O saneamento básico é uma condição da sociedade civilizada, mas nesse quesito o Brasil está em 120º lugar
Por Delfim Netto, da Carta capital
Nos centros urbanos, mais de 10 milhões de habitantes ainda não têm acesso a água tratada e cerca de 60% apenas têm acesso ao serviço de esgoto (Imagens/TV Brasil)
Qual é a base da sociedade civilizada? Talvez seja presunçoso defini-la, mas é certo que incluirá a “igualdade de oportunidades”: todos os cidadãos, independentemente do acidente de seu nascimento, têm o direito de partir do mesmo ponto para a vida. Em outras palavras, não importa se foi concebido por puro acaso numa noite chuvosa sob o muro do Museu do Ipiranga ou, deliberadamente, numa festiva noite de núpcias numa suíte presidencial.
Gerados em situações tão desiguais, uma vez nascidos, deverão ter a oportunidade de desenvolver o seu aparato de apreensão do mundo em condições iguais. A futura mãe receberá o apoio social e o novo cidadão um atendimento cuidadoso nos primeiros cinco anos de sua vida.
Uma condição necessária, ainda que não suficiente para isso, é a existência de um sistema de saneamento que forneça água limpa e esgoto tratado para todos, o que dará às crianças mais saúde e maior capacidade de aprendizado com menor custo. É empiricamente comprovado que tal investimento tem uma das mais altas taxas de retorno social.
Infelizmente – devido a falsos preconceitos ideológicos, mas real e indisfarçável aparelhamento político –, temos tratado muito mal do problema. O seu “planejamento” (o Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab) é razoável, mas seu “fazimento” tem sido deplorável.
Um dos problemas importantes que impedem a expansão mais rápida do saneamento é a carência de projetos bem arquitetados que permitam estimativas confiáveis de custo e do tempo necessário à sua execução, de forma a produzir uma taxa de retorno do capital que garanta a sustentabilidade do empreendimento. É isso que dá transparência e segurança jurídica ao contrato.
A situação do saneamento no Brasil tem melhorado a taxas inaceitáveis. Nos centros urbanos, mais de 10 milhões de habitantes ainda não têm acesso a água tratada e cerca de 60% apenas têm acesso ao serviço de esgoto.
Destes, apenas 80% (ou seja, menos de 50% do total) gozam do privilégio de ter esgoto tratado. As metas do Plansab são: atendimento de água para 223 milhões de pessoas e de esgoto para 207 milhões em 2033. Elas jamais serão atendidas se o nível de investimento continuar no ritmo atual.
Para se ter uma ideia da diferença abissal entre nossas necessidades e o que fizemos até agora, é interessante saber que somos uma das dez maiores economias do mundo, mas, no saneamento básico servido à população, ocupamos a 120ª posição na pesquisa mundial dos países que têm estatísticas confiáveis. Nosso modelo, além de ineficiente, não dispõe de recursos públicos para financiá-lo.
Não nos resta, de fato, outra opção a não ser regular adequadamente parcerias público-privadas com investidores que se disponham a injetar montante substancial no setor, sob seu próprio risco. Isso exigirá absoluta clareza nas relações jurídicas, porque é um setor onde a cooperação, para ser frutífera, deve durar de 20 a 30 anos.
O setor privado tem aumentado a sua participação. Já tem comprometido (com metas fixas, prazo certo e seus riscos) em torno de 40 bilhões de reais de investimento em mais de 300 municípios (60% deles com população abaixo de 20 mil habitantes), que já somam 20% do investimento total no setor.
O saneamento é atribuição municipal, mas, na imensa maioria dos casos, é “delegado” a empresas estaduais, com contratos “abertos”: não se fixam metas, prazos para cumpri-las e, muito menos, as sanções se não cumpridas. São renovados automaticamente, ad infinitum, sem maiores exigências, num jogo entre amigos.
Obviamente, elas não têm como primeira prioridade o atendimento do esgoto de mais de 40% da população urbana que ainda sofre sua falta. A Medida Provisória nº 844/2018, submetida à Câmara dos Deputados, mostra que o governo decidiu rever o problema, mas o viés ideológico – ou melhor, o interesse político intrínseco – resiste em aceitar um fato evidente: só o aumento da produtividade com recursos privados pode resolvê-lo.
Por que, então, não estimular os municípios, quando da renovação dos compromissos, a procurarem soluções alternativas, públicas ou privadas, com contratos “fechados” que estipulem claramente “metas” em prazo certo e punição pesada por falta de cumprimento?
O que está em discussão não é a ridícula oposição Estado versus mercado, mas quando, afinal, os munícipes terão 100% da sua água e esgoto tratados. A competição bem regulada é a única forma de servir bem o cidadão na sua busca da sociedade civilizada.