A longevidade da negação da infância para crianças negras tem sido materializada pela descoberta de mulheres negras que, desde infância, passaram uma vida inteira como trabalhadoras em situação análogas à escravidão. Um exemplo que ganhou repercussão nacional é a história de Madalena Gordiano, que chegou aos oito anos de idade na casa de uma família onde foi explorada por quase quatro décadas. No rastro da repercussão pública desse caso, experiências semelhantes vêm sendo denunciadas por todo país.
Deslocando-se para o século XIX, na região do Vale do Paraíba Fluminense, marcada pela extensa produção cafeeira, onde hoje está localizado o município de Piraí, é possível visualizar como as relações escravocratas naturalizaram a ideia de que corpos negros desde tenra idade existem para servidão. Um olhar atento à documentação disponível no Arquivo Histórico Municipal, no fundo do Juízo de Órfãos de Piraí, possibilita a reconstrução de vivências negras antes e após a abolição da escravatura. A pesquisa, apesar de reconhecer a existência de outras relações familiares, valendo-se de uma articulação entre a maternidade negra e a infância, focaliza os contratos de tutela realizados entre as décadas de 1870 e 1910. Nesse período, foram localizadas 62 crianças tuteladas, identificadas pela cor e pelo status jurídico. Desse modo, aparecem referências como “preta”, “parda”, “libertos”, “ingênuos”- nomenclatura criada para crianças livres, filhas de mães escravizadas após a Lei de 28 de Setembro de 1871. Observou-se que 58% dessas crianças não foram tuteladas por conta de orfandade, pois 36 possuíam mães vivas ou mesmo em algum momento conviveram com suas mães. Ademais, na ausência das mães, eram mencionados parentes como irmãos, avós e pais. Há situações em que as próprias mulheres solicitavam que seus filhos fossem tutelados por elas mesmas, ou por outra pessoa de sua confiança. Com efeito, a maioria das solicitações de tutela partia de homem interessado, geralmente negociantes, lavradores e fazendeiros. Aqui, encontramos diversas justificativas para que os/as menores se tornassem pupilos/as e/ou contratados/as desses homens. Dentre elas, havia a motivação de ensinar tarefas básicas do cotidiano como “coser, lavar”; outros motivos relacionados ao emprego mais especializado como empregar em “uma officina de costuras” na capital federal, bem como “oferecer a roupa necessária para o serviço”. Havia justificativas que indicavam alguma forma de cuidado como: “o interesse na educação e no futuro”; a vontade de “dar médico e botica quando estiver enfermo”. Esses indícios permitem visualizar que havia uma linha tênue entre a exploração do trabalho, proteção e a consequentemente obediência por parte dos/as tutelados/as.
Outros motivos aparecem na documentação: “o interesse na educação e no futuro”; a vontade de “oferecer a roupa necessária para o serviço” que seria desenvolvido pelo/a pupilo/a; “dar médico e botica quando estiver enfermo”. Esses indícios permitem visualizar que havia uma linha tênue entre a exploração do trabalho, proteção e a consequentemente obediência por parte dos/as tutelados/as.
Esses contratos eram atravessados por conflito, especialmente quando as mães solicitavam um tutor para seus filhos ou os deixavam com outras pessoas até conseguirem retomar o cuidado, podiam acontecer conflitos entre as mães e os tutores. Nessas situações materializa-se o caráter desigual dos pedidos de tutela, pois muitas vezes as mulheres perdiam as causas. Nesses casos, é comum encontrar na documentação o uso de expressões desqualificadoras sobre a maternidade dessas mulheres. Um exemplo a este respeito pode ser visualizado no processo em que um lavrador, ao tutelar uma menina chamada Malvina de cerca de cinco anos, justificou que o fazia para “que não venha a mãe da menor, mulher de vida irregular, lhe criar embaraços e dificuldades para o futuro”. Quando solteira podia ser desqualificada como alguém “de má vida”. Entretanto, a condição de estar casada não era garantia de que a tutela seria concedida em favor das mães. Em outro processo, entre 1893 e 1899, o tutor alegou a necessidade de permanecer com o menino, justificando que a mãe “apesar de estar casada continua não tendo condições de educar”. Processos como esses nos fazem indagar: até que ponto a preocupação dos tutores e contratantes era, de fato, o futuro das crianças?
Acompanhar o processo de Ana, filha de Lina Maria da Conceição, tutelada aos 10 anos, colabora para visualizarmos que os interesses da manutenção das tutelas muitas vezes giravam em torno da intenção de explorar as crianças como força de trabalho. Em 21 de fevereiro de 1900, a menina Ana, de cor “preta, foi tutelada por um cidadão chamado José Rabello de Souza. Para garantir a tutela da menina, o homem anexou ao processo um atestado assinado pelo comissário de polícia, cujo documento alegava que a mãe da menina morava com mais três mulheres, vivendo uma vida pândega. Diante disso, propunha que Lina Maria era “incapaz de ter em sua companhia qualquer menor” e buscava assim tutelar Ana, comprometendo-se a garantir as necessidades básicas e uma remuneração mensal para a menina.
Em maio de 1901, o mesmo tutor entrou com uma ação renunciando à tutela da menina. Após essa ação, o juiz de órfãos, por não encontrar pessoas de “probidade” que quisessem tutelar a menina, convocou Lina Maria para ser a responsável legal de sua filha. Se anteriormente, Lina havia sido considerada pelo comissário de polícia incapaz de cuidar da filha, o que levou o juiz a convocá-la como tutora, já que a mãe continuava morando com as mesmas mulheres com quem dividia casa em 1900?
No processo consta uma breve entrevista feita pelo juiz à Ana. Por meio desse documento, é possível entrever um pouco mais sobre a relação da menina com a mãe, bem como as condições de trabalho em que estava submetida com a família do tutor. Ao ser questionada sobre o motivo que a fez querer sair da casa de seu tutor, a menina alegou que não recebia maus tratos, sendo este um fator agravante para o encerramento da tutela, mas que “desejava viver com sua mãe”. Disse ainda que enquanto vivia com o tutor estava empregada a “mister” do filho dele, o que significa que ela realizava diversas tarefas de acordo com a necessidade da família.
Talvez pareça simples, mas o fato de a menina querer viver com sua mãe contraria a ideia de que Lina não fosse incapaz de cuidar de uma criança. A mãe foi desqualificada porque vivia com outras mulheres e, portanto, tendo uma vida fora da moralidade. Seu modo de vida estava relacionado com as suas condições materiais, relacionado muitas vezes com as formas de trabalho exercidas por mulheres negras empobrecidas no final do século XIX e início do século XX. Esse processo nos permite perceber como a estigmatização das formas de vida de mulheres racializadas foi utilizada para separar mães de seus filhos e filhas. Essa separação permitia que homens, como José Rabello, pudessem ter acesso a mão de obra de diversas Anas, que ficavam disponíveis para as necessidades das famílias dos tutores.
Não por acaso, a fim de não perder a tutela de seus filhos, muitas mulheres buscavam reafirmar a condição de casada e trabalhadora. No entanto, nem sempre essas provas eram consideradas pelo juizado, e elas acabavam perdendo a tutela de seus rebentos. Essas crianças, ao serem afastadas de suas mães, consideradas de “má vida”, tornavam-se filhos/as de criação nas casas de famílias de melhores condições sociais. Nesses espaços viviam a “mister” das necessidades da família, passando a receber cuidados básicos como forma de remuneração aos trabalhos prestados. Em outras palavras, as tutelas eram usadas para explorar uma mão de obra sob o pretexto de proteger as crianças
Uma visada nos processos de tutelas do Juízo de Órfãos entre o final do XIX e início do XX permite historicizar uma prática longeva: o emprego de crianças negras como mão de obra barata ou em condições análogas à escravidão por famílias com melhores condições sociais. Nesses processos, atravessados por conflitos, a desqualificação da maternidade negra explicita o entrelaçamento entre a negação do direito à infância, o racismo e o sexismo. Situação que ressoa no tempo presente.
Assista ao vídeo da historiadora Maria Eloah Bernardo no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); e EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).
Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).
Maria Eloah Bernardo
Telefone: (24) 99259-5885.
Mestranda em História na UFRRJ. Licenciada em História pela UNIRIO. Educadora Social no Instituto Lima Barreto.
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