‘Meu filho é órfão de mãe viva’: veja relatos de 5 mulheres acusadas de alienação parental após denunciar homens por violência ou abuso

Lei brasileira criada para proteger crianças em casos de separação dos pais é criticada por especialistas por ser usada contra mães que denunciam violência doméstica ou abuso sexual dos filhos.

Cristiane foi obrigada a ficar sem contato com a filha e entregá-la ao pai por 90 dias. Isabela* foi ameaçada pelo companheiro. Jéssica* e o filho foram vítimas de violência física por parte do ex-marido. Juliana* e Soraia* denunciaram os pais de seus filhos por abusarem sexualmente das crianças.

(*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos menores de idade e de suas mães. Cristiane é a única cuja história já é pública e, por isso, concordou em dar seu nome verdadeiro.)

Todas elas foram acusadas por esses homens de promoverem alienação parental – prática prevista numa lei brasileira de 2010 criada para proteger as crianças em processos de separação, mas criticada por especialistas, que veem nela uma ameaça aos direitos de mulheres, crianças e adolescentes. Peritos da Organização das Nações Unidas já apelaram ao governo brasileiro para que elimine a lei — a única do tipo no mundo, segundo o Ministério Público Federal (MPF).

O Judiciário acatou, em parte ou totalmente, os pedidos dos homens contra Cristiane, Isabela, Jéssica, Juliana e Soraia.

Os filhos de Isabela foram assassinados pelo pai, que se suicidou na sequência. Sob cuidados do pai, a filha de Cristiane também morreu, após maus-tratos. A criança de Jéssica fica sozinha com o pai violento. Soraia perdeu a guarda do filho para o ex-marido – à época, investigado por abuso sexual contra a criança. O filho de Juliana foi obrigado a estar reiteradas vezes na presença do pai, investigado pelo mesmo motivo (os inquéritos policiais acabaram arquivados).

Leia mais sobre cada caso abaixo.

“A guarda é minha, mas com muito peso”

“O único argumento que ele tem contra a mim é alienação parental, porque é algo subjetivo”, diz Jéssica que há seis anos enfrenta a acusação na Justiça, sem que o ex-marido tenha conseguido prová-la.

Ela — que obteve duas medidas protetivas contra o ex-companheiro por conta de violência doméstica –, o filho e o pai da criança já foram submetidos a três perícias, e nenhuma delas constatou a alegada alienação por parte dela.

Nas três análises, o filho relatou o comportamento imprevisível do pai, que passa, rapidamente, de uma pessoa divertida a alguém violento, contou sobre as agressões que sofreu e expressou medo de ficar sozinho com ele.

A última perícia recomendou que o pai tenha acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Segundo Jéssica, nada disso foi considerado pelo Ministério Público e nem pela Justiça, que mantém a guarda com ela, mas também um regime de visitas regulares ao pai, sem supervisão.

“Meu filho precisa ter um pai, sim, mas a única coisa que eu peço é proteção. Não quero um filho traumatizado a ponto de ser um adulto com problemas”, diz ela. Ao longo dos últimos anos, o menino desenvolveu crises de ansiedade e passou a tomar medicamentos.

“Meu filho chegou a me dizer que eu havia escapado da violência. Em seguida, me perguntou: ‘e eu?’”, conta a mãe.

“Alguém tem que parar ele”

Acusada de alienação parental pelo ex-companheiro, Isabela diz que nunca impediu que ele visse as crianças, mas se sentiu forçada a ceder a uma convivência muito maior para não perder a guarda.

Segundo ela, os relatos de violência doméstica e ameaças não foram analisados pela Vara da Família, que determinou o acompanhamento da família por um centro de assistência social. Nem quando o pai picotou as roupas das crianças na frente dos filhos esse órgão se sensibilizou.

“Como ele me acusava de ser alienadora, nada do que eu e as crianças dizíamos era prova”, afirma Isabela.

Em uma das sessões, Isabela relata ter dito à assistente social que “alguém tem que parar ele”, em referência ao ex-marido. Dias depois, o ex-companheiro assassinou as crianças com um tiro na cabeça de cada uma, e na sequência, suicidou-se.

“Nós vemos dois pesos e duas medidas”, diz a cientista social Vanessa Hacon, integrante dos coletivos Mães na Luta e Voz Materna. “Quando a criança diz: ‘não quero ver a mamãe’, o desejo dela vale. Já no sentido inverso, mesmo em casos de violência comprovada, impera o mito do bom pai. Há, nesses casos, um sobre esforço para a manutenção do vínculo com o pai em oposição a uma desconfiança quanto às denúncias das crianças e das mulheres-mães.”

“Meu filho é órfão de mãe viva”

Soraia não vê o filho desde 2016, quando ele, aos 5 anos, foi totalmente afastado dela e entregue ao pai, que, segundo ela, abusou sexualmente da criança. Naquele ano, o menino ainda dormia quando policiais, conta ela, invadiram a casa em que moravam para levá-lo.

Tudo começou quando o ex-marido entrou na Vara da Família com uma ação de guarda e regulamentação de visita, acusando Soraia de cometer alienação parental. À época, Soraia relata que já tinha feito um boletim de ocorrência por agressão física contra si e já tinha flagrado uma cena de abuso contra o filho.

“Um dia, depois de visitar o pai [enquanto a ação corria], meu filho chegou em casa muito machucado [no ânus]. Levei no Conselho Tutelar, fomos na delegacia fazer exame de corpo de delito e a própria delegada me disse: ‘você não vai mais entregar seu filho para esse homem’”, diz a mãe.

Na ação de guarda, Soraia foi diagnosticada com um distúrbio psiquiátrico (esquizofrenia paranoide) por uma psiquiatra indicada à Justiça, segundo ela, pelo ex-marido. Já o filho foi apontado como possível vítima de alienação parental.

Foi o que bastou para que a palavra dela deixasse de ser considerada no Judiciário — os vários laudos que descartavam qualquer distúrbio psiquiátrico ou doença mental não foram suficientes para reverter essa situação.

Também não foi levado em conta um laudo psicológico indicando a influência inadequada de erotismo sobre o menino, nem o parecer psicológico, realizado na investigação policial contra o pai, que, apesar de inconclusivo, apontou que a criança havia apresentado um relato organizado e detalhado de abuso. O inquérito contra o pai foi arquivado.

O caso dela foi tema de uma reportagem do Fantástico em 2018, quando fazia pouco mais de um ano que ela estava sem ver o filho por ter sido considerada uma alienadora de grau severo. De lá pra cá, essa situação não mudou. Soraia levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ainda não se manifestou se aceita ou não a denúncia.

“Meu filho é órfão de mãe viva. Ele pediu ajuda e entregaram ele para a pessoa que estava sendo investigada por abuso. Já eu fui considerada como uma pessoa ‘em surto’, a mãe que inventou uma denúncia para incriminar o pai”, diz Soraia.

Segundo a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, situações de abuso sexual contra crianças “que não têm testemunhas e não deixam vestígios, dificilmente serão provadas judicialmente”. Por isso, os relatos das mães, na visão do MPF, precisam ser levados em conta.

“Para esses casos, o relato das mães, das crianças e dos adolescentes vítimas pode ser ferramenta útil na tomada de decisão de medidas para a interrupção e reparação dos efeitos do abuso. A Lei da Alienação Parental se mostra, então, como uma ameaça para essas providências, pois formaliza a desconfiança frequente que paira sobre as denúncias de mulheres”, escreveu a Procuradoria em nota técnica de 2020.

“É como morrer em vida”

Quando seu filho ainda bebê mostrou, com bonecos, que o pai havia tirado sua roupa e colocado a cabeça entre suas pernas, o primeiro instinto de Juliana foi fazer um boletim de ocorrência — na ocasião, ela já tinha deixado a casa onde morava com o pai do menino e estava tentando resolver a separação fora da Justiça.

“Meu advogado falou: ‘tem a questão da alienação parental. Você tem que agir com cautela’”, conta. O medo era de que a denúncia viesse a ser usada contra ela, que seguiu o conselho e não levou o caso às autoridades.

O ex-companheiro, no entanto, entrou com uma ação para divórcio e regulamentação de visitas, acusando-a de alienação, conforme Juliana.

No retorno de uma dessas visitas ao pai, a criança voltou a relatar que o pai o segurava e se esfregava nele. O menino pediu ajuda à mãe e à professora: queriam que elas falassem com o pai para que parasse.

“Eu pensava: se eu for na delegacia denunciar, vou perder a guarda. Me sentia uma inútil, porque não conseguia proteger meu filho”, diz Juliana.

Convencida pelo conselho tutelar, ela fez um boletim de ocorrência e a polícia começou a investigar. Com um laudo compatível para a hipótese de abuso sexual, a polícia pediu o indiciamento do pai da criança, mas o Ministério Público se manifestou pelo arquivamento.

O ex-companheiro, então, voltou a acionar a Vara da Família, acusando-a de alienação e requisitando a guarda da criança. As visitas aos finais de semana, suspensas quando a investigação policial começou, foram liberadas, sob pena de multa e de realização de busca e apreensão caso ela não entregasse o menino, conta Juliana.

Ela começou a gravar as recusas do filho de ir com o pai, relata. Acionado, o Conselho Tutelar não permitiu, em uma dessas ocasiões, que a criança fosse levada pelo pai — ele, então, chegou a ameaçar telefonar para “seus contatos” na delegacia.

A Vara da Família novamente cortou as visitas, determinando, no entanto, encontros assistidos no fórum.

“Expuseram meu filho de novo a isso. E ele chorou, gritou, não quis entrar na sala de jeito nenhum”, conta Juliana.

Com a recusa explícita da criança, as visitas foram interrompidas, e os dois pais, submetidos a avaliações psíquicas. O laudo resultante afirma que ela não possui transtornos mentais, já ele foi apontado como alguém com falta de empatia e propenso a comportamentos violentos.

Segundo Juliana, depois disso, o Ministério Público pediu mais um laudo psicológico para saber se o menino, que passou a tomar medicamentos e em depoimento recente expressou repulsa ao pai, pode voltar a conviver com o pai.

“É uma tortura, é como morrer em vida. Eu vivo apenas para cuidar do meu filho, mas me sinto de mãos atadas”, diz ela.

“Prometi que ficaria viva para ver Justiça”

Joanna Marcenal morreu em agosto de 2010 — Foto: Marcelo Carnaval/Agência O Globo

Pouco antes de a lei sobre alienação parental ser sancionada pelo então presidente Lula, em 2010, a filha de Cristiane Marcenal, Joanna Marcenal, de apenas 5 anos, morreu depois de, por decisão judicial, ser afastada da mãe e entregue para ficar 90 dias sob cuidados do pai.

“[A decisão] foi baseada em um laudo psicológico feito por três peritas que não ouviram nem a mim, nem a Joanna; apenas o pai, a madrasta e os avós paternos. O laudo dizia que eu praticava alienação parental e sugeria esse tipo de inversão de guarda”, conta Cristiane.

Semanas depois, ela soube que a filha estava internada no hospital com meningite. O laudo do IML confirmou que a menina sofreu maus-tratos, o que agravou seu estado de saúde — Joanna tinha queimaduras nas nádegas, além de cicatrizes e feridas pelo corpo.

O pai da menina, André Marins, foi indiciado pela polícia por tortura — à época, ele se disse surpreso com o resultado do inquérito — e denunciado pelo Ministério Público pelos crimes de tortura e homicídio qualificado por meio cruel. Ele chegou a ser preso e foi solto meses depois. Em 2020, a Justiça determinou que ele não irá a júri popular.

“Prometi para a Joanna no túmulo que eu ficaria viva todos os dias para ver a Justiça pra ela”, diz Cristiane. “Estou viva e esperando Justiça, sempre”.

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