Heroína infantil sueca provoca debate sobre racismo

RACHEL DONADIO

Desde que entrou em cena em 1945, com suas meias descasadas, sardas abundantes e duas tranças vermelhas saindo esticadas da cabeça, Píppi Meialonga, uma menina alegre, bagunceira e forte o suficiente para levantar cavalos, tornou-se um modelo para as crianças.

Na Suécia, Píppi é mais do que isso: ela é um tesouro nacional, encarnando o espírito igualitário do país. Assim, houve alvoroço quando a TV pública sueca anunciou recentemente que iria cortar duas cenas consideradas ofensivas em uma série da personagem de 1969 —incluindo uma em que ela diz que seu pai é o “rei dos negros”, usando uma palavra sueca hoje vista como racialmente ofensiva.

A série foi baseada na série literária “Píppi Meialonga”, de Astrid Lindgren, publicada inicialmente entre 1945 e 1948. Os defensores da decisão, incluindo os herdeiros de Lindgren, que morreu em 2002, disseram que a mudança respeitava o espírito da autora.

Já em 1970, ela havia dito que a expressão estava ultrapassada e alegou não ter tido a intenção de ofender os negros. Mas muitas outras pessoas —incluindo dezenas de milhares que responderam a uma enquete via Facebook promovida pelo maior jornal da Suécia— se opuseram à censura.

A polêmica —que ocorre poucas semanas depois de um partido ultradireitista com origens skinhead obter inéditos 13% dos votos em uma eleição nacional— é parte de um debate cada vez mais intenso e muitas vezes desconfortável.

A discussão diz respeito às identidades étnicas num país que se orgulha do seu igualitarismo, mas onde só recentemente as minorias étnicas, um percentual pequeno entre os 9 milhões de habitantes da Suécia, começaram a ganhar voz.

“Quando se trata de feminismo, estamos melhores. Quando se trata de igualdade racial, ficamos para trás”, disse o dramaturgo e romancista sueco Jonas Hassen Khemiri, que cresceu lendo e assistindo Píppi. Ele é favorável às mudanças no programa de TV.

Khemiri afirmou que, num mundo cada vez mais globalizado —e depois de o país receber centenas de milhares de imigrantes e solicitantes de asilo nos últimos anos—, alguns suecos estavam usando Píppi para se aferrar a uma ideia tradicional a respeito do caráter nacional sueco.

“As poucas coisas que são suecas se tornaram um campo de batalha no qual as pessoas estão tentando defender suas fantasias a respeito da nação”, disse o escritor. “É muito difícil defender essa ideia ingênua de um passado autêntico, simples, com limites bem definidos.”

Nils Nyman, 50, executivo-chefe da empresa familiar que supervisiona os lucrativos direitos patrimoniais sobre o trabalho de Lindgren, disse que, sem as mudanças feitas no programa, havia o risco de o público não
prestar a devida atenção à mensagem mais importante da série, a do “‘girl power’ [poder das meninas] antes que ele fosse conhecido” como tal.

Numa cena, o insulto racial foi removido, e agora Píppi diz: “Meu pai é o rei!” Na segunda, Píppi não puxa mais as pálpebras para cima, fingindo-se de asiática, mas ainda canta uma imitação de música chinesa.

O cineasta afro-sueco Baker Karim resumiu a situação como um debate em que os suecos dizem: “Não somos racistas! Será que poderíamos então manter esses estereótipos racistas vivos pelo fato de não sermos racistas?”.

 

Fonte: Folha

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