Não ter “perfil” e fazer “serviço de preto”: o negro no mercado de trabalho racista brasileiro – por Higor Faria

Recentemente, me deparei com a notícia de que a FIFA vetou Lázaro Ramos e Camila Pitanga para apresentar o sorteio dos grupos de competição, colocando Glenda Kozlowski no lugar. Acusada de racismo, a Federação alegou que a rejeição não se tratava de discriminação, mas de falta de representatividade dos atores.

Lázaro e Camila talvez não precisem deste trabalho para sobreviver, mas seria grande a visibilidade que tal evento traria para qualquer um dos dois e para a comunidade negra no que tange a conquista de espaços. Além disso, vejo nesse caso a possibilidade de ilustrar como o racismo (re)age no mercado de trabalho e a falta de oportunidades que negros e negras enfrentam diariamente.

Para a FIFA, os atores não tinham o “perfil”. Para as grandes, as médias e as pequenas empresas, pessoas negras só por serem negras também não têm o tal do “perfil” seja para conquistar uma vaga ou para ascender profissionalmente.

Apesar da diminuição das desigualdades, negros ainda estão em maior situação de desemprego em relação aos não negros na região metropolitana de São Paulo (Dieese). E a diferença acontece nos diversos níveis de escolaridade, aumentando de acordo com o grau de estudo exigido pela função. Do chão de fábrica ao doutô, somos os que mais têm dificuldades de arrumar um trabalho e os que passam mais tempo desempregados.

Lembro-me de quando procurava estágio e emprego. A história quase sempre era a mesma, só mudava o endereço da empresa e o entrevistador. Enviava meu currículo que, na maioria das vezes, era elogiado e selecionado para a entrevista onde eu por vezes era barrado porque, segundo as próprias selecionadoras, não tinha o tal do “perfil”. Antes que apontem por aí: cursei uma universidade pública como alguns colegas de profissão; tinha até mais experiência que muitos deles; meu discurso era embasado e até bem desenvolto; e preenchia outros requisitos básicos exigidos para profissionais de comunicação.O que seria então o maldito do “perfil”?

Em menor e mais humilde escala, minha situação pode ser comparada com uma vivida por Joaquim Barbosa. Ele foi barrado na entrevista do Itamaraty, vai ver era porque ele não tinha o “perfil”. Mas como o Joaquim Barbosa também não tinha o maldito do “perfil”? Demorou até eu perceber que esse tal de “perfil” era, com frequência, sinônimo de ser branco.

O ter “perfil” muitas vezes é utilizado como o antigo ter “uma boa aparência” que equivale a não ser negro ou a ser menos parecido com um. Não estou dizendo que todas as empresas pelas quais passei são racistas. Não é isso. O que afirmo é que ser negro em espaços hegemonicamente brancos causa desconforto, estranheza e desconfiança acerca do trabalho que será executado. Afinal, é “serviço de preto” e, normalmente (ou a norma), brancos executam. Romper com isso é quebrar uma das estruturas do racismo institucional.

É por essa e outras que negros e negras não são empregados e, quando são, ocupam atividades de base e de subserviência na estrutura produtiva.

Dados do Dieese comprovam que em 6 regiões metropolitanas e no DFpessoas negras são maioria sendo faxineiros, serventes, lixeiros camareiros e empregados domésticos. Apenas. Em outras atividades de execução, podem até ser maioria em algumas localidades, mas a diferença não é expressiva. Já nos cargos de “Direção e Planejamento”, negros são minoria, podendo a diferença chegar a quase 15% em relação aos não negros. Isso é mais um dos exemplos explícitos de racismo institucional — a sociedade coloca barreiras para que pessoas negras não alcancem e ocupem certos lugares.

E não para por aí.

Serviço de preto não vale nada.

Além sofrerem com o desemprego e com a dificuldade de acessar postos de trabalho de “Direção e Planejamento”, pessoas negras recebem apenas 63,8% das horas trabalhadas por um branco, independente da escolaridade. É. Isso mesmo: negros recebem bem menos, mesmo quando possuem o mesmo nível instrucional que brancos.

A questão é puramente racial. Imagine que uma pessoa negra e uma branca tenham o mesmo nível de escolaridade e ocupem cargos semelhantes — nada mais justo que sejam remuneradas de forma similar, certo? Não é isso que acontece, o negro vai receber menos. Se a pessoa for mulher negra e a outra um homem branco, a discrepância é ainda maior, pois soma-se o preconceito racial ao de gênero. Veja bem, os indivíduos têm a mesma “capacidade” e mesmo assim há diferenças de tratamento. Isso porque a distinção é externa. A discriminação acontece no âmbito das oportunidades dadas a pessoa,variando de acordo com a sua etnia. A partir disso tudo, a não ser que você seja daqueles racistas que não querem admitir, não dá pra deixar de perceber o quanto o mercado de trabalho brasileiro é racista.

Aproveito o parágrafo acima para falar de um conceito que tem surgido muito em conversas por aí, o da meritocracia. Isso não existe.Como falar em mérito se, de acordo com a cor da pele, a sociedade coloca impeditivos para pessoas conseguirem um emprego, atingirem cargos de direção e receberem salários similares dos brancos que ocupam funções parecidas? Quer dizer que foi mérito seu não nascer preto e, assim, ter mais oportunidades que eu? Devo te parabenizar por isso?

No setor público, a história não é diferente. Até saiu uma pesquisa dizendo que pessoas negras são maioria nos cargos públicos dos estados e municípios — o que não deixa de ser verdade dada a amostragem do estudo. A pesquisa considerou como servidor todo aquele que presta direta e indiretamente serviços à Administração Pública, isto é, concursados, terceirizados, cargos em comissão etc. Adivinhem em quais cargos pessoas negras estão para serem maioria? Estamos limpando chão, servindo café, fazendo a segurança, apertando botões de elevador e dirigindo carros. E uma minoria crescente de acordo com a proximidade do cargo com os dos de “Direção e Planejamento”. Quanto mais alto o cargo, menor a chance de encontrar um preto ocupando-o.

Duvida? Faça uma pesquisa e me diga cinco nomes de Ministros do poder executivo que foram/são negros (não vale Gilberto Gil e os que já passaram pela SEPPIR).

Qualquer semelhança com o setor privado não é mera coincidência. Mas sim um reflexo de quem domina o país seja na contratação de pessoal ou na regulamentação do mercado de trabalho — ambos têm culpa porque ambos excluem.

E ainda tem juíz-guru-de-concursos publicando por aí que acha um exagero cotas para negros nos cargos públicos. Cotas é assunto para outro texto, mas já adianto: exagero é outra coisa. Exagero é a configuração racista do mercado de trabalho brasileiro público e privado. Exagero é não conseguir emprego por causa da cor da pele. Exagero é modelo negra ter que protestar para conseguir desfilar no Fashion Week. Exagero é a pessoa não ascender profissionalmente por conta da sua negritude. Exagero é não receber o mesmo valor que o cara branco recebe por desempenhar a mesma atividade que eu, sendo que nossa escolaridade é a mesma. Exagero é você dizer que a política que vai contribuir para mudar essa realidade é um exagero.

Exagero também é a expressão racista “serviço de preto” ser usada. E, não bastasse isso, ter ganhado força e produzido efeitos concretos. Esse passar dos limites ninguém quer ver. Muito menos, apontar como exagero.


Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no https://medium.com/@higorfaria

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