Luana Génot: estar em um relacionamento inter-racial não é sinônimo de que o racismo acabou

Temos colocado a discussão sobre o racismo estrutural em nossas mesas e tentado quebrar vários tabus todos os dias

Por Luana Génot, do O Globo

Luana Génot  (Foto: Alexandre Cassiano/Agência O Globo)

“O futuro é mestiço”, gritou um senhor, quando me viu passando de mãos dadas com o Louis, anos atrás. Aquele homem não estava de todo errado. Louis, homem branco, e eu, mulher preta, casamos e tivemos Alice, que é parda. Temos colocado a discussão sobre o racismo estrutural em nossas mesas e tentado quebrar vários tabus todos os dias. Fácil não é.

Não é incomum perguntarem ao Louis se Alice é adotada ou atrairmos olhares de curiosos quando vamos nós três a um restaurante. E essa não é uma história só nossa. Muitos casais inter-raciais já passaram por situações parecidas. Não podemos normalizar esse estranhamento e o tratamento diferenciado.

Será que estamos todos juntos e misturados mesmo? Seria impossível explicar a complexa lógica de relacionamentos inter-raciais no Brasil em poucas linhas, sob uma única perspectiva e, ainda por cima, levando em conta um histórico de quase quatro séculos de escravidão somados às subjetividades que incidem sobre a construção das relações sociais e afetivas.

Entendo que não dá para romantizar o histórico da mistura das raças no Brasil. Trata-se de algo também atrelado a uma estratégia de embranquecimento da população, que tinha como ideal uma “melhoria racial” do país, a partir do gradativo clareamento da pele, associado a uma lógica equivocada de aprimoramento intelectual. Essa história, muitas vezes, não é contada.

Hoje, o relacionamento inter-racial é, inclusive, medido pelo IBGE. As pesquisas sobre nupcialidade estudam os perfis de união das pessoas, seus sexos, raças e idades, entre outras questões, para a produção de dados e análise de informações sobre as dinâmicas sociais. Será que o amor realmente não vê cor?

Idealmente, pessoas são mais do que as cores de suas peles. E o amor (ah, o amor) aproxima indivíduos independentemente da raça ou da condição social. Mas não é só o que acontece: 70% dos brancos se relacionam com pessoas da mesma cor. Esta mesma lógica tende a ser também reproduzida nos crushes dos aplicativos. Não é incomum ouvir de amigas brancas: “Miga, ontem peguei um Deus grego”, que é sempre um homem branco. Por que será?

Endeusar a beleza branca não é um acaso. Amigas e estudiosas observam que, por conta do racismo e da matriz eurocêntrica estabelecida, homens brancos seriam o padrão preferencial de beleza e nos relacionamentos. Outras defendem que o afeto entre negros fica mais forte, conforme aumenta o letramento racial. “Pretos e pretas estão se amando”, diria Rincon Sapiência. Algumas apontam que as mulheres negras são preteridas, inclusive por homens negros, ainda como consequência da lógica escravocrata. Elas defendem, portanto, que relacionamentos inter-raciais para mulheres negras não seriam necessariamente uma questão de preferência por brancos, mas também alternativa à solidão. Não é dois mais dois.

Existem, inclusive, termos que ganharam popularidade nessa discussão. Se o homem negro tem uma mulher branca, ele pode ser vulgarmente chamado de “palmiteiro”. A expressão seria, portanto, atribuída aos que preferem o “fruto branco”, o palmito. Há quem defenda o uso extensivo do termo a mulheres negras em relacionamentos inter-raciais, mas não é uma unanimidade.

Certa vez, uma moça disse que deixaria de me seguir nas redes sociais por ter descoberto que eu tinha um relacionamento inter-racial. Respeito. Recebo, ainda, outras tantas histórias de pessoas que, ao descobrirem nossa composição familiar, compartilham suas histórias. Também respeito. De todo modo, acredito que, quando julgamos pessoas só com base em seus relacionamentos, nos limitamos muito e perdemos o jogo contra o racismo.

Aprendi nessa jornada que um casal inter-racial não é sinônimo de que o racismo acabou nem de que o antirracismo venceu. Os discursos e as atitudes são construídos diariamente. Há um combate a piadas racistas nos grupos de família, por exemplo, ou apenas deixam para lá? Mais do que amar, é possível sair da passividade e ir para a atividade. Amar pode ir além do verbo intransitivo.

+ sobre o tema

Projeto piloto PLP 2.0 de Geledés e Themis vencedor do prêmio Impacto Social Google tem inicio em Porto Alegre

Aplicativo de celular irá auxiliar mulheres vítimas de violência As...

Precisamos falar sobre aborto

*Junte-se a nós! Baixe o cartaz aqui, faça uma...

DF amplia a lista de ambientes que devem oferecer proteção às mulheres

Em importante medida para combater a violência de gênero,...

para lembrar

O Calvário dos Transgêneros

CeCe McDonald, uma jovem trans sem teto, teve uma...

Casal conta transição de gênero do filho de 5 anos

Quando Mia tinha apenas dois anos de idade, ela...

Anielle Franco: ‘Os desafios atuais são muitos, a começar por nos mantermos vivas’

Uma noite marcada pelo protagonismo das mulheres negras. Assim...
spot_imgspot_img

Joyce Ribeiro será nomeada embaixadora de Cidade Velha, em Cabo Verde

A apresentadora da TV Cultura Joyce Ribeiro será nomeada a embaixadora no Brasil para a cidade de Ribeira Grande, em Cabo Verde. Mais conhecida como Cidade Velha,...

Liniker é o momento: ‘Nunca estive tão segura, não preciso mais abaixar a cabeça. Onde não couber, vou sair’

É final de inverno em São Paulo, mas o calor de 33 graus célsius não nega a crise climática. A atmosfera carregada de poluição...

Homenagem nos EUA marca o resgate internacional de Carolina Maria de Jesus

Meio século depois de ser traduzida para o inglês, Carolina Maria de Jesus voltará a ser resgatada no plano internacional. Neste mês, eventos vão...
-+=