Ex-jogador francês está no Brasil, como parte de sua cruzada mundial contra preconceitos raciais e sociais
Ex-atleta está na cidade, a convite do Museu MAR
Ele é o jogador que mais vezes vestiu a camisa da França e foi campeão mundial de 1998
Por: Claudio Nogueira
Na luta. Thuram, campeão mundial de 1998 pela França, mantém fundação contra o racismo e preconceitos Ivo Gonzalez
RIO – Ruddy Lilian Thuram-Ulien, zagueiro da seleção francesa campeã do mundo em 1998 (3 a 0 sobre o Brasil de Ronaldo Fenômeno), está no Brasil numa cruzada mundial contra o racismo no esporte. Com um exemplar de seu livro “As minhas estrelas negras — de Lucy a Barack Obama”, Thuram, 42 anos, jogador que mais vezes vestiu a camisa da França (142 partidas), falou ontem ao GLOBO, no Rio. Ele ficará na cidade até dia 16, a convite do Museu de Arte do Rio (MAR), às voltas com uma exposição sobre a África. Aposentado desde 2009, Thuram luta contra o preconceito por intermédio de sua fundação (thuram.org). E revela seu sonho para a final da Copa: “Seria um prazer ver Brasil e França. França 1 a 0, aos 46 do segundo tempo.”
Esta é a primeira vez que vem ao Brasil?
Vim de férias, há dois anos, com a família. Momentos incríveis. Foi importante ter estado aqui com meus filhos, poprque quando criança, o Brasil tinha tudo a ver com o futebol. No Rio, a atmosfera é super agradável. Fui correr (nesta terça-feira) às 6h e vi pessoas de todas as idades correndo na praia. É fantástico. Da outra vez, fui também à Bahia, e tive a impressão de estar nas Antilhas (nasceu em Guadalupe, departamento ultramarino francês). Lá, o povo é bem africano, e em Fortaleza, é diferente do Rio e da Bahia. Uma rica diversidade.
Quais os objetivos dessa nova vinda ao país?
Viemos pelo evento do Museu MAR (programa África Hoje no MAR). Minha fundação quer trazer às pessoas a compreensão sobre o mecanismo do racismo e as hierarquias entre as pessoas. O racismo não é natural. É consequência de uma construção histórica e ideológica. O racismo de hoje é fruto do passado e está ligado à nossa cultura. É preciso entender também o sexismo. A hierarquia mais antiga é entre homens e mulheres.
Como analisa o racismo na Europa?
Há uma crise econômica mundial, e o racismo tem a ver com a relação de forças entre as pessoas. A história faz com que algumas estejam em posição de superioridade, e numa época de competição acirrada, quem tem vantagem quer mantê-la. Isso também se vê no recrudescimento do sexismo. Na Europa, o racismo é mais debatido, mas os direitos das mulheres são sempre ameaçados. Sobre o direito ao aborto, países cogitam voltar atrás.
E o racismo no futebol?
O futebol não faz parte de um outro mundo. Este racismo do futebol está ligado ao da sociedade. O futebol, como esporte, permite lutar contra o racismo. Você vê nos times jogadores de diferentes cores, religiões, origens. Isto contribui para modificar o imaginário coletivo dos torcedores. O fato de haver na seleção francesa uma grande diversidade de cores e de religiões contribui para mudar o imaginário coletivo. Estou convencido de que os primeiros negros na seleção brasileira ajudaram a mudar o imaginário aqui. O racismo do futebol é à imagem do da sociedade, muito mais violento.
Soube dos casos recentes no Brasil?
Nestes atos contra negros, se faz ligação com a animalidade e com macacos. Há tempos, se dizia que os negros eram o elo entre macacos e homens. Na sociedade brasileira, o fim da escravidão é recente (1888). São hábitos passados de geração para geração. O racismo é parte disso, e alguém é considerado melhor ou pior por causa da pele. Há um trabalho a ser feito com as vítimas de racismo, para que não incorporem um discurso negativo sobre si mesmos. Algo essencial é a auto-estima. Quem a tem faz muito e não se auto-vitima. A vitimização é perigosa, porque alguém não consegue dar o melhor de si. Infelizmente, muitos consideram o racismo um tabu e evitam ver a realidade.
Alguma vez sofreu algum ato racista?
Nasci nas Antilhas, onde a maioria é negra. Quando fui morar em Paris, com 9 anos, em 1981, havia um desenho com duas vagas, uma preta, estúpida, e outra, branca, inteligente. Colegas me chamavam pelo nome da preta. Perguntei à minha mãe por que tudo era negativo em relação à cor preta. Ela disse que brancos eram racistas e isso jamais mudaria. Foi fundamental para eu começar a entender o mecanismo do racismo. Quando jogava na Itália, e as pessoas imitavam macacos, isso não me afligia. Por isso, é preciso dar às crianças armas para desconstruir o racismo e mostrar a elas que cor, religião, sexo e sexualidade não determinam qualidades ou defeitos. É educação, para lutar contra condicionamentos históricos.
No Brasil, sofreu preconceito?
Quando sou reconhecido, não há problema. O pior é que joguei com brasileiros e perguntei a eles por que havia negros no Brasil, e disseram não saber. É preciso consciência histórica, para reagir. Todos deveriam conhecer a história de Zumbi.
Fifa , Uefa e federações deveriam punir clubes cujos torcedores praticam atos racistas?
A Fifa, a Uefa, as entidades deveriam liberar fundos destinados a estratégias educacionais nas escolas. Podemos impedir que as pessoas usem xingamentos racistas, mas seria muito mais inteligente fazer com que as crianças pudessem crescer sem terem essas ideias. Isso é pela educação. O racismo hoje é muito menor que antes. O que mudou? O imaginário coletivo. A educação permite que as crianças também possam mudar o mundo.
De que forma?
Se uma sociedade crê que a história dos negros começa com a escravidão, é normal ter uma ideia negativa dos negros. Enquanto não se contar a verdade, as crianças vão continuar a ter este preconceito ligado à história que ouviram. O imaginário coletivo que tem de ser mudado, apresentando negros que fizeram coisas extraordinárias. O mesmo em relação às mulheres. Fifa e federações deveriam dedicar recursos a este aspecto da educação. Resta encontrar as pessoas certas que implantem tal pedagogia. É prioridade.
O que recorda de 1998 e espera de 2014?
Fiquei muito feliz por ter ganho a Copa de 1998. Qualquer criança sonha com isso. Na infância, jogando com amigos, sempre era do Brasil, que é adorado nas Antilhas. Ganhar a final foi extraordinário. Mas os brasileiros não devem se lamentar, porque não podiam ganhar. Era a seleção contra um país. Espero que a próxima seja uma bela Copa, aproxime povos e que a França faça excelente campanha e ganhe. Seria um prazer ver a final de 2014 entre Brasil e França. França 1 a 0, aos 46 do segundo tempo. Vou tentar vir pela fundação, para falar da educação contra racismo, sexismo e homofobia. É importante falar em momentos assim, e o Brasil pode ser importante para isso.
Fonte: O Globo