Luiz Silva, Cuti

GOTA DO QUE NÃO SE ESGOTA
do livro Negroesia, 2007

cota é só a gota
a derramar o copo
não a mágoa do corpo
mas energia represada
que agora se permite e voa
em secular esforço
de superar-se coisa e se fazer pessoa
cota é só a gota
apenas nota de longa pauta
a ser tocada
com o fino arco
em mãos calosas

cota é só a gota
a explodir o espanto
de se enxugar no riso
a imensidão do pranto

ela é só a gota
ruindo pela base
a torre de narciso

é só a gota
entusiasmo na rota
afirmativa
que ameniza as dores da saga
suas chagas de desigualdade amarga

cota é só a gota
meta de quem pagou e paga
desmedido preço de viver imposto
e agora exige
seu direito a voto
na partição do bolo

é só a gota
de um mar de dívidas
contraídas
pelos que sempre tornaram gorda a sua cota

cota é só a gota afrouxando botas
de um exército
para o exercício da eqüidade

cota não reforça derrota
equilibra
entre ponto de partida
e ponto de chegada
a vitória coletiva
reinventada. 

Luiz Silva (Cuti) nasceu em Ourinhos-SP, e vive na capital. Formou-se em Letras (Português-Francês) na Universi-dade de São Paulo, em 1980. Mestre em Teoria da Literatura e Doutor em Literatura Brasileira pelo Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp (1999-2005). Foi um dos fundadores e membro do Quilombhoje-Literatura, de 1983 a 1994, e um dos criadores e mantenedores da série Cadernos Negros, de 1978 a 1993.

OBRAS: Poemas da carapinha; Batuque de tocaia. (poemas); Suspensão (teatro); Flash crioulo sobre o sangue e o sonho (poemas); Quizila (contos); A pelada peluda no Largo da Bola. (novela juvenil); Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro; Negros em contos; Um desafio submerso: Evocações, de Cruz e Sousa, e seus aspectos de construção poética. (dissertação de mestrado); Sanga (poemas);A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Barreto (tese de doutorado); Negroesia. (poemas);Contos crespos; Moreninho, Neguinho, Pretinho (ensaio educativo).Além de obras em co-autoria, o escritor publicou poemas, contos, peças de teatro e ensaios em antologias brasileiras e estrangeiras.

CRAVOS VITAIS

escrevo a palavra
escravo
e cravo sem medo
o termo escravizado
em parte do meu passado
criei com meu sangue meus quilombos
crivei de liberdade o bucho da morte
e cravei para sempre em meu presente
a crença na vida.

TIÇÃO

teus olhos esbugalhados
ao brilho mais libertado
do sangue coagulado
no copo da escravidão
anseiam libertação
no passo da nova vida
na ida à competição
tição que acende o grito
no rito do novo negro
de alma e de coração
couraça de sofrimento
em busca do pensamento
de ser na integração
fogo vivo no terreiro
a noite sem cativeiro
nas cheias da hesitação
– do olhar amarelo branco –
com cerne esbugalhado
guloso de liberdade.

O SACI

O Saci tinha duas pernas
Uma dava passo africano
Com os anos
A cultura
Fez a ruptura.

EU NEGROAreia movediça na anatomia da miséria
Pano-pra-manga na confecção apressada de humanidade
Chaga escancarada contra o riso atômico dos ladrões
Espinho nos olhos do esquecimento feliz de ontem
Eu
Eu feito de sangue e nada
De Amor e Raça
De alegrias explosivas no corpo do sofrimento e mágoa.
Ponto de encontro das reflexões vacilantes da História
Esperança fomentada em fome e sede
Eu
A sombra decisiva dos iluminismos cegos
O câncer dos humanismos desumanos
Eu
Eu feito
De Amor e Raça
De alegrias incontroláveis que arrebentam as rédeas dos sentimentos egoístas
Eu
Que dou vida às raízes secas das vegetações brancas
Eu
Ébano que não morreu no temporal das agressões doentias
Força que floresceu no tempo das fraquezas alheias
Feito de Amor e Raça
E alegrias explosivas.O FUTURO

O futuro está no saco
O futuro está nas trompas
O futuro no entanto já está nas ruas
O futuro das ruas é imediato
Sente fome e sede
frio e falta de afeto e vive no asfalto
O futuro das ruas vende amendoim pede esmolas
toma conta de automóveis mas não toma leite
O futuro das ruas anda descalço e vira malandro
O futuro das ruas apanha dos policiais se revolta é preso é morto
O futuro das ruas se deteriora aos nossos olhos passivos
E cegos no futuro do saco no futuro das trompas.

POÇÍVELEstranho parece de vez em quando o tamanho do mundo
Os problemas indissolúveis
E o resto sonhos.
Entranho no meio dos sonhos e foices
E coices
E gritos gemidos açoites
Silêncio multiplicado…
Gadanho
Suor-estanho
Estranho lutar dia a dia
Quem sabe? Quem sabia
Que a descida de quem fugia abria uma cela de torturados?
CUTI. Poemas da carapinha. São Paulo : Ed. do Autor, 1978. 135p.

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