intimamente entrelaçada com a identidade cultural do estado. Estes aspectos, dentre outros, foram significativos para que a brincadeira recebesse o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo IPHAN, em 2011, e o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, no ano de 2019. De acordo com os órgãos públicos de cultura locais, existem no estado, em média, 400 grupos de bumba meu boi que apresentam uma diversidade de estilos (os chamados sotaques) e que mobilizam milhares de pessoas todos os anos.

A brincadeira é ligada aos festejos juninos devido à relação que tem com os santos São João, São Pedro e São Marçal, para os quais os brincantes fazem promessas que, geralmente, são pagas durante o mês de junho. Além dos santos católicos, é notável a relação dos bois com as entidades espirituais denominadas “encantados” ou “caboclos”, das religiões de matriz africana/afro-indígena presentes no Maranhão, que se manifestam nos cordões e para os quais também são feitas promessas. 

Registros históricos sobre o bumba são encontrados na capital maranhense desde o início do século XIX. A partir das fontes de polícia e da imprensa é possível notar que, ao longo do século XIX, o bumba foi objeto de intenso controle por parte das autoridades, sobretudo pelo fato de ser realizado pela população negra e cabocla. As reclamações publicadas nos jornais maranhenses, principalmente entre as décadas finais do século XIX e primeiras décadas do XX, apresentavam um teor discriminatório com relação aos cordões que transitavam pelas ruas da capital, relacionando-os à barbárie, à selvageria e à vadiagem, e exigiam das autoridades policiais a proibição completa do folguedo.

É importante mencionar que neste período, em São Luís, reivindicava-se para a cidade uma identidade cultural baseada em um ideário branco e europeu – a Atenas Brasileira  – que foi, inclusive, utilizada como argumento para a não aceitação dos divertimentos populares, considerados inapropriados e incivilizados. Mesmo assim, aqueles que faziam os bumbas, entre negociações e conflitos, conseguiam garantir o seu direito de festejar, fazendo com que os cordões de boi continuassem existindo geração após geração. Os pedidos de licença apresentados ao Chefe de Polícia para a saída dos cordões de bumba durante o São João mostram que os organizadores dos cordões se comprometiam com a ordem e os “bons costumes”, sendo poucos os casos em que estes pedidos foram indeferidos pela autoridade policial.  

Os cordões de bumba meu boi, ao contrário do que a imprensa sugeria, eram formados pelos trabalhadores operários, estivadores, carregadores e trabalhadores rurais que prezavam pela organização dos cordões. Inclusive, a partir das fontes, foi possível localizar alguns dos organizadores dos cordões como membros de associações de trabalhadores e irmandades religiosas negras, o que evidencia, de certa forma, o caráter também associativo destes grupos, para além somente de uma brincadeira junina. Essa dimensão ganha um destaque maior quando analisamos os grupos de bumba meu boi que foram criados em São Luís a partir dos anos 1940, em especial, o Boi de Pindaré, formado em 1960 por um grupo de estivadores negros migrantes do interior do estado. Dentre eles, destacou-se o senhor João Câncio dos Santos, natural do povoado Santa Maria, da cidade de Pindaré-Mirim, que chegou a São Luís nos anos 1940 e exerceu o ofício de estivador terrestre. Neste período, todo o fluxo de mercadorias era feito no antigo porto da cidade, já que a ilha de São Luís ainda não era conectada ao continente por via terrestre. Assim, grande parte dos recém-chegados à capital eram empregados na região portuária. Esta informação é importante, pois, nas entrevistas realizadas com os antigos mestres do Boi de Pindaré, estes afirmavam que João Câncio exercia um papel de articulador para que estes recém-chegados fossem empregados no porto e se filiassem ao sindicato dos estivadores. Além disso, Câncio também os levava para o bumba meu boi, para que participassem como membros do cordão.

João Câncio dos Santos. Fotografia de Marcel Gautherot. São Luís, 1948. Fonte: Instituto Moreira Salles.

 Nesse sentido, é possível notar uma indissociabilidade entre o universo do bumba meu boi e o mundo do trabalho. A partir de 1960, João Câncio fundou o Boi de Pindaré que se consolidou nos seus primeiros anos como um grupo de bumba meu boi organizado e comandado por estivadores. Sobre esse ponto, na entrevista realizada com Mestre Castro, atual amo do Boi de Pindaré, ele afirmou: “Eu diria que 90% eram estivadores […] ele segurava o brincante aqui, [se refere a João Câncio] dava aquele apoio, empregava as pessoas e elas ficavam brincando aqui no boi.” (Mestre Castro. Entrevista realizada em 27/05/2014).

Grande parte das pessoas que participou da fundação do Boi de Pindaré provinha da região conhecida como Baixada Maranhense e, possivelmente, tinha alguma ligação com o passado escravista da região, como foi possível observar nas entrevistas realizadas com Mestre Castro. Conforme seu depoimento, ele pertence a uma linhagem de cantadores de boi que existia no seu lugar de origem, o povoado Tijupá, “dentro das matas”. Foi possível também notar uma memória da escravidão na sua narrativa, ao lembrar que seu bisavô, conhecido como Popote, foi cantador de bumba meu boi e escravizado. Ele próprio explica: “Eu era filho do pessoal do Bacurizeiro, pessoal que foi escravo. Os pretos do Bacurizeiro” (Mestre Castro, entrevista realizada em 27/05/2014). Entre todos os depoentes, Mestre Castro é aquele que apresenta sua trajetória ligada mais diretamente ao passado escravista da região. 

É inegável que o bumba meu boi está historicamente entrelaçado com a população negra no Maranhão, mas é importante também considerar a presença indígena na manifestação, evidenciada pelas fontes históricas. Além dos pedidos de licença para a região urbana de São Luís, onde se observa a presença negra marcante nos cordões de bumba meu boi, muitas das solicitações também partiam do interior da ilha. Povoações que, no passado, eram espaços habitados pelos indígenas, e cuja população foi classificada como “caboclos” pelos censos de 1872 e 1890. Nestes censos, também estão presentes os termos “brancos”, “pretos”, “pardos” e “mestiços”.

Localização dos pedidos de licença para o Bumba Meu Boi na Ilha de São Luís. Niterói (PPGH/UFF), 2020. – Fonte: Martins, Carolina Martins.

Segundo o antropólogo João Pacheco de Oliveira, a tradução para o francês do Censo de 1890 serve como indicativo para o significado destas categorias. Os pardos foram caracterizados como métis e os “caboclos” seriam os indígenas, traduzidos como indiens. O censo de 1872 classificava os pretos e pardos entre “livres” e “escravos”, enquanto os caboclos foram classificados somente como “livres”. O autor sublinha “a impressão de que com a categoria “caboclo” se está falando dos indígenas, cuja escravização já fora proibida inclusive em atos da antiga legislação colonial”. 

Na primeira metade do século XIX, ainda havia indícios destes povoamentos indígenas na grande Ilha do Maranhão. A partir das informações dos censos, é provável que o mencionado interior fosse formado por uma população multirracial, com a presença de uma população negra marcante, mas também dos descendentes dos antigos habitantes da terra, chamados de caboclos. É importante destacar que é bem possível que muitos caboclos fossem classificados como pardos pelos agentes censitários e, por isso, nos dados fornecidos por este censo, a população classificada como “cabocla” apareça com um índice menor se comparada às outras. Como afirma o historiador Matthias Assunção, a interpretação sobre as categorias raciais utilizadas nos censos deve ser feita com bastante cautela, pois, além de serem construções sociais, as sutis gradações de cor eram também bastante subjetivas. Mesmo assim, não podemos prescindir de seu uso, pois “refletem uma realidade de discriminação, de hierarquia e de exclusão e, em alguns casos de identidade”. Dessa forma, assim como os cordões de bumba meu boi podem ser compreendidos como espaços de sociabilidade dos trabalhadores negros de São Luís, eles também o foram para os trabalhadores que habitavam a região do interior da ilha. A brincadeira fazia parte dos costumes dos trabalhadores rurais, dos caboclos, que organizavam nos seus povoados as festas de São João.

Caboclos de Pena. Marcel Gautherot. Bumba meu boi, festa popular. São Luís, 1944. – Fonte: Acervo Instituto Moreira Salles

A presença indígena é marcante nos cordões de bumba meu boi na atualidade. É uma memória que está ali sendo constantemente acionada pelos próprios brincantes dos cordões, seja nas indumentárias que remetem aos povos indígenas, seja nas toadas que nos seus versos evocam o “índio guerreiro, valente e defensor”. Nesse sentido, a partir do bumba meu boi é possível observar como relações afro-indígenas foram estabelecidas historicamente no Maranhão e como elas se encontram impressas na configuração estética dos cordões na atualidade. 

Assista ao vídeo da historiadora Carolina Martins no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF03HI03 (3º ano: Identificar e comparar pontos de vista em relação a eventos significativos do local em que vive, aspectos relacionados a condições sociais e à presença de diferentes grupos sociais e culturais, com especial destaque para as culturas africanas, indígenas e de migrantes); EF03HI04 (3º ano: Identificar os patrimônios históricos e culturais de sua cidade ou região e discutir as razões culturais, sociais e políticas para que assim sejam considerados); EF08HI27 (8° ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão e à crítica de ideias filosóficas e processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).Tags: Bumba-Meu-Boi, Afro-indígena, Patrimônio Imaterial.


Carolina Martins 

(98) 98928-8253

Doutora em História Social – PPGH/UFF;

Pesquisadora GPMINA/UFMA;

E-mail: [email protected]

Instagram: @flordecarulina


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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