Inflorescência

Antes de ligar a maquininha, o Isaac me perguntou muitas vezes se eu tinha certeza de que queria fazer “aquilo” com meu black power tingido de vermelho.

Do Itau Cultural

Foto: Alile Dara Onawale

De frente ao espelho, só um ano após meu reconhecimento como mulher negra, respondi pra nós – pra ele, mas especialmente pra mim – que sim.

Eu me encarei com firmeza, lembrando da dificuldade do primeiro corte para tirar a química e deixar florescer meu cabelo natural pela primeira vez. Da dificuldade em me reconhecer bela. De me enxergar sob outra perspectiva e, por fim e início, de uma nova conexão criada comigo a partir dos cabelos.

 

“Se a menina quer deixar o cabelo solto, deixa o cabelo da menina no mundo”

(Diane Lima)

Eu tinha 12 anos. Éramos eu e mais três no banco de trás do carro. Entre as conversas e as brincadeiras para que a viagem fosse mais rápida, chegamos ao assunto cabelo. As mãos das meninas passaram calmas e cuidadosas no cabelo de cada um dos três que estavam ali, até que fosse a minha vez. O dedo perfurou meu cabelo sem autorização, como de costume. Os entreolhares disseram tudo. Antes mesmo que a primeira menina abrisse a boca.

– Nossa, que cabelo mais duro! É tão ruim que meu dedo não passa nem se quiser.

No momento, eu não sei… Acho que fui devastado por aquela menina. E o pior, o maior esforço que eu tinha feito naquela brincadeira era ser eu. Numa mistura de vergonha com exclusão, eu quis me esconder dentro de mim.

Na semana passada me encontrei com essa mesma menina, sete anos depois. Sabe o que ela me falou?

– Nossa, que cabelo mais lindo! Eu sempre quis ter o cabelo assim.

Hoje, a primeira sensação que o espelho me dá é a de que meu cabelo conta uma história que tentam apagar, mas não conseguiram completamente.

Mesmo depois de 500 anos de tentativas de extermínio e silêncio, um cacho floresce em meio à pluralidade de tons em que essa mistura resultou. Eu floresço dentro de mim!

Uma imersão em minha própria identidade me deu coragem. Primeiro, para compreender e enfrentar o auto-ódio, os olhares e os comentários maldosos. Depois, para garfar, tingir, deixá-lo armado, livre. Sem pedir desculpas e com direito a novos reencontros. Não, não foi e não é fácil. Mas é, com certeza, o caminho mais libertador.

Foi por essa sensação de energia renovada que fui tomada aos 18 anos de idade, quando o Isaac terminou de raspar minha cabeça. E é por essa energia que eu me movo em dizer: “Sim! Meu cabelo é lindo, não é mesmo?”.

Como quem descobre uma batalha árdua, imposta por outros contra si, e entende que ser sua própria aliada é o que realmente vira o jogo.

Pronta e em punga, foi ali que soube: uma mulher ressurgia e um lembrete soava aos meus ouvidos de que a minha função na terra é cooperar com processos de florescimento. É saber cultivar e saber esperar.

Revoluções internas reais levam tempo.

Os nossos cabelos são uma analogia para o conhecimento do nosso povo, o entendimento da nossa história. Portanto, “respeitem meus cabelos, brancos”.

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