Um ano atrás, no Dia da Consciência Negra, o Brasil amanheceu enlutado pelo assassinato por espancamento de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre (RS) — justamente a cidade que legou ao país as celebrações do 20 de Novembro. Semanas após o crime, que já rendeu acordo de R$ 115 milhões em medidas de enfrentamento ao racismo e reparação coletiva com MPF, MP-RS, DPU e Defensoria Pública gaúcha, a Câmara dos Deputados instituiu comissão de juristas para analisar e propor medidas legislativas de combate ao racismo estrutural e institucional no Brasil. Nesta semana, o relatório de quase 600 páginas foi entregue à Mesa Diretora da Casa, mas acabou eclipsado pela nona filiação partidária de Jair Bolsonaro em três décadas de vida pública, pela aprovação no Senado do ministro terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal, pela confirmação de casos da variante Ômicron do coronavírus e pela recessão técnica da economia conduzida por Paulo Guedes.
Foi a primeira vez que o Parlamento brasileiro convidou um grupo de pessoas negras com reconhecido saber jurídico — 19 ao todo, entre os quais o juiz André Nicolitt, os professores Adilson Moreira e Thula Pires, a promotora Lívia Vaz e a defensora Lívia Casseres — para debater o antirracismo. O ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, presidiu a comissão; Silvio Almeida, professor e escritor, presidente do Instituto Luiz Gama, autor de “Racismo estrutural”, assumiu a relatoria: “É o trabalho mais sofisticado já feito sobre o tema. Engloba várias áreas do Direito. Ouvimos especialistas e a sociedade civil”.
No Brasil, o homicídio de jovens negros é endêmico, o encarceramento de pretos e pardos brutal, mas o ambicioso documento final da comissão não se limita a sugestões no campo da segurança pública e da justiça criminal. “Nesse aspecto, espera-se acolhimento de propostas impactantes para combater abordagens policiais violentas, reconhecimentos fotográficos injustos, além de mudanças na lei dos crimes de racismo [Lei 7.716/1989] para torná-la mais efetiva”, diz Nicolitt.
Há propostas de políticas de promoção da igualdade racial, renda básica universal, crédito para empreendedorismo negro e quilombola, ações afirmativas, descriminalização de drogas, Cannabis em particular. O documento defende a proteção de manifestações culturais, fiscalização do trabalho doméstico, combate à evasão escolar, aplicação efetiva da lei de ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena, políticas de saúde para população negra, proteção do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, titulação de territórios quilombolas. Propõe criação de um Fundo Nacional de Enfrentamento ao Racismo, política de valorização do salário mínimo, profissionalização de adolescentes, jovens e mulheres negras, mudanças na Lei Rouanet, ações afirmativas no serviço público. Nem a reforma tributária escapou.
O relatório, conta Silvio Almeida, foi assentado na ideia de que não há combate ao racismo sem Orçamento. Inova, portanto, ao adicionar dimensões fiscais ao enfrentamento às desigualdades étnico-raciais. “Não há como vencer o racismo sem investimento público, sem priorizar os aspectos da política orçamentária que auxiliam na reprodução da desigualdade. Juntamos direitos econômicos, tributários, financeiros com o antirracismo. Por isso, a necessidade da reforma tributária; na administração pública e nas empresas privadas, a importância da boa gestão”, resume.
O debate orçamentário, também em razão da pouquíssima diversidade nos espaços de poder político e econômico no país, prescinde das reflexões de raça e gênero. Não por acaso, é mais fácil sepultar o Bolsa Família que pôr fim às emendas de relator do orçamento secreto. Mas o tamanho da vulnerabilidade social num país com metade da população em situação de insegurança alimentar, 19 milhões de famintos, quatro em cada dez trabalhadores na informalidade, 13 milhões de desempregados — em todos os casos, maioria feminina e negra — exige protagonismo e recursos do Estado no enfrentamento às desigualdades.
O relatório dos juristas contém um conjunto robusto de proposições. Mas põe, à frente de tudo, o combate à fome, agenda urgentíssima. É documento a ser multiplicado e analisado não só por legisladores às vésperas do ano eleitoral, mas pelos segmentos da sociedade verdadeiramente interessados na superação do racismo estrutural, mazela que nos envergonha eticamente e nos limita economicamente.