Notas sobre amor, afeto e solidão do gay negro

Diariamente, após o café da manhã, costumo navegar pelo meu feed de notícias do facebook até desocuparem o chuveiro da casa. Com a repetição desse exercício acabei percebendo como as postagens sobre solidão tem se avolumado em número e apresentado certa frequência na comunidade virtual. Trata-se de uma solidão específica que é demonstrada em frases com fundo azul água-marinha – as vezes noutros, de outros tons, com motivos outonais dispostos aleatoriamente –, trata-se da solidão do gay negro.

Uma busca rápida dessas três palavras assim, sem muito floreio, no Google resulta num punhado de textos-desabafo, dentre os quais revisito “A solidão e falta de esperança do preto gay”, publicado aqui mesmo no Geledés em 2016. Douglas Ventura, seu autor, rememora experiências de desdesejo e questiona nossa tendência à espera pelo príncipe encantado – um homem branco e sarado que nos amará até o fim – fundamentando-se na construção do belo em nossa subjetividade sob os padrões da branquitude.

As discussões acerca disso me fazem resgatar na memória algumas experiências, em sua maioria pseudo affairs com garotos brancos, minhas e de amigos durante o ensino médio. A presença do homem branco era uma constante e materializava a nossa necessidade de tê-los para além dos modelos também brancos nas capas dos nossos cadernos – modelos com os quais costumávamos idealizar romances.

Muitas daquelas experiências não saíram do plano ideal e as poucas que o fizeram não terminaram bem. O que ambos os casos têm em comum é o fato de que aquele incômodo inicial do sentimento não correspondido obteve espaço e pôde tomar proporções cada vez maiores, alimentado por informações midiáticas e culturais aliadas a uma base educacional precária acerca das construções identitárias e da estrutura social, tornando-se uma compreensão problemática da “incapacidade” de conseguir engatar romances. Quantos de nós, jovens gays negros, não nos consideramos como a razão dessa “incapacidade” ao menos uma vez na vida? Quantos de nós não odiamos nossos traços, nossos narizes largos, cabelos e pele negros a partir do momento em que percebemos “inúteis” os esforços para chamar atenção dos garotos pelos quais nos sentimos atraídos? Quantos de nós não odiamos o fato de sermos diferente a partir do momento em que nos percebemos emocionalmente castrados por batalhas silenciosas travadas em seio católico, evangélico, adventista ou protestante e, passado tempo suficiente para uma compreensão mínima, odiamos que esses aspectos nos obrigassem a permanecer tristes, em silêncio, sozinhos?

Adultos, superados (ou não) os traumas específicos da adolescência, por vezes passamos tempo demais tentando estabelecer relacionamentos sérios até simplesmente nos limitarmos a permanecer sozinhos. Em outros casos, quando firmado o envolvimento, acabamos submetidos a homens que simplesmente não conseguem ou não estão dispostos a lidar com a dimensão sentimental da nossa existência. Nas duas situações a decisão de nos submetermos tem um quê de compulsória; nas duas situações tendemos a psicologizar as expressões da questão racial e, portanto, da questão social: na primeira nos interpretamos como sujeitos solitários e na segunda como frustrados e sozinhos, ainda que acompanhados, quando o companheiro em questão ocupa um lugar bem mais confortável do que o nosso – seja ele branco ou negro, sim, devido aos padrões de normatividade.

Significa dizer que nós acabamos nos permitindo assumir os tais dos papéis do gay negro. Somos castrados no que tange aos aspectos afetivos, fadados ao sentimento de solidão; ao mesmo tempo somos hiperssexualizados à exaustão, tornados objetos de fetiche, e por isso carregamos o peso de decepções que são do Outro – como quando as especulações sobre o desempenho sexual acabam por afetar nossa autoestima, por exemplo. Obscenas musas, involuntariamente ou não, inspiramos ainda gozadas de “grandes homens” casados muito mal resolvidos. O que nos falta para a superação desses papéis?

O amor próprio, exercício diário, ato político necessário e constante, é o primeiro passo na direção da construção de relações afetivas consistentes, principalmente quando se é gay negro e afeminado. Falo do instante no qual nos percebemos sozinhos mesmo quando acompanhados, se por homens que não nos desejam seres sencientes. Solidão. Do instante em que nos queremos, desejamos e masturbamos – caro momento de autoconhecimento e contemplação aqui negativamente ressignificado – ao da transa com alguém incapaz de corresponder em inteireza nossos sentimentos nós experimentamos a ideia de que talvez não tenhamos nascido para ser amados pelo Outro.

Um caminho doloroso, sem dúvida, é esse que nos leva à compreensão de que nossa solidão é histórica e socialmente determinada. Significa entender que o amor pelo Outro, sentimento que nos tem sido negado desde nossos antepassados, é necessariamente um envolvimento que porta dimensão política.

Tornar-se negro, para lembrar o título do livro de Neusa Santos Souza, é descolonizar-se e, portanto, é também aprender a amar nossos ancestrais, nossa história, a nós mesmos e aos laços que nos unem enquanto gays negros e afeminados e enquanto pessoas negras. É ir contra aquilo que internalizamos como parte constituinte de nossas personas, contra o que trouxemos conosco ao longo de uma vida; é compreender que não é justo permanecer numa relação que sabemos ser a causa da nossa tristeza apenas devido ao apego ou a necessidade de não estar só.

Nesse sentido, penso que temos muito a aprender sobre o amor com as feministas negras. Gosto bastante daquela frase bem conhecida de Audre Lorde sobre como ela não se sentiria livre enquanto houvesse uma mulher que não o fosse, mesmo que em diferentes circunstâncias. Isso é incrível porque nos permite uma conexão sincera com o outro e, trazido a nós, permite compreender que não encaminhamos nossas próprias demandas de gays negros de modo justo se nos relacionamos com homens casados sem nos percebermos também como sujeitos da opressão que incide sobre suas esposas, muitas vezes mulheres com as quais partilhamos uma história de cor. A serviço de que projeto de sociedade está a nossa afetividade?

***

Quantos de nós ainda terão de adoecer enclausurados em relações nas quais as imposições de uma subjetividade engendrada pela mercantilização dos corpos é um desafio diário? Quantos de nós ainda serão violentados simbólica e fisicamente nas relações que se constroem com base nessa subjetividade fortalecida pela mídia oportunista e pela cultura machista por medo de permanecer sozinhos?

Ao fazer tais considerações não consigo evitar que o pensamento se volte às contribuições que uma política de educação diferenciada poderia ter operado na vida de meus/minhas irmãos/irmãs e mesmo na minha: numa escola na qual o quadro de professores era majoritariamente composto de pessoas brancas, o contato com a história e a cultura do povo negro não foi além do que o que era vagamente tratado nos livros didáticos. Se tivermos acesso a uma educação que propicie a construção de percepções identitárias que nos aproximem de nós mesmos, enquanto pessoas negras e homossexuais, que seja firmemente pautada por questões étnicas e raciais, de gênero e cultura, já estaremos dando um grande passo para superar a solidão e compreender o amor p’além do amor romântico, pr’além do “consumir o homem branco, ter o homem branco, ser o homem branco”.

Se tivermos esse acesso vamos poder afirmar consistentemente que vivemos em tempos de afirmação e representatividade. Até lá, continuemos usamos nossos cabelos crespos soltos ou envoltos em belíssimos turbantes, pintando olhos e lábios em cores gritantes, usando látex e unhas postiças ou simplesmente dançado com saias de estampa florida.

Nossos reflexos nos espelhos da moderna casa-grande devem se tornar convites para bons (e demorados) momentos de contemplação da nossa própria beleza – um gesto de amor – até conseguirmos colocar a casa abaixo. Continuemos nos reconhecendo enquanto gays negros em meio às vivências na periferia e academia, à tímida expansão da nossa presença na cultura popular brasileira. Continuemos nos amando, nós que já o conseguimos, mas também disseminando esse amor para aqueles que ainda não o fizeram. Temos muito trabalho pela frente.

 


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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