Geledés – Caminhos e Legados: a trajetória do movimento de mulheres negras

Enviado por / FonteDo Emergemag

Artigo produzido por Redação de Geledés

Websérie comemora os 34 anos de Geledés Instituto da Mulher Negra. Conheça Day Rodrigues, diretora da obra fundamental na luta antirracista.

Na cultura dos povos Yorubás, que tradicionalmente habitam regiões que hoje são a Nigéria e outros países da África Ocidental, Gèlède é, originalmente, uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso, que expressa o poder das mulheres sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem-estar da comunidade.

Mais de dois mil anos após sua concepção, a sociedade feminina inspirou o nome da organização brasileira Geledés Instituto da Mulher Negra, fundada por Sueli Carneiro em 1988 com foco na defesa de mulheres e negros. Referência nacional em gênero e raça, a organização atua em ação política e social, educação, saúde, trabalho e direitos humanos. Nas últimas três décadas, participou ativamente de diversos debates e marcos históricos para a militância negra no Brasil, entre eles a implementação de cotas raciais no ensino superior.

No dia 25 de julho, data que celebra Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, o instituto lançou a websérie Geledés – Caminhos e Legados. Dividido em seis episódios, a série documental resgata a memória institucional de Geledés e do movimento negro brasileiro – e das mulheres que o impulsionam. Disponível no canal do YouTube da instituição, o último episódio foi ar na segunda-feira (29/08).

A websérie tem produção executiva da produtora Duas Rainhas. Criada em 2018, a empresa desenvolve projetos audiovisuais e de multimídia, além de atuar em formação pedagógica antirracista e ter equipe composta por pessoas negras e LGBTQIA+.

DAY RODRIGUES: DIRETORA DE GELEDÉS CAMINHO E LEGADOS (Foto: Daisy Serena)

À frente da Duas Rainhas está Day Rodrigues. Produtora, diretora e roteirista, Day tem sólida trajetória no audiovisual e assinou videoclipes, séries, curtas e longas-metragens. Entre as obras de destaque estão as séries “O Enigma da Energia Escura”, criada por Emicida e Evandro Fióti e indicada no shortlist do New York Film Festivals 2022; e “Quebrando o Tabu”, premiada no New York Festivals TV & Films e vencedora no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

Eu, Talitha Dejesus, repórter de Emerge Mag, troquei uma ideia com Day sobre a websérie, trabalho coletivo, encontro de gerações e potências negras. Veja, abaixo, os melhores trechos da conversa. Ah, e não se esqueça: a kì í nìkan jayé (não se desfruta uma vida sozinha).

EMERGE MAG: A Geledés tem uma trajetória longa e diversos projetos realizados nas últimas três décadas. Como foi compilar toda essa história numa websérie?

Day Rodrigues: Geledés – Caminhos e Legados é um projeto do Programa de Comunicação de Geledés e surgiu a partir da construção do acervo multimídia da instituição, que conta com uma série de mídias e memórias dos projetos e ações políticas desenvolvidas ao longo de seus 34 anos. Em 2020, estive com a Sueli Carneiro num comitê curatorial para o projeto Vidas Negras, do Museu da Pessoa e dialogamos sobre temas como preservação do patrimônio de audiovisual dos atuais realizadores negres. Com isso, a Natália Carneiro, coordenadora do Programa de Comunicação, passou a ser uma das principais interlocutoras entre a pesquisa e curadoria dos conteúdos da websérie, para que estivessem conectados aos debates públicos de 2022. São exemplos: projeto político, antirracismo e caminhos coletivos de resistência para a população negra. Com a inauguração do Centro de Documentação e Memória Institucional de Geledés, e a retomada das atividades presenciais, filmamos e entrevistamos as coordenadoras e convidades para falar também do futuro da organização política que esteve e está à frente dos debates sobre as cotas raciais e tantos outros marcos históricos para a militância negra no Brasil.

Quais foram os principais objetivos e impactos almejados com o lançamento da websérie?

O objetivo do projeto é a criação de novos elos entre as gerações que avançaram por marcos legais, enquanto conquistas contra o racismo no Brasil, e as gerações mais novas, que não conhecem ainda essa jornada de conquistas, lutas e resistência.

“Há uma criminalização diária nas mídias hegemônicas sob os nossos corpos. O mercado de mídias ainda não é diverso, com vozes plurais. Daí, a importância de valorizarmos as mídias negras”

E essa entrevista está sendo possível por isso. Sabemos da importância de contar as nossas narrativas pela nossa perspectiva, sem romantização da nossa dor ou das faltas para a nossa comunidade negra. Muita gente desconhece a importância histórica do movimento de mulheres negras. A série costura múltiplas vozes numa narrativa implicada na coletividade necessária para enfrentarmos o genocídio dos jovens negros, os números catastróficos do feminicídio e tantas outras violações de direitos humanos no Brasil.

Como se deu a escolha dos temas abordados e convidados em cada episódio?

A pesquisa dos temas aconteceu em janeiro, quando iniciamos a produção executiva. Havia naquele momento um retorno para os trabalhos presenciais na instituição. Antes disso, em 2021, eu estive em Geledés, quando conheci a Natália Carneiro, que me mostrou várias caixas com uma série de mídias e as novas instalações em obras, que se tornaram depois a nova sede e o Centro de Documentação e Memória Institucional. Naquele encontro, tivemos a certeza de que havia bastante trabalho pela frente, e o quanto seria importante produzir um acervo de fotos analógicas, digitais e vídeos. Tenho desenvolvido uma pesquisa sobre objeto-memória, processo criativo e a construção narrativa e documental do nosso tempo. A websérie dialoga sobre caminhos e legados, mas pela via política destas lutas que nos antecederam, que criaram as suas próprias epistemologias e metodologias para o enfrentamento do racismo brasileiro. Para isso, além de criarem as ferramentas discursivas necessárias, agora, nos reposicionam com a sistematização e organização de sua memória institucional. Agradeço à Geledés, pela possibilidade de diálogo e de poder atuar politicamente com a organização.

DAY E SUELI CARNEIRO: PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO AUDIOVISUAL DE REALIZADORES NEGRES (Foto: Cat Tenório)

Tão importante quanto os entrevistados é a galera que faz acontecer nos bastidores. Como foi a escolha dos profissionais que compõem a equipe de Geledés – Caminhos e Legados?

Muita coisa aconteceu entre a produção do set e a estreia no dia 25 de julho. Retornar ao ponto de partida é a certeza de que a memória do processo de audiovisual revela como chegamos no projeto e como saímos. Ou melhor, eu moro na Cidade do México, desde janeiro deste ano. Daí, quando filmamos, em março, a equipe foi pensada a partir de projetos anteriores ao de Geledés e de Duas Rainhas. Caminhamos com a dedicação vista em tela, com direção de fotografia da Nuna Nunes, som direto da Andressa Clain, cenografia do Jandilson Vieira e produção de set de Arthur Baeta. Como documentarista, penso naquele set pela possibilidade dos encontros geracionais. Agora, na pós-produção, temos a montagem do Rodrigo Espíndola, design do Estúdio Cajuína, e as ilustrações e animação do Estúdio Pião Kamikaze, além da colorização do Éderson Guilherme. Vivemos um processo intenso devido aos temas abordados na série.

“Foi um processo intenso pela responsabilidade em conduzir o diálogo institucional e a busca de uma produção liderada por mulheres negras, sem as amarras da branquitude e branquidade”

EQUIPE TÉCNICA RESPONSÁVEL PELA WEBSÉRIE GELEDÉS – CAMINHOS E LEGADOS (Foto: Cat Tenório)

Pensando nas próximas gerações, comente sobre a importância de dar continuidade à luta para garantir os direitos da juventude preta.

Não faremos a mudança com transformação social sem as formas coletivas de pensar um mundo sem racismo. Geledés tem a sua importância por que um grupo de mulheres negras decidiu se reunir em 1988 para criar uma organização política, numa referência à sociedade secreta de mulheres que pensam o mundo com liberdade, respeito e justiça a todas as pessoas. Somos convocadas para a luta porque o fascismo está presente e atuante pelo país adentro. Se não soubermos nomear o que é racismo, como ele se dá e como se enfrenta, as próximas gerações não poderão contar as suas origens de aquilombamentos e caminhos de permanência.

“Somos potência quando estamos fazendo as nossas festas, debates e encontros”

Não há democracia possível sem nós, enquanto pensadoras do nosso tempo, junto às ativistas e pesquisadoras do movimento de mulheres negras. Precisamos encontrar as práticas de aquilombamento. Geledés tem em sua biblioteca, no Centro de Documentação e Memória Institucional, um espaço aberto ao público. Afinal, a continuidade já está em processo, com projetos em andamento, como é a websérie: uma produção que proporcionou  encontros e aprendizados, inclusive para a nossa vida política.

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