Quanto vale a vida humana? Depende. Para o Estado Brasileiro a vida vale proporcionalmente os limites de uma discriminação no mínimo imoral, que desperdiça ou deixa de arrecadar mais de 18 milhões de litros de sangue por ano baseado numa seleção sanguínea heteronormativa excludente e preconceituosa. Enquanto isso, milhares de pessoas estão na fila de espera para realização de transfusão de sangue e muitas morrem pela demora ao tratamento hemoterápico.
Por Patrícia Mannaro, do Justificando
Ainda assim, no Brasil, vigora a Portaria do Ministério da Saúde nº 158/16, baseada na Resolução da ANVISA nº 34/14, art. 25, XXX, “d”.
Portaria nº 158/16
Art. 64 – Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:
IV – “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”
Me pergunto o que exatamente o legislador quis ao colocar na mesma norma proibitiva os termos “tenha sido exposto” e “homens que tiverem relações sexuais com outros homens”, além de demonstrar total desconhecimento sobre as diversidades sexuais, visto não tratar-se de uma opção, ou ato de escolha e sim a própria essência, algo inerente ao ser humano e estigmatizar relações homoafetivas, baseado no preconceito direto, ferindo de forma assustadora a dignidade da pessoa humana dentro de uma estrutura autorizada pela própria Lei. Esse absurdo legislativo, nada mais é que a normatização da discriminação e infelizmente o contexto não vem de hoje.
A norma chega ao incompreensível de colocar no mesmo contexto situações de sexo em troca de dinheiro, uso de drogas, sexo indiscriminado e casual, violência sexual, doenças transmissíveis por transfusão de sangue, ter tatuagens, piercings, a uma relação homoafetiva, ainda que estável, porque a resolução, no que se refere ao sexo heterossexual, admite uma entrevista e avaliação do caso, tratando-se de relação homossexual, não há triagem, o impedimento é automático.
Temerário e imoral quando a Lei estimula e legitima o preconceito, o que se evidencia inclusive sobre mulheres lésbicas e bissexuais que encontram entraves em vários hemocentros, baseados numa analogia discriminatória e preconceituosa e também são proibidas de doarem sangue, ainda que sem lei impeditiva.
Não é legítimo ao Estado, aplicar restrições que ferem a proporcionalidade fática, mutilando os Direitos Humanos desta forma vil e irresponsável e se mantendo inerte aos inúmeros óbitos causados pela recusa desproporcional em não permitir que, pessoas homossexuais e bissexuais, em razão de sua orientação, ajudem a salvar vidas. O sangue azul da mão do Estado é tão vermelho quanto os demais.
O ser humano, não pode estar sujeito a uma classificação de valia, de utilidade, rotulado e ou excluído, tendo como base, dentre outros direitos inerentes a sua essência e existencialidade, seu gênero, sua orientação sexual e sua identidade de gênero, sob pena de rasgarmos a Constituição e vestirmos uma nação inteira como algoz de direitos e garantias fundamentais.
Em defesa a manutenção da norma, a ANVISA utiliza-se da legislação de outros países para justificar a Resolução 34/14, no entanto, muito me espanta que, esses mesmos países não serviram de base para o Brasil adotar uma legislação mais inclusiva aos direitos LGBTQIA, visto que muitos citados possuem uma postura mais inclusiva aos Direitos Humanos, mas nesse viés, ironicamente, não serviram de parâmetro.
O Estado alega que, a norma proibitiva tem caráter protetivo aos receptores da transfusão em razão do sexo entre homens fazer parte de um grupo de risco, no entanto, pelo Boletim Epidemiológico HIV/AIDS de 2015 do próprio Ministério da Saúde, atualmente, não se sustenta tal discurso, que visivelmente é utilizado para camuflar a latente discriminação existente em nosso país.
Não seria a primeira vez que o Estado, busca legitimar preconceitos e atos segregativos, manipulando a opinião pública e valendo-se de princípios que de fato não estão sendo seguidos. O maior receptor na aplicação de valores invertidos, ainda é a manipulação da fé como meio de exclusão social e assim, segue-se ignorando o Estado Laico.
O conceito de grupo de risco surgiu por volta de 1980 devido a epidemia de síndrome da imunodeficiência adquirida, onde, a maioria dos transmissores eram homossexuais, usuários de drogas injetáveis e pessoas hemofílicas, no entanto, o vírus disseminou-se atingindo de forma horizontal a população em geral. Esse novo panorama deixa claro que, atualmente, ao falarmos de DST/AIDS temos que levar em conta, não um grupo específico, visto não mais existir, e sim um comportamento de risco, que pode ser desenvolvido por homens e mulheres, independente de orientação sexual ou identidade de gênero.
Inacreditavelmente, os dados são do próprio Ministério da Saúde, o mesmo que se recusa a rever a Portaria 158/16, balbuciando de forma vergonhosa, toda sua real motivação discriminatória.
De acordo com o Boletim, com dados fornecidos pela Revista Super Interessante, no ano passado, 4329 homens contraíram o vírus HIV, destes, 4.4% ocorreu por transfusão e drogas injetáveis, 49.9% relações heterossexuais e 45.7% relações homossexuais.
No entanto, a doação de sangue por homens heterossexuais, tem como requisito apenas exigir relação sexual com parceira fixa, caso contrário, a situação será avaliada individualmente.
Ademais, no Brasil, de 1980 a junho de 2015, foram registrados 519.183 casos de AIDS em homens e 278.960 em mulheres, ou seja, 65% e 35%, respectivamente, analisando os gráficos, nota-se que, aumentou o número de mulheres de contraíram AIDS de seus parceiros fixos, logo, rotular sexo homossexual, esteriotipando comportamentos, pré julgando promiscuidade e inserindo essa categoria de orientação sexual em grupo de risco de forma indiscriminada é cruel, imoral, discriminatório além de ilegal, pois fere uma das premissas máximas de nosso Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana.
Além disso, ao manter a vigência de tal norma, o Estado atesta, sua LGBTQIAfobia institucionalizada e sua incapacidade de realizar um controle eficaz sobre o comportamento de risco, que independe do sexo praticado, além de ignorar que os testes laboratoriais sobre doenças sexualmente transmissíveis para a realização da doação de sangue, tem elevada tecnologia, conseguindo inclusive, nos últimos anos, diminuir as janelas imunológicas, tornando os exames ainda mais seguros.
Por fim, em 07 de junho de 2016 foi proposta ADI 5543 pelo PSB, e várias organizações estão atuando como amicus curiae, lutando para que o Estado cumpra sua função garantista, retire o manto moralista e preconceituoso institucionalizado e permita que mais de 18 milhões de litros de expectativa de vida por ano, que correm nas veias de homens gays e bissexuais e que buscam o direito a igualdade sobre sua dignidade e respeito como pessoas, sejam utilizados nos tratamentos hemoterápicos.
Todos temos a mesma cor de sangue, mas o preconceito é um coágulo capaz de matar. É a síndrome da imunodeficiência adquirida estatal e ainda não achamos o coquetel.
Patrícia Mannaro é integrante da DeFEMde (Rede Feminista de Juristas), Procuradora Municipal e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP.