Filipe Zau: O negro e o Estado Novo – Angola face à ideologia política do Estado Novo

por Filipe Zau

Para uma melhor compreensão das políticas educativas nas décadas de 30 e 40 do regime do Estado Novo em Angola, tornar-se necessário conhecer a visão de alguns dos seus ideólogos em relação ao Outro, africano, maioritariamente negro e colonizado.

Algumas opiniões, aqui, apresentadas estão inseridas numa obra, editada pela “Oficina do Livro” e intitulada “Henrique Galvão; Um Herói Português”; um trabalho biográfico do investigador Francisco Teixeira da Mota, advogado, licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pós-graduado pelo Instituto da Comunicação Social da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

O facto de, este autor, na bibliografia consultada, ter citado três artigos meus, publicados no Jornal de Angola de 29 de Agosto, 4 e 9 de Setembro de 2009, sob os títulos: “Novos dados, novas elucubrações”; “Dados sobre o assalto ao paquete Santa Maria; e “O navio Santa Maria e o 4 de Fevereiro”; proporcionou-me (como não podia deixar de ser), uma enorme satisfação e levou-me a dedicar a este seu trabalho uma atenção especial. Isto, porque o assalto ao paquete Santa Maria está de forma indelével, associado a uma pequena parte da história contemporânea angolana e, sem dúvida alguma, embora de forma circunstancial, a uma pequena parte da história do Clube Marítimo Africano, já que alguns dos seus associados viveram, directamente, durante vários dias, este relevante acontecimento histórico.

Este assunto foi matéria de investigação do médico e investigador Edmundo Rocha, através de um opúsculo intitulado “O Clube Marítimo Africano”, bem como ainda de uma secção de um capítulo da sua obra maior “Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano (período 1950-1964), Testemunho e Estudo Documental”. Posteriormente, com o trabalho de publicação de um livro da minha autoria “Marítimos Africanos e um Clube com História” e com a edição de dois lítero-musicais feitos em parceria com o Filipe Mukenga, “Canto da Sereia, o Encanto” e Canto Segundo da Sereia, o Encanto” (este último em fase de pré-lançamento), associei-me, de corpo e alma, ao trabalho de investigação da história do Clube Marítimo Africano. Uma agremiação sui generis, que juntou num mesmo centro de interesses, embarcadiços africanos da marinha mercante portuguesa, maioritariamente, iletrados e estudantes africanos e de Goa, alguns deles, inseridos num projecto revolucionário, dirigido às independências das ex-colónias portuguesas.

O negro e o Estado Novo

A concepção ideológica dos republicanos portugueses do Estado Novo, depois de conhecidas as opiniões sobre negros e mestiços dos ex-governadores de Angola, Vicente Ferreira e Norton de Matos, verificamos que pouco ou nada diferia da dos ideólogos da I República, que, em termos de “raça”, os consideravam inferiores aos brancos e erguiam falsas teorias, que nunca tiveram qualquer significado científico.

Vicente Ferreira, antigo alto-comissário e governador-geral de Angola, dizia que os africanos eram tão atrasados, que se mostravam incapazes de ser civilizados, mesmo pelos portugueses. Afirmava, então, que os ditos “indígenas civilizados”, tal como todos os sociólogos colonialistas reconheciam, não passavam, em regra de “arremendos grotestos de homens brancos. E acrescentava a esta sua opinião ainda o seguinte: “salvo raras excepções […] o ‘indígena civilizado’ conserva a mentalidade de primitivo, mal encoberta pelo fraseado, gestos e indumentária copiados do europeu.”

Norton de Matos, crítico ousado da política e prática africanas, temia que a inferioridade dos africanos pudesse diluir ou mesmo arruinar a eficiência da colonização portuguesa, se o Governo não pusesse “durante um século pelo menos, os maiores obstáculos à fusão da raça branca com as raças indígenas de Angola”.

No início da década de 30, em pleno Estado Novo, Portugal caracterizava os africanos como intrinsecamente inferiores, embora se afirmasse oficialmente a ausência de racismo entre os colonizadores portugueses. Mas na prática havia uma diferença muito grande no modo como viam e tratavam os negros. A própria auto-adulação de Portugal, acerca da sua “missão civilizadora”, dependia necessariamente em impor aos africanos o reconhecimento dessa inferioridade. Em 1933, Salazar e o seu ministro das colónias, Armindo Monteiro, foram explícitos a esse respeito: Monteiro afirmou que a colonização exigia “uma infinita tolerância e piedade pelo que lhe é inferior na gente do sertão.”. Já Salazar defendia, que era imperativo para Portugal salvaguardar “os interesses das raças inferiores, cuja inclusão sob as influências do Cristianismo é um dos maiores e mais ousados feitos da colonização portuguesa.” Posições estas que pouco diferiam das do arcebispo titular de Ossirinco, D. João Evangelista de Lima Vidal, que, no Porto, ao preferir uma conferência sobre a “Acção Missionária” no teatro da I Exposição Colonial, instalada no Palácio de Cristal, cuja inauguração decorreu no dia 16 de Junho de 1934, chegou a afirmar o seguinte: “os pretos eram vítimas de uma tão prodigiosa preguiça que mais se assemelhava ao sono ou à morte, não tendo sequer força, como uma vez observara, para enxotar as moscas que se acavalavam umas por cima das outras aos cantos ramelosos dos olhos ou na escorrência das suas chagas”.

Uma outra comunicação dessa exposição, a de Maria Irene Leite da Costa, com o título “Contribuição para a avaliação do nível mental nos indígenas de Angola” apresentada no Congresso de Antropologia Colonial, tirava duas conclusões: “a primeira, no sentido de que as experiências efectuadas davam ‘para os indígenas de Angola um nível mental correspondente aos das crianças europeias entre 6 e 13 anos’; e a segunda, que ‘a idade mental encontrada para cada um dos indígenas era a correspondente ao seu adiantamento escolar’.”

O Professor Doutor Eusébio Tamagnini, de Coimbra, que, segundo António Nóvoa, durante a I República, quando se referia ao desenvolvimento do ensino, falava-nos do “saber”, considerando que, o currículo deveria, indiscutivelmente, ser da competência do Estado, mas que os programas dos cursos deviam constituir atribuição exclusiva dos “corpos docentes”. Já no Estado Novo alertava para o que ele entendia serem os perigos da mestiçagem: “quando dois povos ou duas raças atingem níveis culturais diferentes e organizam sistemas sociais completamente diversos, as consequências sociais da mestiçagem, são, necessariamente desastrosas”, não só para a Família e para o Estado, como afirmara o ilustre conferencista, como para o próprio mestiço: “rejeitado sistematicamente por todos, o mestiço vagueia como um pária sem esperanças de salvação possível”.

Quanto ao cidadão português vulgar que visitou aquela exposição, sobretudo, para “ver os pretos” e a parcial nudez das negras, levaram a que o Jornal de Notícias organizasse “a eleição da ‘Rainha das Colónias’ o que permitiu que, para gáudio dos seus leitores, durante uma semana, fossem publicadas na primeira página do jornal, fotografias de ‘corpos de ébano, estuantes de vida, ricos de saúde, de perfil e de frente”, sob títulos como “As pretas não receiam as brancas” ou as “Vénus Negras”.

A política educativa

O Diploma Legislativo n.º 238, de 17 de Maio de 1930, passou a estabelecer as principais diferenças entre o ensino para indígenas (os não assimilados) e o ensino primário elementar para os não-indígenas (de origem europeia e africanos assimilados).

De acordo com a nova política educativa, o ensino para os indígenas ocorria, principalmente, em “escolas rurais” e “escolas-oficinas”, ambas vocacionadas para o trabalho manual e para a aprendizagem de um ofício, do que para o desenvolvimento multifacetado das crianças africanas. Já o ensino para os não indígenas, realizado em “escolas infantis” e em “escolas primárias”, “visava dar à criança os instrumentos fundamentais de todo o saber e as bases de uma cultura geral, preparando-a para a vida social.” Os propósitos eram claros e bem elucidativos: “o ensino indígena tem por fim conduzir gradualmente o indígena da vida selvagem para a vida civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo para a luta da vida, tornando-se mais útil à sociedade e a si próprio (Artº 1º). O ensino primário rudimentar destina-se a civilizar e nacionalizar os indígenas das colónias, difundindo entre eles a língua e os costumes portugueses (Artº 7º)”.


Filipe Zau

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

 

 

 

Fonte: Jornal da Agola

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