“Negro tem que ir pro pau”: heranças da ditadura no genocídio do povo negro no Brasil hoje

A frase do título deste artigo foi proferida por Luiz Alberto Abdala, delegado da 44ª Delegacia de Polícia do Distrito de Guaianases, São Paulo, e transcrita em um documento confidencial (estrategicamente não assinado) da Divisão de Informações do DOPS/SP, datado de 15 de maio de 1978. O documento tratava das comemorações do dia 13 de maio em razão dos 90 anos da abolição da escravidão. Não à toa, a delegacia por ele capitaneada protagonizou o episódio racista que desencadeou na formação do Movimento Negro Unificado (MNU) meses depois, em julho de 1978. O Brasil ainda vivenciava uma ditadura militar quando Robson Silveira da Luz, feirante negro de 27 anos, foi acusado de roubar frutas e, por conta disso, sofreu torturas e foi assassinado por policiais militares do referido distrito. A reação da militância negra não tardou e, em resposta a esse e outros causos racistas, formalizou-se a entidade do movimento negro cuja existência alcança a contemporaneidade. 

Parte da série de fotografias “Todos Negros”, de Luiz Morier. O fotógrafo recebeu o Prêmio Esso de 1983 por esse trabalho

A frase de 1978 poderia facilmente ser proferida nos dias atuais. Ela retrata uma narrativa de cunho racista que simultaneamente antecede e se sobrepõe ao regime ditatorial vigente no Brasil entre 1964 e 1985. A ditadura valeu-se de diversos aparatos e valores preexistentes para garantir seu domínio sobre tudo o que acreditava ser subversivo. Um dos artefatos de tortura mais conhecidos da ditadura era o pau de arara – instrumento que remete aos tempos da escravidão, quando eram os negros escravizados os alvos da tortura e submetidos a tais expedientes. Por outro lado, verificamos a continuidade de práticas de submissão da ditadura nos dias de hoje, especialmente no tocante à violência policial que diariamente extermina pessoas negras no Brasil.

Como sabemos, a ditadura engendrou uma série de dispositivos de perseguição e punição daqueles que contrariavam os ditames oficiais do regime. Prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos forçados e censura política foram algumas das práticas mobilizadas pelo regime ditatorial para garantir a desejada “ordem social” e aniquilar seus opositores, tidos como absolutamente subversivos. A Doutrina de Segurança Nacional, formulada no interior da Escola Superior de Guerra (ESG), surgiu em meio ao contexto bipolarizado da Guerra Fria, no qual Estados Unidos e União Soviética disputavam influência sobre os demais países do globo. Ainda na década de 1950, a Doutrina ganhou novos contornos e em vez de se preocupar apenas com as fronteiras nacionais, incluiu no escopo de “defesa nacional” a noção de que no interior do país havia forças opositoras que agiam sorrateiramente para criar o caos, os “inimigos internos” contrários à ordem social em vigor. Esta premissa fomentou a completa reformulação do sistema de segurança do Estado brasileiro, conforme analisa a psicóloga Cecília Maria Bouças Coimbra em artigo pulicado em 2000.

No relatório final da Comissão Nacional da Verdade, lançado em dezembro de 2014, são listados 434 nomes de homens e mulheres mortos e desaparecidos entre os anos de 1946 e 1988, a maioria assassinada no período ditatorial. Certamente há uma subnotificação gritante nesses registros. A título de comparação, o número de pessoas mortas em ações policiais no Rio de Janeiro apenas no primeiro semestre de 2019 foi de 885 indivíduos, segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP). Dessas 885 pessoas, 80,03% são negras. Em tese, alcançamos esses números vivendo num Estado democrático de direito.

Podemos aferir que a não investigação a fundo dos crimes praticados pelo Estado durante a ditadura acarreta permanências extremamente nocivas para o Brasil dos dias de hoje, presumidamente democrático. A experiência de transição à brasileira foi bastante controlada pelos algozes militares e por eles articulada sob a insígnia da “teoria dos dois demônios”, que preconizava que havia excessos nos “dois lados”: dos agentes de repressão do Estado e dos militantes de esquerda que lutavam pelo fim da ditadura e, em dadas circunstâncias, cometeram crimes. Mesmo com a pressão de diversos movimentos sociais, em especial das organizações de familiares de vítimas, a Lei de Anistia de 1979 terminou por anistiar perpetradores e vítimas. 

Enquanto historiadora, temo em pensar no “e se?”, mas não posso deixar de vislumbrar que se no período de distensão política tivéssemos tido a chance de expor e denunciar as estruturas autoritárias que sustentaram as atrocidades da ditadura, tal como pautam há décadas diversos agentes que reivindicam por reparações do período ditatorial, talvez vivêssemos numa sociedade onde as forças policiais não fossem tão brutais e despudoradas. Nossas polícias são herdeiras diretas do aparato repressivo da ditadura. Segundo os argumentos desenvolvidos pelo professor de filosofia da Unifesp, Edson Teles no livro O abismo da história, o inimigo número 1 do Estado brasileiro deixou de ser o militante político antiditadura para se tornar o jovem negro pobre das periferias brasileiras.

Hoje em dia, apesar dos esforços de pesquisadores/as, movimentos sociais e demais entidades da sociedade civil para elucidar o que foi o nosso passado ditatorial, vivemos num intenso cabo de guerra contra a narrativa de negacionistas que reduzem a ditadura à “ditabranda”. Em 2019, esse discurso chegou ao Palácio do Planalto na figura do presidente Jair Bolsonaro, entusiasta declarado da ditadura e de seus torturadores, deixando tudo ainda pior.

Passadas mais de três décadas do fim do regime militar, persistem e se atualizam os efeitos de heranças estruturais e simbólicas legadas à sociedade brasileira, destacadamente no que tange aos assassinatos sistemáticos de indivíduos negros, em especial jovens homens negros. A não apuração e, consequentemente, a ausência de punições dos crimes praticados pelo Estado durante a ditadura acarretou a continuidade de um aparato repressivo, agora facilmente localizado nas entidades de segurança pública e privada. Ocorre que os poucos empenhos em elucidar o passado ditatorial brasileiro desaguam na dificuldade de erigir uma sociedade plenamente democrática e livre do racismo.

Concluo afirmando que defender um verdadeiro Estado democrático de direito e reivindicar por memória, verdade e justiça é também uma prática antirracista. Descortinar a violência de Estado dos anos de ditadura se converte no reconhecimento de muitas dessas práticas nas polícias de hoje, que seguem cometendo uma série de delitos com a certeza da impunidade. Com racismo, não há democracia. Sem verdade, memória e justiça, não há democracia.

Ato de rua. Manifestações em São Paulo com representantes do movimento negro – 2020 Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Assista ao vídeo da historiadora Gabrielle Oliveira Abreu no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas histórias na sala de aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF09HI19 (9º ano: Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura civil-militar no Brasil e discutir a emergência de questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos); EF09HI20 (9º ano: Discutir os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.).

 

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

 

Gabrielle Oliveira de Abreu

Mestranda no PPGHC/UFRJ; pesquisadora no Instituto de Estudos da Religião (ISER) e integrante do Mulheres Negras Decidem. E-mail: [email protected].

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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