Frequentar festas suspeitas, novo tipo penal

Acabou de ser divulgado que a Justiça decidiu soltar 137 pessoas que estavam em prisão preventiva desde o dia 7 de abril (uma pessoa já tinha sido liberada por motivo de uma viagem internacional), do total de 159 pessoas inicialmente presas dentro de uma festa, presumivelmente organizada por uma milícia, num sítio em Santa Cruz. Operação policial em que, diga-se não tão de passagem, o principal suspeito escapou,  e morreram quatro pessoas, o que abre o questionamento de se ela não poderia ter sido melhor planejada de forma a evitar o confronto armado.

Por Ignacio Cano Do Jornal Do Brasil

Foto: Reprodução/ Uol

O que deve causar espanto não é a soltura dos 138, mas o fato de eles terem ficado quase três semanas em prisão preventiva, apesar de a Polícia Civil já haver manifestado que não possuía nenhuma evidência nem investigação prévia contra eles e apesar do árduo trabalho da Defensoria Pública para denunciar o abuso. O critério inicial já indicava que não havia muita investigação por trás da maioria das prisões: mulheres podiam ir embora, mas os homens iam presos. Ao que tudo indica, essas pessoas foram mantidas presas pelo simples fato de participarem de uma festa relacionada à milícia porque, segundo autoridades, elas deveriam ter percebido que a festa era organizada por grupos criminosos.

O abuso da prisão provisória é uma tradição no Brasil, mas este caso é especialmente escandaloso. É simplesmente vergonhoso que o MPRJ e o Judiciário tenham se curvado, inicialmente, ao pedido da Polícia Civil, pedido que tinha clara motivação política. Num momento em que se cumpriam dois meses da intervenção federal e dez anos da CPI das milícias, e considerando as suspeitas que pairam sobre a morte de Marielle Franco e também a promessa dos interventores de atuar contra a corrupção policial, era imperativo que as autoridades de segurança pública mostrassem que estavam tomando medidas duras contra a milícia. E que melhor que mostrar cento e cinquenta supostos milicianos presos numa só operação? Nesse ritmo, seria possível acabar com as milícias em poucas semanas! Portanto, essa mensagem política que pretendia ser enviada é o que está por trás da permanência na prisão de pessoas cujo único crime, ainda não tipificado no Código Penal, foi participar de uma festa.

Com esta mesma lógica, a polícia poderia prender todos os participantes em bailes funks nas comunidades, onde é comum a presença de traficantes. E todos os que compram produtos dos milicianos, mesmo que obrigados, poderiam também ser atuados por estarem se relacionando comercialmente com o crime organizado. O passo seguinte seria ir nas festas organizadas pela Odebrecht e por outras empresas construtoras publicamente envolvidas em crimes no passado, e prender também todo mundo. Afinal, essas pessoas que estavam festejando não saberiam que essas organizações tinham cometido crimes graves no passado recente? Se não fosse suficiente, um amigo sugeriu a possibilidade de se prender todos os assistentes ao Sambódromo, gringos incluídos, pois é notório, e gringo também deveria saber, que a contravenção é um financiador fundamental do Carnaval carioca. Abusos aos direitos individuais cometidos em nome da luta contra o crime não são novidade, mas atropelos cometidos em função de uma lógica política são ainda mais graves.  Na deriva que o Brasil vive nos últimos anos, a política está cada vez mais judicializada e a justiça, politizada. Por outro lado, não deve surpreender que as cadeias fluminenses não contem  com vagas suficientes para albergar criminosos perigosos, se elas precisam ser usadas para participantes em festas.

* Sociólogo, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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