‘Mundo Real’ mostra vida do negro na academia marcada pelo racismo

Protagonista de romance é feito de quereres antigos, cobertos por um silêncio aprendido na infância

Certas leituras surpreendem justamente por não nos surpreender. Como espelhos, ou vidraças, refletem e transparecem aspectos conhecidos. Já esperados. Lemos enquanto vemos —ou imaginamos— nossas experiências sendo narradas como as de outrem, irreais demais para chamarmos de amigos, porém próximos o bastante para que desejássemos que assim fossem. Amigos, ou colegas, pelo menos. Alguém para conversar sobre a vida. Wallace seria um desses, com certeza.

Nome comum em minha quebrada —Wallace, Wellington, Washington—, o rapaz do Alabama, Estados Unidos, parte para fazer jus à bolsa de estudos e inicia sua pós-graduação em bioquímica. Muito distante da zona leste de São Paulo, ele, Wallace, tem seu final de semana descrito em detalhes ao longo das quase 300 páginas de “Mundo Real”, romance que lançou o escritor Brandon Taylor no mainstream literário e chegou no Brasil pela editora Fósforo com tradução de Alexandre Vidal Porto.

Em dois dias, o jovem vivencia a realidade como consequência de sua origem: preta, pobre e queer. Toda vez que leio alguma obra que vale a menção e lembrança, imagino se o escritor algum dia terá noção do quão longe suas palavras chegaram. Que um canto que ele nunca viu —e nunca verá, provavelmente— olhou para sua escrita e fez dela parte de seu cotidiano ao longo dos dias de leitura.

Propício o título do livro estar no singular, afinal, é, a priori, o mundo de Wallace. Entretanto, não há como conhecê-lo sem pensar nos tantos mundos reais que estão espalhados globo afora. É neste caleidoscópio de experiências distintas e conectadas, no paradoxo infinito das relações sociais, que nos encontramos sem nunca termos nos conhecido —quiçá existido, de fato.

Wallace, para variar, é o único negro em sua turma de alunos. Seus amigos, todos brancos demais, tratam-no como despreparado, insuficiente, egoísta e ingrato. Despreparado porque seus experimentos ainda em fase de teste não apresentam bons resultados logo de início e a academia se mostra avessa a ele.

Insuficiente por não suprir todas as necessidades afetivas de cada um dos estudantes que com ele se relacionam —e aqui me recordo da carência obsessiva do Giovanni de James Baldwin, que no livro de Taylor poderia ser vista no personagem Miller. Também cobravam dele alguma reação à morte do próprio pai que correspondesse à ideia de luto estabelecida pelo senso comum. Ansiavam, os amigos, por choro, desespero e melancolia, não uma frieza ou autocontrole que deixasse para dentro de Wallace o que lá pertencia. O pouco de si que ainda era só seu.

Quanto ao egoísmo, era apontado todas as vezes em que o rapaz só queria se ausentar de tudo e todos e ficar sozinho, com suas questões, no seu tempo. Ao negro quase nunca é dado o direito ao descanso —não só físico, mas psicológico.

A ingratidão, por sua vez, expressava-se —de acordo com os amigos brancos até demais— quando Wallace tomava coragem e respondia aos ataques racistas que sofria, reagia aos relacionamentos abusivos nos quais se afogava e tomava novamente as rédeas da própria vida, o que lhe permitia imaginar saídas para a situação angustiante no campus. Continuar, desistir, voltar, ficar. O que para uns é escolha, para o estudante negro era sentença.

A leitura desta obra me fez, praticamente a todo momento, lembrar de uma frase que carrego — e digo a mim mesmo— há anos: “permita-se fazer falta”. Não estar era tudo o que o personagem precisava para, então, encontrar-se.

Durante uma conversa que tive com o escritor Volp, autor de “Homens Pretos (não) Choram” e “Nunca Vi a Chuva”, e Alexandre Vidal, pudemos juntar os mundos reais que se encontravam com o construído por Brandon Taylor.

Negritude no meio acadêmico, homossexualidade no meio acadêmico, nós no meio acadêmico, e o quanto das três vivências atravessava a do personagem discutido. Subestimar a capacidade intelectual por causa da origem que marca o indivíduo negro, invadir —inclusive com violência pura— a subjetividade da pessoa queer que era obrigada a estar sempre disponível e pronta para o toque, o sexo, a entrega, condenar a postura do pobre bolsista que erra, persiste e é incentivado pela própria mentora a desistir de sua episteme.

Falávamos, os três, sobre Wallace, e sem perceber estávamos rememorando nossas próprias experiências. Uma conversa cotidiana, de corredor, de ponto de ônibus, um registro dos cantos que só nós vemos. Há livros que são como encontros e ajudam a conectar as beiras do mundo, dando forma ao que chamamos de realidades —uma constante estratégia de sobrevivência.

Em Wallace existia história demais, traumas demais, vontades demais. Era ele feito de quereres antigos, cobertos por um silêncio aprendido na infância. Talvez por isso tenha ele calado tantas vezes e não dado aos amigos brancos demais aquilo que eles buscavam: não se sentirem racistas enquanto assim eram. Ao calar, dizia muito o Wallace.

“Mundo Real” é uma conversa longa que teria com Wallace na calçada de minha casa, aqui pros lados do Ermelino Matarazzo. E os silêncios não seriam surpresa, já que mundos reais são como são.

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