Mãe luta para salvar vida de filho baleado por policiais

Valter de Assis perdeu o reto e parte do intestino ao ser baleado por PMs de folga que o teriam confundido com um ladrão. Presídio onde está detido descumpriu ordens médicas

Os dois amigos, moradores de Americanópolis, bairro pobre na periferia sul de São Paulo, estavam a caminho de uma festa que não sabiam direito onde era, na madrugada de 31 de agosto. Valter de Assis Rocha, 20 anos, dirigia a moto, levando Alexandre Barreto dos Anjos, 19, na garupa. Seguiam um carro onde estavam outros seis amigos. Na avenida Roque Petrônio Júnior, a moto acabou ficando para trás, após receber o “enquadro” de uma viatura da PM.

Os dois jovens de Americanópolis se perderam e foram parar na Rua Jayme de Almeida Paiva, uma via nobre do bairro do Morumbi, cheia de mansões protegidas atrás de muros altos com trepadeiras e cercas eletrificadas. Viram um Voyage prata estacionado, com os faróis acesos, e se aproximaram para pedir informações. Dentro do automóvel, estavam dois policiais militares de folga. Quando viram a moto se aproximando, os PMs, sem dizer nada, atiraram de dentro do carro na direção dos meninos.

Mesmo baleados, os rapazes correram, ouvindo os tiros explodindo às suas costas. Bateram nos portões das mansões e gritaram por socorro, mas ninguém abriu. Tombaram em uma viela. Caído no chão, Valter permaneceu imóvel, respiração presa, tentando se fingir de morto. Seu amigo morreu ao seu lado. Ouviu os PMs se aproximarem e comentarem se valia a pena tirar foto dos baleados para “postar no Whatsapp”. Percebendo que o menino estava vivo, cutucaram seu corpo e perguntaram se estava armado. “Vamos embora que o Resgate está chegando, deixa ele morrer”, um dos PMs falou, antes de se afastar.

Dez minutos depois, Valter ouviu alguém se aproximando. “Vocês ainda estão aqui? Para com isso, me mata logo”, pediu. “Por que te matar? Eu sou bombeiro”, ouviu uma voz responder. Abriu os olhos . “Não me deixa morrer, pelo amor de Deus”, pediu ao bombeiro. Alguém tirou um barato, dizendo que Valter não havia pensado em Deus na hora de assaltar. “Eu não assaltei ninguém”, respondeu. E apagou.

Foi essa a história que a cabeleireira Márcia Eulália, 38 anos, ouviu da boca de seu filho Valter. E acreditou nela. “Ele sempre foi trabalhador”, afirma. Faz um mês que essa mulher abandonou o emprego e passou a viver para provar a inocência do filho. Junto com amigos e parentes de Valter e Alexandre, organizou uma manifestação no vão livre do Masp, na avenida Paulista, uma semana após o crime. Passa seus dias conversando com policiais, defensores públicos, advogados, militantes de direitos humanos, políticos e jornalistas, andando de um lado para outro com a bolsa cheia de cópias de laudos médicos, petições e boletins de ocorrência. Em duas semanas, perdeu dez quilos. “Tudo o que quero é ter meu filho de volta em casa”, diz.

Valter responde na Justiça por tentativa de latrocínio.

A polícia e o Ministério Público contam uma história diferente. Os PMs Marcelo Querino de Souza, 35 anos, e Homero Eduardo Bueno Brito, 26, que mataram Alexandre e feriram Valter, disseram que reagiram à bala porque a dupla tentou assaltá-los. A versão foi aceita pelo delegado Daniel Aparecido Viudes, do 89º DP, que considerou o morto e o ferido como suspeitos do crime. O Ministério Público concordou com as conclusões do inquérito policial e ofereceu denúncia contra Valter por tentativa de latrocínio, aceita pela Justiça.

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Parentes e amigos de Valter e Alexandre protestaram em 7 de setembro. Crédito: Arquivo Pessoal

Nos últimos dias, Márcia se agarrou a uma nova luta. Mais do que brigar pela libertação do filho, ela vem lutando para garantir que Valter sobreviva ao sistema penitenciário paulista. Atingido por cinco tiros, ele foi submetido a uma cirurgia, no Hospital das Clínicas, que removeu seu reto e parte do seu intestino. Hoje, vive com uma bolsa de colostomia, que precisa ser trocada uma vez por semana. Após receber alta do hospital, em 15 de setembro, foi enviado para uma enfermaria do CDP (Centro de Detenção Provisória) Belém I, onde, segundo a mãe, passou a sofrer com a falta de estrutura local. “Eles não dão os remédios que meu filho precisa e não têm bolsas de colostomia para trocar. Tive que levar duas bolsas para ele”, conta. Após visitar o filho, no último final de semana, Márcia saiu do CDP preocupada: “Ele está abatido e sente dores”.

Policiais negam “bico” e disse que iam encontrar “algumas meninas”.

“Diante da falta de estrutura material e humana do CDP e também em virtude de Valter não ter sido conduzido ao Hospital das Clínicas para retorno pós-cirúrgico, o risco de infecção é grande”, afirma a defensora pública Isadora Brandão Araújo da Silva, no texto de uma petição enviada à Justiça em que pede a conversão da prisão preventiva do rapaz em domiciliar. Para a defensora, manter Valter no presídio “constitui uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana”. O pedido foi recebido por um juiz da 12ª Vara Criminal de São Paulo, que pediu um posicionamento do Ministério Público antes de tomar uma decisão.

Procurada, a a assessoria de imprensa Secretaria da Administração Penitenciária informou que “a unidade está agendando o retorno do paciente Valter de Assis Rocha ao Hospital das Clínicas, aguardando apenas a definição de data para consulta”. A SAP não explicou por que o paciente não fez o retorno na data combinada, nem disse quando será a nova consulta. Mas afirmou que o preso está bem. “Observamos ainda que o reeducando se encontra clinicamente estável, com acompanhamento diário da equipe de saúde do CDP”, afirmou. A SAP também disse que os remédios para os presos na enfermaria são “distribuídos diariamente”.

Mentira

O pedido de prisão domiciliar para Valter, feito pela Defensora Público, é subsidiário. O pedido principal da defensora é pela revogação da prisão preventiva de Valter e pelo direito de responder ao processo em liberdade. “A polícia não apresentou provas materiais de que ele tenha tentado roubar os policiais”, afirmou a defensora. Além disso, há indícios de que os policiais mentiram em seu depoimento, ao negar que estivessem fazendo um “bico” como seguranças para os moradores do Morumbi no momento em que atiraram nos rapazes.

Valter aguarda resposta da Justiça para seu pedido de revogação da prisão preventiva
Valter aguarda resposta da Justiça para seu pedido de revogação da prisão preventiva

Segundo o Boletim de Ocorrência, os PMs Marcelo e Homero, que trabalham na Força Tática do 33º Batalhão, em Carapicuíba, na Grande São Paulo, e estavam de folga na madrugada de 31 de agosto, disseram que foram à capital para encontrar “algumas meninas” que haviam conhecido na internet, mas não souberam dizer o nome de nenhuma. O mesmo boletim, contudo, afirma que o carro em que os policiais estavam pertence à GPS Serviços de Portaria. O site da Junta Comercial do Estado de São Paulo informa que a empresa pertence a dois sócios: Andrea Cristina Batista Bueno e Eduardo Bonifácio Bueno, que têm o mesmo sobrenome de Homero. Além disso, Eduardo (informa o Diário Oficial) é investigador da Polícia Civil. “Essas inconsistências nos depoimentos dos policiais colocam em xeque toda a versão apresentada por eles para a ocorrência”, afirma a defensora Isadora. Além do mais, ela sempre que uma das testemunhas do crime disse não ter visto armas nas mãos de Valter e Alexandre.

Segundo a versão dos policiais, eles teriam parado o carro na rua para consultar o GPS (o aparelho de localização, não a empresa). Nesse momento, foram abordados por Valter e Alexandre, que chegaram de moto dizendo “perdeu, perdeu, perdeu”. “Tanto o piloto da moto como o garupa portavam ostensivamente arma de fogo”, afirma o texto do boletim. Os PMs afirmam que “se não reagissem, teriam sido alvejados por disparos provenientes dos roubadores”. Alexandre morreu no local e Valter foi levado pelo Resgate ao Hospital das Clínicas.

A polícia apreendeu duas armas que seriam dos suspeitos: uma pistola 380, que estaria com Alexandre, e uma pistola de pressão, que seria de Valter. Ambas foram levadas até a delegacia pelos próprios PMs que atiraram na dupla.

A Ponte procurou a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública e recebeu, como resposta, apenas isso: “A Polícia Civil informa que por se tratar de um flagrante o caso já foi encaminhado à Justiça no dia 03/09/2014″. As outras questões foram ignoradas.

Veja perguntas que a Secretaria da Segurança Pública não respondeu:

1. A Corregedoria da PM também abriu inquérito para investigar o crime?
2. A SSP já sabe dizer se, na hora do crime, os policiais estavam fazendo bico para a GPS Serviços de Portaria, pertencente ao investigador de 2ª classe Eduardo Bonifácio Bueno?
3. Os policiais usaram armas da corporação na ocorrência?

 

 

 

Fonte: Ponte

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