Entre a desigualdade e o bem estar, por Aldo Fornazieri

Por:Aldo Fornazieri

Muitas pessoas concordam com a tese de que as sociedades contemporâneas vivem um momento de mal-estar – agravado pelas crises norte-americana e europeia que eclodiram a partir de 2008. Com o arrefecimento do comércio mundial e da demanda chinesa por commodities, o próprio crescimento que vinha ocorrendo na América Latina e em outras partes do mundo já não é mais o mesmo. O mal-estar, evidentemente, não tem apenas causas econômicas e sociais. A crise ambiental, a falta de perspectivas coletivas, o colapso das ideologias, a crise de valores, a perda de sentido cultural, espiritual e civilizatório, também afetam negativamente as sociedades e os indivíduos. Mas quando os desatinos da espiritualidade e da cultura se combinam com os desatinos econômicos e sociais por conta do aumento da desigualdade, o mal-estar se agrava.

Desta forma, um dos eixos centrais do debate do momento diz respeito ao aumento da desigualdade. Thomas Piketty, com o seu já famoso livro “O Capital no Século XXI”, contribuiu de forma decisiva para colocar esse debate na ordem do dia. Mesmo ainda não lançado em português, já existem bons e profusos resumos do livro disponíveis na internet. A tese central do livro é a de que o mundo passa por um surto de aumento da desigualdade. Não se trata de mera afirmação impressionista. Embora o livro tenha um caráter mais histórico, o autor se valeu de métodos estatísticos inovadores para fundamentar suas conclusões. O foco de Piketty e de outros autores não é tanto o estudo do comportamento da distribuição da renda, mas o da riqueza. Para medir a distribuição da riqueza adotaram como fonte os registros tributários.

Outra constatação, que desmente paradigmas contemporâneos, é a de que a maioria dos mais ricos não o são por razões meritocráticas, mas em função da herança de fortunas, tal como ocorria no século XIX. Os níveis da desigualdade de hoje subiram a patamares semelhantes aos daquele século. Uma terceira conclusão que vale a pena mencionar é a de que o Estado não é neutro na concentração da riqueza. Ele a favorece, principalmente nos Estados Unidos, mas também na Europa. Nos países europeus, contudo, ela é atenuada pela remanescência de mecanismos redistributivos. Se o autor tivesse estudado o Brasil, perceberia que aqui o Estado agrava a distribuição da renda e da riqueza justamente por tributar mais os mais pobres.

A Igualdade e o Seu Declínio

O ideal da igualdade é antigo, ao menos tanto quanto as democracias de assembleias que existiram nos povos da Ásia Menor no Mundo Antigo, na Europa e, particularmente, na Grécia Clássica. Acompanhou também a trajetória republicana que nasce com Roma e se projeta até o final a Idade Média no norte da Itália e em outros países europeus. O surgimento das democracias modernas, fruto das revoluções americana e francesa, também elevou ao pináculo dos ideais humanos o valor da igualdade. Tocqueville, ao estudar a democracia na América, a identificava com a igualdade e via uma marcha inexorável de ambas rumo ao futuro.

Mas ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, parece que a marcha da igualdade e a marcha de democracia andaram por caminhos diferentes e a primeira se extraviou da segunda. As quatro primeiras décadas do século XX foram particularmente trágicas e desastrosas para boa parte da humanidade, mas especialmente para os europeus. Revoluções, lutas sangrentas, fome e miséria, colapso das democracias, regimes totalitários e as duas guerras mundiais abalaram os fundamentos civilizatórios e a própria fé na humanidade.

Dessa tragédia toda emergiu um amplo consenso no mundo ocidental – chamado consenso keynesiano por muitos estudiosos. O Estado do Bem Estar, o New Deal, o Mercado Social eram algumas designações desse consenso. Da centro-esquerda à centro-direita, ninguém questionava a necessidade da participação do Estado na economia e o seu papel regulador e distributivo. A solidariedade, a busca de maior igualdade e o distributivismo eram desdobramentos naturais desse período de reconstrução, de pacificação e de desenvolvimento. A assistência social e os serviços públicos não foram garantidos apenas aos pobres, mas adquiriram uma dimensão universalizante. O mercado regulamentado e a atenuação da lógica do lucro eram aceitos em nome do bem estar e da paz social.

Mas a partir de meados da década de 1970 todo esse mundo começou a ruir. O Estado passou a ser demonizado, Keynes foi teoricamente esfolado, Margareth Thatcher varreu direitos, os hippies foram substituídos ou se tornaram yuppies, práticas não reguladas do mercado financeiro levaram até aos últimos limites e exorbitância do lucro, a desregulamentação de mercados tornou-se um credo generalizado, a revolução e a reforma deram adeus, a luta de classes caiu no descrédito e Fukuyma proclamou o triunfo final do liberalismo e o próprio fim da história.

Razões da Crise

As razões da crise da igualdade e do bem estar são múltiplas. Algumas são de natureza estrutural e outras dizem respeito a valores e a ideologias. A globalização e as novas tecnologias produziram impactos negativos no papel regulador do Estado, enfraquecendo aspectos da sua soberania, exigindo flexibilizações de mercados e das relações de trabalho. Se o Estado perdeu fontes de financiamento por um lado, seu gigantismo gerou déficits, por outro.

O capital físico e financeiro adquiriu mobilidade internacional, aumentando seu poder de barganha junto aos trabalhadores e ao poder público, enfraquecendo a ambos. A incapacidade de os governos apresentarem políticas preventivas e o enfraquecimento do distributivismo, com uma consequente mercadorização da seguridade social, tiveram o reforço das perspectivas individualistas, das atitudes políticas anti-impostos e do turvamento dos valores da solidariedade e da igualdade. Com o enfraquecimento dos sindicatos enfraqueceu-se também a luta pelo bem estar social. Novas bandeiras de teor moralizante, as lutas das minorias e as lutas ambientais canalizaram as energias e as paixões dos novos movimentos sociais.

O comunismo, com seu colapso em 1989, deixou de exercer uma função reguladora externa aos limites da ambição por lucros ilimitados.  A socialdemocracia e, ademais, a esquerda ocidental, foram cooptadas pelo quadro hegemônico do capital financeiro e transnacional, tornando-se sócias desse sistema, favorecendo a captura das democracias para viabilizar os interesses do grande capital. A intelectualidade também foi capturada e as ciências sociais aplicadas – sociologia, política, economia, administração etc. – passaram a rezar pela cartilha da matematização e da quantificação, abandonando o terreno da realidade social e da história.

Em suma, o aumento da desigualdade é também o resultado do alinhamento ideológico das castas dos comerciantes, dos guerreiros e dos sábios, para usar a linguagem de David Priestland. Maquiavel tinha razão quando dizia que o bem e o mal se distribuem de forma mais ou menos igual no tempo. Mas admitia que, em determinados momentos, poderia ocorrer desequilíbrios, quase sempre em favor do mal. Este é um momento em que o mal, inequivocamente, domina. Lutar, em múltiplas frentes, para restabelecer algum tipo de equilíbrio, resgatando o bem estar e a igualdade, é o que nos chama para as trincheiras nesse momento.

Fonte: Ggn

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