A audiência pública “Ações de Enfrentamento ao Racismo na Primeira Infância”, que ocorreu nesta quinta-feira (29), levou para a Câmara dos Deputados, em Brasília, uma ampla discussão que reflete como proteger e garantir direitos e políticas públicas antirracistas para crianças. A sessão foi resultado da incidência política do Grupo Articulador “Primeira Infância no Centro: garantindo o pleno desenvolvimento infantil a partir do enfrentamento ao racismo”, composto por Geledés Instituto da Mulher Negra e mais 10 entidades da sociedade civil.
A reunião teve como objetivo chamar à responsabilidade o Executivo, o Legislativo e Judiciário, para que possam fazer o enfrentamento ao racismo e à luta em defesa de direitos básicos para crianças negras, quilombolas, indígenas e de terreiro. Presidida pela deputada federal Érika Kokay (PT-DF), a sessão aconteceu por meio da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial.
No evento, Kokay garantiu a realização de uma Política Nacional de Enfrentamento ao Racismo na Primeira que vai reunir, no parlamento, a sociedade civil, os congressistas e representantes dos ministérios para elaborar um conjunto de políticas públicas que discuta o racismo em seu contexto estruturante – saúde, educação, mobilidade, direito à cidade etc.
“Vamos combater um formato do passado, que tenta impor de forma hegemônica uma higienização dos espaços públicos”, expõe Kokay.
Ao todo, 11 pessoas compuseram a mesa-redonda, entre membros do governo e da sociedade civil.
Suelaine Carneiro, de Geledes, enfatizou a importância de reivindicar compromissos e ações que garantam os direitos dessas crianças no presente e no futuro. Para ela, é necessário desconstruir as indiferenças que cercam os debates e marcam a vida de crianças negras e indígenas do país.
“Suas trajetórias [das crianças] são marcadas pelo não pertencimento, implicando no acesso diferenciado aos bens sociais”, afirmou. E enfatizou ainda que “abordar os efeitos socioeconômicos e psicossociais do racismo desde a primeira infância, possibilita alterar as relações”.
Ocupar o Parlamento
As representantes das organizações ressaltaram a necessidade de ocupar o parlamento e exigir políticas públicas para a população infantil. Com isso, em médio e longo prazo, há a possibilidade de minimizar o processo de adoecimento que vai permear toda a vida adulta das crianças.
Damiana Neto, da Ação de Mulheres pela Equidade – AME – pontuou que a necessidade de estar presente nesse espaço cria a possibilidade de resgatar a infância de cada criança do Brasil. Para ela, as políticas públicas que abarcam a realidade de crianças negras e indígenas são diferentes em cada parte do país.
O destaque que o racismo na primeira infância infringe diversos marcos legais e legislações nacionais e internacionais foi abordado por Letícia Silva, advogada do Instituto Alana, que dentre os Pactos, cita o não cumprimento da Convenção sobre o Direito da Criança, que foi um tratado ratificado pelo Brasil, e que traz o princípio da não-discriminação assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Direito à terra e à cultura
“A importância de manter a cultura tradicional é fundamental para se construir uma sociedade livre da discriminação”, é o que defende Rosijane Tukano, da Makira Eta. Segundo ela, crianças indígenas, quilombolas e de terreiro, por exemplo, diuturnamente são vítimas de racismo e preconceitos na escola. O espaço escolar foi criado para ser um ambiente onde todas as crianças, independentemente de língua, credo e raça deveriam ser acolhidas e respeitadas.
Porém, de acordo com a liderança, para que sejam incluídas em uma escola convencional, as crianças indígenas, quase sempre, precisam abdicar da sua cultura e da sua língua.
“As crianças são violentadas para se integrar à sociedade racista. O português não é a primeira língua dos indígenas, e sim a língua de cada povo”, explica Rosijane.
Representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – Conaq – Isabela Cruz expôs que é preciso garantir às crianças quilombolas o direito fundamental de conviver com a terra, pois “a terra não é apenas um espaço geográfico, mas uma entidade espiritual que compõe todos os aspectos da vida”.
“Precisamos garantir a titulação quilombola para assegurar a vida, a continuidade do povo tradicional. Devemos também garantir os direitos das mulheres, porque elas são as grandes cuidadoras”, disse Isabela.
O direito à vida também pode ser estendido às crianças de religiões de matrizes africanas e de terreiro. Miriam Alves, representante da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e do Conselho Regional de Psicologia, diz que entender a complexidade da dinâmica civilizatória que constitui as comunidades tradicionais de matrizes africanas é fundamental para as políticas públicas.
Participação do governo
Entender e ouvir as necessidades daqueles que estão marginalizados, muitas vezes pela ação da máquina pública, também é papel do Judiciário, afirma Laura Lúcia, representante da Defensoria Pública da União. Para ela, a legislação sempre traz nuances individuais de forma generalizada. Portanto, ouvir e compreender cada particularidade, “nos permite de fato conquistar a igualdade por meio dos recortes de raça, religião e etnia”.
“O racismo na infância está diretamente ligado à necropolítica que atinge a juventude negra”, é o que aponta Laís Helena Queiroz, representante da Diretoria de Combate ao Racismo da Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas, Combate e Superação ao Racismo do Ministério da Igualdade Racial. Durante o debate ela apresentou um mecanismo de enfrentamento ao racismo na infância: um canal de denúncia dentro da escola. Porém, ele somente funciona “desde que os profissionais que farão o acolhimento sejam afrocentrados e tenham letramento racial”.
Já Maria Luiza Oliveira, diretora na Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, reiterou a importância de projetos de lei que pensem a longevidade das crianças e, portanto, dos adultos negros e negras. De acordo com ela é importante que todas as crianças negras e indígenas fiquem velhas. “ A gente morre muito cedo. Envelhecer significa que a gente está vivendo”, disse.
Planos e propostas
Prestigiando a audiência, a deputada Carol Dartora (PT-PR) pontuou a necessidade de garantir os direitos das mulheres, que são as principais responsáveis pelo cuidado. A parlamentar reiterou que infância e racismo são dois conceitos que se complexificam. “Assim, há a dificuldade de traçar e traduzir a identidade da criança negra em diversos ambientes sociais”.
Eduardo Fernandes, coordenador-geral de Educação Étnico-Racial e Educação Quilombola do Ministério da Educação mostrou que o governo federal está focando em pautas e trabalhos centrais no combate ao racismo na infância, como o Criança Alfabetizada. Para o dirigente, só é possível entender o local do gestor ao pensar a política pública de forma estrutural, continuada e com financiamento e previsão orçamentária.
Versando sobre as questões de saúde e refletindo sobre a situação socioeconômica das crianças do país, Andrey Lemos, diretor na Secretaria de Atenção Primária, do Ministério da Saúde, pontuou que quase metade das crianças com até 7 anos de idade são assistidas pelo Bolsa Família, o que mostra situações de pobreza na infância. Ele destacou que, ainda assim, o projeto do atual governo está apontando uma direção que abarca todas as diversidades.
Crianças no Centro
O momento contou com a participação de crianças e adolescentes que integram o projeto Territórios Amigos das Crianças e Adolescentes, realizado pela CEDECA/DF, que atua na garantia e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Foi a primeira participação delas e deles em uma audiência pública.
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