Especialistas ouvidos pelo Terra avaliam que legado da Constituição de 1988 é apontar caminhos para a construção de um País melhor.
Após 25 anos de vigência da Constituição Federal, o Brasil ainda não aplica plenamente os direitos garantidos pelos idealizadores do texto. Na opinião de juristas ouvidos pelo Terra, porém, apesar de eventuais incongruências, o texto promulgado em 5 de outubro de 1988 tem como legado justamente o fato de indicar o País que os brasileiros querem construir.
“A Constituição em si tem muito pouca falha, a falha maior é nossa na hora de aplicá-la. Na hora de passar a Constituição para a realidade, a gente fica ainda um pouco aquém. Mas por ela ter trazido tantos direitos, tantas garantias que a gente até hoje ainda não tem (efetivamente), por um lado também ela sinalizou para onde a gente tem que ir”, afirma Tânia Rangel, professora da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro.
A professora cita como exemplo o artigo 7º, inciso 4º, que prevê que o salário mínimo deve ser suficiente para garantir a “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social” do trabalhador e de sua família. “Apesar desse artigo e de tantos outros da Constituição não serem cumpridos, da gente não poder vê-los na prática, a gente tem caminhado no sentido de cada vez mais nos aproximar do desejo da Constituição”, opina a especialista.
Ex-integrante da Corte Internacional de Justiça em Haia, na Holanda, o advogado Francisco Rezek era ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) quando a Constituição foi promulgada. Segundo Rezek, a Constituição é um marco das garantias civis e da reabertura política, por representar um rompimento com a legislação que vigia à época da ditadura militar.
“O momento histórico favoreceu enormemente a fecundidade da Assembleia Constituinte. Incentivou o entusiasmo e o empenho com que a Assembleia funcionou e produziu o texto. O clima não poderia ter sido melhor para isso. Justamente por conta de ter sido tão recente a recuperação do Estado de Direito”, relembra o ex-ministro.
“O Brasil que a gente tinha antes da Constituição de 1988 era um país onde a gente não tinha liberdade de expressão. Era um país que também não tinha segurança, as autoridades eram quem tinha todo o poder nas mãos. Você não sabia o que podia fazer, o que não podia. A insegurança que existia na sociedade era muito forte, e você sabia que tinha que agradar a quem estava no poder”, relata a professora Tânia Rangel.
Para o atual presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, o texto aprovado em 1988 trouxe estabilidade institucional para o Brasil, mas requer aperfeiçoamentos constantes, sob risco de tornar-se obsoleto. “Daí a necessidade de mudança constante. O mais importante é que esta Constituição trouxe a estabilidade institucional para o Brasil. É o mais longo período de estabilidade política. E mais, estabilidade com plena democracia”, afirmou Barbosa, em cerimônia para comemorar os 25 anos da Constituição.
Constituição extensa e o exemplo americano
Na opinião de Francisco Rezek, os principais problemas enfrentados pela Constituição residem justamente no fato de ela ser altamente específica, tratando de uma infinidade de temas que, muitas vezes, são conflitantes. “É uma Constituição muito grande. Alguns diriam a mais prolixa, outros diriam a mais completa das constituições no universo das democracias contemporâneas. Essa extensão faz com que inevitavelmente apareçam aqui e ali algumas incongruências, algumas contradições cuja solução está a cargo do Supremo Tribunal Federal, que quase sempre resolve esses problemas com sabedoria e clarividência”, diz.
Os críticos da grande extensão da Constituição brasileira normalmente se apegam ao exemplo da Carta americana, datada do século 18, que estabelece apenas as diretrizes básicas da organização do Estado e as liberdades individuais, garantindo a autonomia dos Estados federados para legislar. Rizek, porém, descarta essa comparação, acreditando que o modelo americano não poderia ser aplicado “a lugar nenhum”.
“Não seria possível pensar num modelo semelhante ao americano em parte alguma, porque não há outro lugar em que a federação seja tão autêntica como ela é nos Estados Unidos. Não há outro país onde os Estados federados tenham tanta autonomia. Isso para nós soa chocante, surpreendente, de que sobre uma mesma bandeira um fato humano possa ser crime aqui e não ser ali, ou seja, punido com morte aqui e não ali”, avalia o especialista.
A professora Tânia Rangel lembra que a diferença de tamanho entre as Cartas dos Estados Unidos e do Brasil são reflexo direto do contexto histórico em que estão inseridas. “As Constituições dos séculos 18 e 19, como a americana, eram Constituições mais enxutas. Porque basicamente elas traziam no seu texto dois tipos de normas. A norma de garantia o direito do cidadão – que era uma forma de limitar o poder do Estado – e a norma que organiza esse Estado, de dizer quantos são os poderes, como eles funcionam”, exemplifica.
“Depois que acaba a primeira guerra, surge um novo tipo de Constituição, com a criação da União Soviética. E aí se percebe que já não era mais importante você garantir só os direitos individuais, era preciso também você garantir o direito do trabalhador, era preciso que o direito social entrasse na Constituição. (…) Quando a nossa Constituição é feita, em 1988, quase todas as demais no mundo contemporâneo são grandes. Porque elas têm que organizar o Estado, e é um Extado que já é mais complexo, é um Estado que agora você tem que falar de concessão, de regulação”, afirma a professora. “Eu acredito que hoje é muito difícil a gente pensar em uma constituição enxuta para o Brasil, em razão da complexidade toda que existe hoje no mundo e no próprio Estado nosso”, completa.
Mudanças constantes
A grande extensão e o alto nível de detalhamento da Constituição também são apontados como o principal motivo para o elevado número de alterações feitas no texto até hoje. Em 25 anos, a Constituição Federal foi modificada 80 vezes, por meio da aprovação por meio da aprovação e promulgação de 74 propostas de emenda à Constituição (PECs) pela Câmara e pelo Senado. Elas acrescentaram, retiraram ou alteraram dispositivos do texto aprovado pelos constituintes em 1988. Seis modificações foram feitas em 1993, quando ocorreu a revisão da Constituição – foram os próprios constituintes que fixaram a possibilidade de revisão do texto, uma única vez, depois de cinco anos de promulgada a Carta.
Para Francisco Rezek, esse alto número de emendas é consequência direta do tamanho da Constituição. “Compare ao número de emendas da Constituição dos Estados Unidos, que foi o modelo adotado pelos fundadores da República. O número de emendas (nos Estados Unidos) é reflexo do texto compacto que tem a constituição americana”, explica o jurista, para quem as emendas à Constituição tramitam “com relativa facilidade” no Congresso brasileiro “justamente porque acrescentam alguma coisa ou modificou alguma coisa sem trair o espírito da época”. “Até hoje não vingou emenda nenhuma que pudesse ser acusada de ter produzido uma reviravolta naquilo que era o ideário da Assembleia Nacional Constituinte”, completa.
Tânia Rangel avalia como normal a “adaptação da lei à realidade”, o que pode ser feito tanto pela interpretação do Supremo Tribunal Federal quanto por emendas constitucionais. Porém, segundo a especialista, além da evolução natural da legislação, existe também a ação de grupos políticos interessados em dar garantias maiores às suas reivindicações. “É muito mais difícil você colocar um artigo na Constituição e ver ele tirado dali do que você ter um artigo numa lei e a lei ser revogada. Quando você quer que um interesse seu ou de um grupo que você representa fique mais protegido, você vai querer que ele esteja na Constituição. E como a nossa Constituição é extremamente extensa, ela fala de tudo, não é difícil você encontrar um lugar para aquilo que você quer. Aí é onde surgem essas PECs para tentar acrescentar ao texto alguma garantia para determinado grupo”, argumenta.
De acordo com Francisco Rezek, apesar de ser o principal fator que leva à necessidade de mudanças constantes, a especificidade da Constituição Brasileira “dá uma segurança maior” às instituições. “Não creio que, se a Constituição fosse concisa e deixasse por conta do legislador ordinário um número maior de temas, um cenário mais vasto de trabalho, não creio que o legislador ordinário – sobretudo com a possibilidade que ele tem de voltar atrás em marchas e contramarchas – faria algo melhor do que aquilo que a Assembleia Constituinte fez.”
Fonte: Terra