Estudo sobre comunidade quilombola abolição

O trabalho “Quilombo Abolição: História e Identidade (2005-2018)”, de Cléia Batista da Silva Melo, buscou compreender o processo de construção e fortalecimento da identidade étnica dos remanescentes da Comunidade Quilombola Abolição, localizada no município de Santo Antônio do Leverger, em Mato Grosso, a 60 km de Cuiabá, na BR 364, próximo a Serra de São Vicente durante os anos de 2005 e 2018.

Os quilombos contemporâneos são espaços de resistência, de autonomia, de luta por liberdade e simbolizam a afirmação da identidade negra. Os remanescentes dos quilombos lutam por reparações, reconhecimento e valorização de suas histórias e contribuições dadas para a formação da sociedade brasileira.

A Comunidade Quilombola Abolição é o objeto dessa pesquisa com suas particularidades e singularidades. Foram analisados documentos tais como: Requerimentos e Cartas de Sesmarias, Certidões de Batistério e Escrituras de Terras. O método de pesquisa foi a prosopografia (biografia coletiva) que possibilitou conhecer a população remanescente daquela comunidade, daqueles que estão estabelecidos no território e dos que estão aguardando a titulação das terras para regressarem. O que possibilitou a reflexão sobre a construção da identidade étnica dessa comunidade quilombola.

O trabalho nasceu da necessidade de se contar a história dos remanescentes da Comunidade Quilombola de Abolição, bem como as atuais questões identitárias que permeiam as suas vidas, e a pesquisadora Cléia Melo justifica o motivo do recorte temporal de 2005 a 2018: “O ano de 2005 é o momento em que a Comunidade de Abolição recebe a certificação da Fundação Cultural Palmares, no dia 08/08/2005. E 2018, marca o início de incertezas em relação à política do país, pois é o momento em que o presidente eleito é alguém declaradamente contrário aos movimentos sociais, com ideologias eugênicas, elitistas, capitalistas e racistas. Ideologias essas que vem na contramão de tudo o que os movimentos sociais e o movimento negro galgaram nas últimas décadas no que diz respeito às leis e reparações conquistadas pela população negra no Brasil”. E, finaliza: “torna-se mais que necessário nesse momento discussões e reflexões a respeito das conquistas e lutas dos agentes históricos que ajudaram a erguer esse país, para que retrocessos não venham a acontecer”

Cléia Melo explica por que estuda quilombos no Brasil significa tocar em questões delicadas: “Isso se deve ao discurso oficial de uma história tradicional voltada aos interesses de uma elite política, econômica e social, que sempre subjugou o papel do negro na sociedade brasileira, dando a esses somente a função de coadjuvantes da história, como inferiores, submissos, obedientes e passivos perante todo o sistema escravista. Porém, a historiografia brasileira nas últimas décadas vem mostrando o oposto desse discurso, pois hoje sabemos que onde houve o negro escravizado houve também resistência, negociação e transformação.”.

As pesquisas mostram que o papel do negro no Brasil perpassa a história da construção identitária e resiste até hoje. E essas identidades podem ser encontradas nas comunidades negras, seja no campo ou na cidade, no centro ou nas fronteiras. Essas comunidades de remanescentes de quilombolas estão podendo contar suas próprias histórias.

Cléia Melo explica por que é importante estudar Quilombos: “Entender a dinâmica do processo de aquilombamento no Brasil se faz necessário para expandir a visão sobre esses locais de continuidade de vida fora do cativeiro. De forma que essas comunidades não sejam vistas somente como locais de fuga, mas principalmente como locais de continuidade, espaços de discussões, de debates, de organizações bem estruturadas quanto à economia, a divisão de tarefas, a política, a cultura, a diversidade coletiva e a construção de uma identidade forte e resistente daqueles que estavam dispostos a mudar a realidade cruel a qual foram impostos.” É necessário ressiginificar os quilombos e os quilombolas do século XXI.

Segundo a pesquisadora Cléia a história dos povos africanos no Brasil em sua grande maioria é reduzida ao cativeiro e a escravidão, por isso se faz necessário ressignificar. E rever essas histórias pelo olhar dos quilombolas é libertador e revelador. E, conclui: “O sentido da resistência, da luta e da conservação de suas memórias que corroborou muito para que eles fossem protagonistas das suas próprias histórias, em meio a tantas intempéries”

 

Imagem retirada do site Mega Pop

Refletir sobre o papel dos invisíveis da história é função determinante dos historiadores, que tem trazido histórias que causam uma ruptura na historiografia tradicional e oficial que durante séculos monopolizou o saber. Esses estudos subalternos -termo cunhado pelos estudiosos e críticos: John Beverly, Robert Carr, José Rabasa, Ilena Rodriguez, Javier Sanjines e Carlos Vinícius da Silva Figueiredo – que voltam os olhares para os grupos marginalizados, que não tiveram voz ou representatividade

No trabalho “Quilombo Abolição: História e Identidade (2005-2018)” há o registro de que: “As manifestações culturais e a construção identitária somadas às diversas ações de resistência dos quilombolas causaram prejuízos econômicos, desestabilizou o controle sobre os escravizados e influenciou os cativos a questionar o sistema, a enxergar possibilidade de vida além das senzalas, ver a possibilidade da autolibertação. Pois o quilombo era um enclave dentro do regime escravista, uma microssociedade alternativa à disposição do trabalhador escravizado segundo Adelmir Mato Fiabani.”

O quilombo representou uma influência social no Brasil escravocrata, resultando no processo de autolibertação e construção das identidades que persistem até hoje.

Comunidades remanescentes de quilombolas são comunidades negras que ocupam territórios herdados de seus antepassados. Essas comunidades são frutos da luta e da resistência ao modelo escravagista instaurado no Brasil.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu Artigo 68 declara às comunidades de quilombolas o direito à propriedade de suas terras, assegurando a propriedade definitiva aos remanescentes que estejam ocupando suas terras e atribuindo ao Estado o dever de emitir a titulação imobiliária. No que tange ao reconhecimento histórico da contribuição da população negra no Brasil é tido como um marco e resultante da memória coletiva geracional e de suas ações, reflexões, lutas políticas ao direito a terra, as reparações históricas e o reconhecimento da descendência dos ancestrais quilombolas. As comunidades quilombolas brasileiras ganharam visibilidade crescente do poder público desde então.

Conforme Cléia “O objetivo do estudo prosopográfico foi de buscar saber quem são e como vivem os remanescentes quilombolas da comunidade Abolição. O estudo iniciou-se em julho de 2019 e foi até janeiro de 2020. Foi aplicado o questionário em 30 pessoas, em Santo Antônio do Leverger e em Cuiabá,com aqueles que residem fora do território da comunidade Abolição; essas trinta pessoas se autorreconhecem remanescentes daquela comunidade”.

Durante a pesquisa e aplicação do questionário a pesquisadora observou entre as pessoas com mais idade há ligações afetivas que as conectavam ao território quilombola: “Eram sentimentos saudosistas, sentimento de tristeza, alegria, revolta e esperança. Em cada expressão, percebi uma carga emocional que cada uma daquelas pessoas estava carregando. A partir isso vi que precisava adotar um olhar cauteloso e foi possível notar a relação afetiva e simbólica que aqueles remanescentes possuem com o território

Cléa finaliza: “É assim que a construção identitária da comunidade quilombola Abolição está se fortalecendo, e esse fortalecimento reflete na luta e na busca por reconhecimento daquele grupo social naquele território, reconhecimento de uma ancestralidade que ali se organizou social, econômica e culturalmente. E com base nesse reconhecimento e nessa valorização exigem o cumprimento de fato da legislação que lhes garantem reconhecimento e reparações materiais e imateriais.”

Ao constatar que mais da metade dos remanescentes está fora do território e que são raros os estudos, pesquisas ou referencial teórico com esse enfoque a autora propoem: “que haja novos estudos, discussões e reflexões sobre esses sujeitos que possuem ancestralidades, memórias e histórias vinculadas a terra quilombola, mas que infelizmente não estão resguardados pela legislação por estarem fora do território”.

A pesquisa levantou cerca de 140 famílias remanescentes daquele território encontram-se morando fora da terra, no perímetro rural e urbano de Santo Antônio de Leverger, Várzea Grande e Cuiabá. Enquanto uma pequena parcela resiste em permanecer no território mesmo que às margens das estradas ou beiradeando as cercas das grandes fazendas. Cléia comenta: ”Atualmente residem na comunidade Abolição cerca de 22 famílias, que retiram o sustento de atividades diversas, como chacareiros, funcionários de empresas mineradoras, hotéis, restaurantes e escola. Também existem os que trabalham na terra plantando para complemento da alimentação. Ao longo das últimas décadas, vários outros membros da comunidade foram obrigados a procurar outro domicílio, motivados por diversas razões: doenças, busca por emprego, estudo dos filhos ou porque foram expulsos de suas terras.”.

Porém Cléia alerta sobre o porque da discrepância dos dados entre quilombolas que estão no território e os que estão fora : “porém, precisamos levar em consideração o fluxo de mobilidade de algumas dessas famílias, pois ora estão no território, ora estão fora dele, então esse número pode ter pequena variação a depender do período analisado”.

Na sequencia a pesquisadora levanta uma indagação sobre a obrigatoriedade de ocupação do território “é uma exigência justa, se pensarmos do ponto de vista das inúmeras circunstancias que dificultam a permanência dos remanescentes quilombolas em seus territórios? Desde condições difíceis de sobrevivência como falta de atendimento de saúde, falta de incentivo governamental para o trabalho e o cultivo da terra, até interferências externas como os conflitos com fazendeiros e grileiros.Por esses motivos devemos refletir sobre os remanescentes que tiveram que sair de seus territórios, mas que ainda mantém o vínculo com os que ficaram e possuem histórias e memórias ligadas a ancestralidade negra que fincou raízes naquela terra por séculos. Podemos questionar então que a legislação ao exigir a permanência dos remanescentes no território está sendo uma legislação excludente? Que não leva em consideração as dificuldades da permanência e os motivos que levaram essas pessoas a abandonarem suas terras?”

Esses questionamentos deveriam ser feitos por pesquisas e análises realizadas pelos órgãos governamentais, ONGS e pesquisadores para identificarem os reais motivos que afastaram os remanescentes de seus territórios e os possíveis interesses para que houvesse o retorno. Só assim, haveria a compreensão da dinâmica social e a relação dos remanescentes dentro e fora de seus territórios.

Uma reanálise desses sujeitos de suas próprias histórias, mas que esse ressignificar seja construído pelos próprios remanescentes levando em consideração como os próprios sujeitos se autorrepresentam e quais os critérios político-organizativo que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identidade, referência de Alfredo Wagner Berno de Almeida

Cléia ressalta a necessidade de se refletir sobre o significado da territorialidade e do ser quilombola no presente “com a elaboração de politicas públicas que venham a garantir direitos aos remanescentes mesmos aqueles que por motivos diversos foram obrigados a sair de seus territórios, pois precisamos levar em consideração que as comunidades quilombolas e seus remanescentes não são os mesmos e nem iguais aos do passado, passaram por processos de mudanças, reoorganização e reconstrução da identidade étnica quilombola, porém possuem o vínculo com a terra dentro ou fora do território, possuem ancestralidades vinculadas a população africana e afro-brasileira ligadas ao processo escravocrata, histórias e memórias que precisam ser respeitadas, valorizadas, legitimadas e reparadas dentro do processo legal”.

Esse ponto de vista enfatizado na pesquisa nos leva a refletir acerca dos direitos não só dos remanescentes que continuam no território quilombola, mas também daqueles que tiveram que abandonar suas terras para viverem em outros lugares, mas que ainda tem a esperança e o desejo de regressarem aos seus locais de vivência e pertencimento histórico, simbólico e de memória.

 

Imagem retirada do site Mega Pop

Consoante a autora a reflexão a ser feita “é voltada para o reconhecimento dessas pessoas que saíram de seus territórios em determinado momento de suas vidas, (infância, ou na idade adulta) é necessário considerar o tempo de convivência coletiva, social, cultural e simbólica que fortalecem os vínculos entre o passado e o presente. Um passado que está na memória viva dos remanescentes, onde a simbologia, hábitos e práticas são elementos necessários para legitimar a história de uma ancestralidade que permanece viva no presente através dos herdeiros dos quilombos”. E conclui que: “o fato de não estarem presentes fisicamente no território não significa que essas pessoas não sejam remanescentes quilombolas pertencentes àquela comunidade e aquele território, pois carregam dentro de sí todo aprendizado e vivencia adquirida no tempo em que viveram naquela sociedade. Práticas, hábitos, culturas, saberes, aprendizados e todas as demais caracteristicas que os ligam aquela ancestralidade os fazem pertencentes aquele território étnico quilombola. Com isso precisamos refletir acerca dos direitos materiais e imateriais desses agentes sociais, sobretudo o direito à terra também para os que estão fora do território e que pretendem regressar a ela resguardados por seus direitos legais de posse e titulação”.

Sendo assim é necessário ir além do território para compreendermos a identidade quilombola, pois por mais distante que esses possam estar do espaço físico, sua história e memória os acompanham para onde forem levando significados e continuidade daquilo que seus ancestrais deixaram como marcas.

Desafios e expectativas para população quilombola em tempos de retrocesso e retiradas de direitos

A população negra ainda precisa estar em constante luta, devido aos ranços racistas que perpetuam a nossa sociedade. Para Maria de Lurdes Bandeira, antagonicamente, é em virtude do estabelecimento do racismo e da desigualdade vigente que as comunidades rurais negras buscam como forma de resistência aos padrões integrativos impostos pelo sistema de classe.

A população remanescente quilombola tem hoje uma das principais bandeiras a luta contra o racismo. Nas últimas décadas, assumiu um protagonismo ao chamar a atenção da sociedade e do poder público para a necessidade de reparar os danos históricos que a escravidão, a exclusão e as desigualdades sociais e raciais que impactaram a população negra. Precisamos compreender que é uma luta de todos, pois essa dívida histórica é de toda a sociedade brasileira. A conscientização nos levará a exigir do poder público a inclusão de políticas voltadas e com vistas a reparação de direitos da população negra nos espaços de poder e de saber.

A pesquisa buscou analisar a importância dos quilombos desde o passado até a contemporaneidade, refletir sobre o papel da comunidade Abolição no nosso Estado e enquanto agentes históricos. Buscou analisar como opera a dinâmica da construção identitária, em que medida ela fortalece os membros da comunidade e de que forma estimula o conhecimento da própria história e seus direitos, enquanto populações tradicionais e cidadãos(ãs) brasileiros(as).

Cléia Melo concluiu: “que tanto os quilombos do passado como os contemporâneos representam espaços de autonomia, de luta e afirmação identitária da população negra e teve sua história vinculada ao período escravista e, por isso, sofreu danos que precisam ser reparados. Entre esses danos está o dever de reparação quanto ao reconhecimento e valorização da história da população negra como agentes contribuidores para construção do Brasil e formação do povo brasileiro, além da devolução de seus territórios reconhecidos legalmente a partir da Constituição Federal de 1988.”.

É nesse contexto que a Comunidade Abolição se insere como um território de remanescentes que buscam reconhecimento legal e a titulação de suas terras, e estão se mobilizando no sentido de fortalecer a identidade étnica. Compreender esse processo na comunidade foi um desafio da pesquisa proposta, pois há um grande número de remanescentes que se encontra fora do território; e isso é um dos fatores que dificultam o fortalecimento da comunidade na luta pela reparação de seus direitos e a titulação de suas terras. Mas, independentemente da ocupação física do território a autora afirma que tem que fazer um exercício de se “lançar outro olhar sobre o ser quilombola e sua relação com o espaço físico. A distância do território físico não distancia da história, da memória, da continuidade simbólica e do pertencimento aquela ancestralidade. É nessa perspectiva que refletimos sobre a necessidade de ressignificar o ser quilombola e o território quilombola constantemente, pois a identidade é dinâmica, é mutável e adaptável”.

A ressignificação e a construção da territorialidade quilombola são imprencindíveis para uma identidade coletiva que busca mudanças e melhorias concernentes aos direitos da população remanescente dos quilombos, de forma que esses possam garantir e legitimar as comunidades a partir de seus próprios critérios de sociabilidade, de produção e reprodução coletiva baseada na ancestralidade étnica e multiétnica que ocorre na dinâmica das relações sociais.

Imagem retirada do site Mega Pop

Cléia Batista da Silva Melo – Mestre em História, pela linha de pesquisa Fronteiras, Identidades e Culturas, do Programa de Pós Graduação em História (PPGHIS)/ UFMT. Especialista em Metodologia do Ensino de História.Graduada em História. Professora da Rede Estadual de Ensino. Pesquisadora do Grupo EPIFAN- Estudos sobre políticas e ideias na fronteira americana (grupo de pesquisa que estuda as populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, e demais povos tradicionais e de fronteira).

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