Por Dennis de Oliveira
Ontem, dia 14 de maio, no auditório da Livraria da Vila em São Paulo, realizou-se um debate sobre os 126 anos da abolição inconclusa, parte do projeto “Sentir-Pensar-Agir”. O evento foi promovido pelo Coletivo Quilombação (organização negra da qual este colunista faz parte), Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) e Livraria da Vila. Participaram, além de mim, o prof. Kabengele Munanga (FFLCH/USP) e o historiador Edson França (presidente nacional da Unegro).
Houve consenso na discussão sobre o caráter inconcluso da abolição de 13 de maio de 1888. A forma como foi feita a abolição no Brasil foi aprofundada por vários estudiosos, entre eles o sociólogo Clóvis Moura, que aponta que houve uma transição, sem rupturas profundas, do sistema de trabalho escravista para o assalariado. Na obra Globalização e racismo no Brasil que escrevi em 2000, aponto que negros e negras brasileiros tiveram duas fases no Brasil: a escravização e a exclusão – e, dentro do período da exclusão, dois formatos: a criminalização do negro e negra e a segregação em determinados espaços.
Esta configuração societária não decorre de um problema comportamental ou de índole dos “brancos” brasileiros (embora isto possa ocorrer), mas é produto de um projeto de poder e de modelo de acumulação de riquezas. Clóvis Moura fala da transição do escravismo para o capitalismo dependente, em que a subordinação à divisão internacional do trabalho (o Brasil como exportador de produtos primários em certo período e, no período da industrialização, como sede subordinada de plantas das indústrias transnacionais). Para tanto, o modelo capitalista oriundo deste processo é concentrador de poder, de riqueza e de propriedade. O Estado que emerge disto tem na violência a sua prática política essencial (e não episódica) e as relações das classes dominantes com o poder de Estado são de caráter autocrático (apropriação privada das instituições públicas). É por isto que a democracia burguesa brasileira é instável, frágil e limitada e ainda permeada por diversos períodos de interrupção da ordem institucional por meio de golpes de Estado.
A atual conjuntura traz várias novidades para se pensar as estratégias de enfrentamento do racismo no Brasil. A primeira delas é o fato de passarmos pelo período mais longevo de democracia institucional, o que vem consolidando em parcelas gerações mais jovens uma ambiência de participação institucional, como eleições, plebiscitos, debates políticos, entre outros. A segunda que os governos Lula/Dilma implantaram, nos últimos doze anos, um modelo político-econômico baseado em uma aliança policlassista a partir da crise do modelo neoliberal no final dos anos 1990. Porém, este modelo conceituado pelo cientista político Armando Boito de “neodesenvolvimentismo” (clique aqui para ler) vai muito mais à perspectiva de se buscar um reposicionamento negociado da economia nacional no cenário mundial do que uma ruptura com a ordem global. E a terceira é que por conta de que este projeto do governo Lula/Dilma, embora aponte para uma mudança de rumos, acontecer ainda em uma perspectiva negociada, de transição, dentro de uma aliança policlassista de sustentação, não houve uma mudança substantiva nas dimensões institucionais do aparelho de Estado.
O que ocorre é que vivemos em um momento em que o aparelho de Estado, enquanto instituição, continua com a mesma configuração de opressão racista. Por isto que o racismo institucional aparece com mais visibilidade nos últimos tempos. Conquistas institucionais importantes do movimento negro, como a Lei 10639/03, o Estatuto da Igualdade Racial e a criminalização do racismo, não são aplicadas porque os aparelhos institucionais responsáveis para isto ainda estão organizados de forma a não atender tais demandas. Por exemplo, o Poder Judiciário, a quem caberia julgar os crimes de racismo ainda é formatado de forma elitista, burocrática e que favorece as pessoas das classes dominantes.
A professora Marilena Chauí fala que ao analisar uma sociedade, três dimensões são importantes a serem consideradas: as relações de classe, a propriedade e a ordem patrimonial e a dimensão institucional. O racismo é uma construção ideológica que tem um objetivo material concreto: possibilitar a concentração de riquezas e de patrimônio por meio da superexploração de classe, daí a necessidade de se disseminar a ideologia da inferioridade do afrodescendente. A manutenção do Brasil dentro da lógica da divisão internacional do trabalho – mantida, ainda que sob outras perspectivas, pelo atual governo – exige que tais relações de superexploração sejam mantidas. Daí então que as instituições de Estado permaneçam com a mesma lógica, ainda que se aprovem medidas legais de combate ao racismo. É esta a contradição que o movimento negro enfrenta atualmente. E aí começam os debates sobre como enfrentar isto.
No debate realizado no dia 15, Edson França falou da proposta do “voto étnico”. Segundo ele, é preciso aumentar a presença de negros e negras nos espaços de decisão institucionais, via o voto, para que as demandas do movimento negro sejam mais levadas em consideração. Os dados apresentados são elucidadores: a presença de negros e negras nos parlamentos, no Executivo e no Judiciário são ínfimas, mesmo em um governo de esquerda. A questão que coloco aqui para se refletir é a seguinte: é suficiente o voto étnico para enfrentar esta contradição? Acredito que não.
Primeiro porque não se pode confundir a dimensão institucional do governo com o Estado. Gramsci fala na “sociedade política” (Estado stricto-sensu) e “sociedade civil” (Estado ampliado). Falar em ocupar o poder significa atuar em ambas as esferas. Vou mais além: a atual forma de organização e reprodução do capital, via as redes globais de produção, faz com que o poder de fogo dos governos dos países da periferia do capitalismo se reduzam drasticamente. Mais que isto, sejam constantemente constrangidos por um poder global de facto formado pelo monopólio do capital (com hegemonia do capital financeiro), da mídia e da indústria de armamentos. Abordo esta questão do poder global em outro texto que pode ser acessado aqui. Louis Althusser define Estado como a instituição repressora e os aparelhos ideológicos. Assim, as dificuldades de implantação das políticas públicas de combate ao racismo não podem ser creditadas apenas e tão somente a maior ou menor presença de negros e negras nos espaços institucionais, mas a atuação cotidiana do poder ideológico do racismo via mídia, instituições religiosas, escola, entre outros. O caso da lei 10639/03, por exemplo, é emblemático: a maior resistência a aplicação desta lei se encontra no âmbito da intolerância religiosa praticada por organizações ditas neopentecostais, praticadas até mesmo por pessoas negras.
Segundo que a questão do racismo deve ser pensada na dimensão político-ideológica e não restrita a categoria “étnica” (até porque, por diversos fatores, esta categoria se apresenta de uma forma um tanto imprecisa). Se o racismo é uma construção ideológica que serve a determinado padrão de acumulação de riquezas e, consequentemente, estabelece uma dinâmica de relações sociais marcada pela opressão racial, a sua desconstrução passa, necessariamente, pela ruptura com o padrão de acumulação de riquezas vigente e pela alteração radical das dinâmicas das relações sociais. Ora, isto implica em um programa que tenha como pressupostos a democratização radical do Estado (ruptura com a atual ordem institucional), a redistribuição radical de riquezas (ruptura com o atual padrão de relações de classe) e reforma agrária e urbana radical (ruptura com a atual ordem patrimonial). Este é o horizonte político que deve ser buscado pelo movimento negro e, uma vez definido este campo, estabelecer as alianças táticas e estratégicas para a sua ação que não se restringe a cena eleitoral, mas a participação no conjunto de mobilizações do movimento social. Em outras palavras, contaminar a agenda política nacional de transformação com as suas demandas, não como reivindicações específicas de um segmento, mas como transformações estruturais necessárias para a mudança do país. Ou seja, sair do gueto e dialogar com todos os setores que lutam por mudança social.
Para finalizar, demonstrando que a mera afirmação do voto étnico e da ocupação dos espaços institucionais é insuficiente para combater o racismo, temos o exemplo da África do Sul. Depois de anos e anos de apartheid, a população negra foi às urnas e consagrou o CNA (Congresso Nacional Africano) como força hegemônica na África do Sul. Com isto, ocupou majoritariamente os espaços de poder institucional. Entretanto, isto não foi suficiente para que se superasse o enorme fosso social entre brancos e negros. Pior, contribuiu até para a formação de uma elite negra que, em determinados momentos, atua como elemento de repressão de movimentos sociais de trabalhadores negros (como foi o caso da greve dos mineiros, barbaramente reprimida pelo governo do CNA).
Fonte:Portal Fórum