Em meio a um acalorado debate eleitoral, a Boitempo lança O ódio à democracia, do filósofo francês Jacques Rancière. Curto e provocativo, o ensaio faz um irreverente e erudito giro pela história da filosofia política para jogar nova luz sobre alguns dos principais impasses da democracia e da esquerda hoje. Nas palavras de Slavoj Žižek, “nos atuais tempos de desorientação da esquerda, o texto de Rancière oferece uma das raras conceitualizações consistentes de como continuar a resistir.”
Ainda ontem, o discurso oficial opunha as virtudes da democracia ao horror totalitário, ao passo que os revolucionários recusavam suas aparências em nome de uma democracia real ainda por vir. Esse tempo passou. Enquanto certos governos se empenham em exportar a democracia pela força das armas, nossa intelligentsia não se cansa de apontar, em todas as esferas das vidas pública e privada, os sintomas funestos do “individualismo democrático” e as injúrias do “igualitarismo” que destroem os valores coletivos, forjam um novo totalitarismo e conduzem a humanidade ao suicídio.
Para compreender essa mutação ideológica, não basta inscrevê-la no presente do governo mundial da riqueza. É preciso voltar ao escândalo primeiro que representa o “governo do povo” e entender as relações complexas entre democracia, política, república e representação. Desse modo, é possível encontrar, por trás das tépidas paixões de ontem e dos impetuosos ódios de hoje, a força subversiva sempre nova e sempre ameaçada da ideia democrática.
Leia, abaixo o texto de orelha do livro, assinado por Renato Janine Ribeiro
Nos últimos anos, o Brasil se tornou um exemplo de inclusão social, com dezenas de milhões de pessoas saindo da pobreza e da miséria para terem uma vida melhor. Em que pese a inclusão ter ocorrido sobretudo pelo consumo – mais que pela educação –, ela mudou o país. Hoje, ninguém disputa o Poder Executivo atacando os programas de inclusão social. Eles se tornaram um consenso junto à grande maioria dos eleitores. Entretanto, um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando os polloi – a multidão – ocupam os espaços antes reservados às pessoas de “boa aparência”, uma gritaria se alastra em sinal de protesto.
O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia? Democracia é hoje um significante poderoso, palavra bem-vista e que agrega um número crescente de possibilidades, indo da eleição pelo povo até a igualdade entre os parceiros no amor. Mas essa expansão da democracia incomoda. Daí, um ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas do golpe de 1964, condenando medidas que favorecem os mais pobres como populistas e demagógicas.
Por isso são relevantes ensaios sustentando que a democracia não é um Estado acabado, nem um estado acabado das coisas; que ela vive constante e conflitiva expansão; que não se reduz ao desenho das instituições, ou à governabilidade, ou ao jogo dos partidos, mas é algo que vem de baixo, desdenhado desde os gregos como o empenho insolente dos pobres em invadir o espaço que era de seus melhores, de seus superiores. Porque a ideia de separação social continua presente e forte. Se as ditaduras deixaram, desde os anos 1980, de tutelar a maior parte da humanidade, se governos eleitos proliferam, se a orientação sexual dissidente é mais bem aceita hoje, isso não significa que se tenha completado a democratização das formas de convivência social. E é justamente essa recusa da hierarquia que tem a ganhar com a leitura deste livro de Jacques Rancière que, à luz dos clássicos como da experiência francesa e mundial, continua um trabalho sempre renovado, jamais concluso, de afiar o gume da democracia.
Fonte: Blog da Boitempo