Entre clube da luta e minimalismo: Onde fica o afrominimalismo?

Enviado por / FonteElle, por Joice Berth

Clube da Luta (Fight Club, 1999), do diretor David Fincher, completa em 2020 exatos 21 anos. Esse “jovem adulto” filme, na época de sua estreia, não despertou grande interesse do público, mas, ao longo dessas duas décadas, acabou se transformando em cult movie, aclamado e reverenciado, com direito a diversas análises e resenhas, principalmente sob a ótica psicológica trazida pelo filme. A história do protagonista sem nome, vivido pelo espetacular Edward Norton, que ao encontrar o enigmático e descompromissado Tyler Durden, brilhantemente interpretado por Brad Pitt, passa a confrontar o real significado de sua vida vazia e de seus hábitos viciados em consumo compulsório. Clube da Luta foi adaptado do livro homônimo escrito por Chuck Palahniuk em 1996, que apresenta, entre um soco e outro, duras críticas à sociedade de consumo e à condição do homem branco de classe média dos anos 90.

“As coisas que você possui acabam possuindo você.” Tyler Durden

Pensando hipoteticamente, a partir do desfecho da história que influenciou muita gente, que termina com implosões urbanas generalizadas e com a morte simbólica daquele que, para muitos, era o ID (a parte primitiva e inconsciente da nossa psique) materializado do protagonista, Tyler Durden, como o personagem de Edward Norton se reconstruiria dos estragos e poderia emergir para uma nova consciência de si e do mundo que o cerca?

Tornando-se minimalista.

A Netflix, desde 2017, mantém em sua grade de exibição o interessante Minimalism: a documentary about the important things (Minimalismo: um documentário sobre as coisas importantes). Nesse documentário, acompanhamos a peregrinação de dois amigos de infância, Joshua Fields Millburn e Ryan Nicodemus, ambos ex-trabalhadores do comércio e com salários em torno dos 50 mil dólares anuais, que registraram em um livro o processo de abandonar o estilo de vida cheio de excessos e escasso de satisfações pessoais, aderindo ao minimalismo.

Seriam eles uma versão realista e menos agressiva do protagonista sem nome de Clube da Luta, despertos por alguma forma de Tyler Durden que possa ter cruzado seus caminhos ou pensamentos?

Mas o que é minimalismo?

Minimalismo foi um movimento que contou com diversas expressões artísticas, mais predominantemente nas artes visuais ou que trabalham com a visualidade em algum nível, como é o caso da arquitetura. O movimento surge no final da Segunda Guerra Mundial e tem como princípio estruturante a crítica a todo e qualquer tipo de superficialidade, exagero ou excesso. Ganha força e maior visibilidade a partir dos anos 60. Especificamente na Arquitetura, é influenciado pela Bauhaus, escola alemã fundada pelo arquiteto Walter Gropius; pela De Stilj (que em holandês significa O Estilo), fundada em 1917 por dois pioneiros da arte abstrata, Piet Mondrian e Theo van Doesburg; e pela arquitetura tradicional japonesa, cujo conceito se concentra na eliminação do supérfluo, valorizando a essência e o significado dos elementos.

“Menos é mais”.

Essa frase, muito reproduzida, mas pouco referenciada, foi dita pelo arquiteto alemão Mies Van der Rohe, um dos expoentes do movimento minimalista na arquitetura. Não é exagero e tampouco especulação dizer que um movimento artístico cunhou um novo estilo de vida, pois todos os expoentes das artes minimalistas já partilhavam desses conceitos para além de suas produções artísticas.

Mas nesse famigerado século das visíveis consequências do consumismo compulsório e do exercício equivocado do materialismo, o minimalismo emerge, discretamente, mas com força, não propriamente como arte, e sim como caminho para a emancipação moral, psicológica, intelectual, física e espiritual de quem se dedica a compreender e adotar.

Os minimalistas entendem a necessidade de novos hábitos de vida que estejam realmente comprometidos com o bem-estar e a sustentabilidade real em todos os sentidos.

A questão é que temos um minimalismo mainstream, eurocêntrico, individualista, que se volta para as próprias feridas capitalistas, esquecendo-se de que o individual desconectado do coletivo não é sustentável. Esse minimalismo mainstream também está perigosamente confundindo essência com aparência, priorizando uma estética que reproduz estereótipos racistas, inconscientemente, como a brancura como representação do ideal de pureza e limpeza.

Quando olhamos para o minimalismo, na perspectiva trazida pelos protagonistas do documentário da Netflix, fica difícil não pensar que abandonar os excessos só é possível para quem experimentou, viveu e se desenvolveu a partir dele. O excesso do qual tentam se livrar é, na verdade, o que chamamos de privilégio social.

Para grande parte da população mundial, que jamais desfrutou de condições ao menos dignas, o excesso funciona como um “ouro de tolo”, que representa a ascensão a um universo que lhes foi negado. O “menos é mais” de Van der Rohe é tão repetido porque, instintivamente, sabemos que faz sentido. Mas só é possível compreender essa ideia quando olhamos de perto a brancura do minimalismo mainstream e enxergamos a fissura por onde escorre a essência do minimalismo, e que pode fazer com que esse estilo de vida, mais sóbrio e saudável, seja levado a sério. Nesse sentido, a perspectiva afrominimalista foi fundamental.

Diferente do minimalismo mainstream, que propõe um compromisso inconscientemente punitivista com a escassez, com a frieza, inclusive dos espaços de moradia absolutamente brancos e quase completamente vazios, o afrominimalismo propõe o descarte real e consciente dos hábitos destrutivos que a sociedade de consumo compulsório solidificou ao longo das décadas. O uso do “afro” como prefixo, que se soma à palavra “minimalista”, não é apenas uma reivindicação étnico-racial ou uma crítica à perspectiva branca unilateral predominante na cultura minimalista. É, antes de tudo, um exercício decolonial de reorganização do conceito para que sua potência se torne ativa e verdadeira, pois, para aqueles que vivem na base da pirâmide social, os excessos que pessoas brancas conscientes pretendem eliminar de suas vidas significam a possibilidade de materializar o equilíbrio social. Em outras palavras, o minimalismo, embora seja digno de críticas e ajustes, é um caminho importante para transformações sociais realmente efetivas, principalmente para aqueles que se chocam com as cenas dos Black Fridays ao redor do mundo, que são a mais pura expressão da miséria humana, que busca, de maneira decadente, compensar o vazio existencial com o acúmulo de coisas, objetos, produtos e tudo o mais que seja símbolo de status social. São o próprio Clube da Luta materializado.

O afrominimalismo nos ensina que antes dos descartes e rupturas, que também se tornaram compulsórios na cultura minimalista mainstream, precisamos sentir o que é essencial para nós. O olhar da negritude para a cultura minimalista reafirma que a essência é sentida e não definida de maneira mecânica. Nos ensina também que não é exatamente a ausência de cores que significa pureza, e sim a livre expressão de todas elas. O “menos é mais” também evoca a necessidade de nos libertarmos das amarras mentais que geram preconceitos e limitações. Do contrário, sem essa perspectiva mais abrangente e realista, o minimalismo traz mais a possibilidade de implosões e novas insurgências de Tylers Durdens do que a riqueza de uma vida simples, cujo bem-estar verdadeiro seja nosso bem mais precioso.

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