Infância negra: uma (re)construção necessária 

Introdução

Atualmente o Brasil é o país com maior população negra fora de África. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD Contínua), a população negra, hoje, corresponde a 56,10% do total da população.[1] É esta parcela da população que se encontra relacionada aos mais precários indicadores de condição de vida, falta de acesso a direitos e superexposição a violências. Segundo o relatório “Denúncia de Violações dos Direitos à Vida e à Saúde no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil”,[2] assinado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e outras entidades, em 2021, em decorrência das inúmeras desigualdades no acesso à saúde durante a pandemia da COVID-19, a população negra sofreu mais sequelas e óbitos.

A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.[3] Segundo o Fundo das Nações Unidas para Infância no Brasil – UNICEF Brasil, no estado do Rio de Janeiro, de janeiro de 2013 a março de 2019, houve 2.484 homicídios de adolescentes, segundo dados do ISP. Entre as vítimas, 80% eram negros. Crianças e adolescentes negras e negros, são a maioria das crianças em situação de trabalho infantil,[4] a maioria das vítimas de abuso e exploração sexual,[5] a maioria das meninas e meninos em situação de acolhimento institucional e a maioria em cumprimento de medida socioeducativa.[6]

A análise dos indicadores revela um cenário de profunda violência para usar o termo cunhado pelo filósofo camaronês Achile Mbembe: “Violência, aqui torna-se um elemento inserido na etiqueta, como chicotadas ou tirar a própria vida do escravo: um ato de capricho e pura destruição visando incutir o terror. A vida de um escravo, em muitos aspectos, é uma forma de morte em vida”.[7]

As crianças e adolescentes negras e negros no Brasil vivem uma morte em vida. O Estado Brasileiro em suas atribuições vem sistematicamente decidindo que são essas meninas e esses meninos, aquelas e aqueles que não apenas não estão entre os que podem viver como são escolhidos para serem deixados morrer, estão entre aquela parcela que deve morrer. Pensar a “infância negra” portanto é uma urgência.

A análise das séries históricas que acompanham a evolução da violência contra crianças e adolescentes no Brasil em suas mais variadas formas não deixa espaço dúvidas: nunca houve proteção para as crianças negras no Brasil, o Estado Brasileiro nunca ofereceu efetiva proteção às crianças negras, por isso parto aqui das seguintes premissas:

  1. Pensar a infância negra no Brasil requer antes de qualquer coisa que se crie uma infância negra. A análise de todos os indicadores sociais, da prática social e das esferas de representação, explicita que o atual conceito de infância e sua respectiva proteção nunca contemplou crianças negras, visto que é visível a distinção entre os resultados de efetivação de políticas para crianças brancas e negras no Brasil.
  1. Desde o tráfico de escravizados negras e negros e até o presente momento, o Estado Brasileiro vem adotando uma série de ações de implementação de uma necropolítica, que subalternizam e expressam uma intenção de encarceramento e destruição de meninas e meninos negros.

Pretende-se nesse artigo evidenciar a construção social de uma ideia de não-criança para meninas e meninos negros no Brasil e recomendar as ações necessárias para a construção de uma ideia de infância que permita a meninas e meninos negras e negros a vivência de uma vida em sua plenitude e que reposicione socialmente a percepção dos mesmos em sua inteireza e humanidade.


[1] Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, extraídos da PNAD Contínua, considerando referência que a população brasileira chegou a 213,3 milhões de habitantes, segundo estimativa atualizada em 30 de novembro de 2021. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6403#notas-tabela

[2] Cf. SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS2021.

[3] Ver o Mapa da Violência em WAISELFISZ, 2012.

[4] Dados extraídos das reportagens de DIAS, 2020 e ALVES, 2021.

[5] Informações do Disque Direitos Humanos (Disque 100) indicam que houve um aumento no número de denúncias no primeiro semestre de 2021, em relação ao primeiro semestre de 2020. Foram 5.106 violações registradas de janeiro a maio deste ano, contra 3.342 no primeiro semestre do ano passado. Do total de denúncias realizadas nos últimos meses, 83,87% foram contra meninas e 57,73% contra crianças e adolescentes negros. Em relação à exploração sexual, de acordo com um cálculo realizado pelo Instituto Liberta, 75% das vítimas são meninas e, entre elas, 55,8% têm entre 12 e 14 anos e 13,6% têm entre 8 e 11 anos. Ainda de acordo com a organização, a maioria é negra (RIBEIRO, 2021).

[6] Adolescentes negros e negras se declaram a maioria no cumprimento das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação. De acordo com Levantamento Anual do Sinase de 2017 – último levantamento publicado pelo governo federal, a população parda e negra representava 56% do total de atendimentos das medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade, contra 22% de brancos e 16% que sequer apresentavam informação de cor. Em 2016, a população negra correspondia a 59%, e em 2014 atingiu 61% dos atendimentos (SILVA; SOUZA, 2020).

[7] MBEMBE2018, p. 131.

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