‘O anti-woke é nova máscara para o racismo’, diz presidente da Fundação Ford

Primeiro negro e gay à frente da gigante filantrópica global, Darren Walker diz que Brasil é 'um farol' para o mundo

Wokismo ou simplesmente woke –que quer dizer literalmente “acordei”, em inglês– é uma gíria que surgiu nos EUA a partir da comunidade afro-americana para designar uma espécie de despertar para a questão das injustiças raciais no país.

Resgatado pelo movimento Black Lives Matter na última década, o termo ganhou a amplitude de outras discriminações e desigualdades que estão na pauta do novo progressismo.

Ao mesmo tempo, a expressão passou a ser tratada, pejorativamente, como sinônimo de politicamente correto ou a cultura do cancelamento, numa guerra cultural que provocou a chamada onda anti-woke. Nela surfam medidas contra educação sobre gênero e diversidade nas escolas e restrições ao debate sobre racismo e sexualidade em universidades norte-americanas que aumentaram as tensões no debate sobre inclusão.

“Algumas pessoas são contra uma sociedade mais inclusiva e usam a onda anti-woke como uma forma de mascarar seu racismo, sua misoginia e sua homofobia”, dispara o presidente da Fundação Ford, Darren Walker, em entrevista à Folha.

“Isso é lamentável, mas é uma realidade. Ainda assim, acho que a maioria das pessoas está interessada em uma sociedade mais inclusiva e justa, e não podemos retroceder desse compromisso”, completa ele, que vê sinais do mesmo movimento em terras brasileiras.

Walker é o primeiro presidente negro e gay da fundação inaugurada em 1936 por Edsel Ford, filho único do homem que ergueu a gigante automobilística batizada com o sobrenome da família. Criada com US$ 25 mil destinados “ao bem-estar de todos”, a Fundação Ford se tornou uma das maiores organizações filantrópicas do planeta, e tem histórico de financiamento de programas dedicados à redução da pobreza e das desigualdades e de defesa da democracia.

Hoje, Walker administra uma fundação de US$ 16 bilhões e diz que o Brasil tem um lugar central nos investimentos internacionais da organização.

Formado em escolas públicas dos EUA e beneficiário de políticas educacionais de ação afirmativa, o advogado criticou publicamente a decisão da Suprema Corte dos EUA de vetar o uso de raça como critério para cotas nas universidades do país.

Em visita ao Brasil no mês passado para o aniversário de 60 anos do escritório da fundação no país, Walker encontrou com grupos de direitos humanos, ativistas digitais, lideranças indígenas, do movimento negro e quilombolas –a fundação é parceira da Folha no projeto Quilombos do Brasil. Ele esteve ainda com as ministras Sônia Guajajara (Povos Indígenas), Anielle Franco (Igualdade Racial) e com o secretário executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli.

“O Brasil é um farol e tem uma presença crescente de afro-brasileiros no palco global. Grande parte do mundo está observando o Brasil e como ele lida com a complexidade de sua história e com suas ambições para o futuro”, avalia.

Você foi o primeiro afro-americano gay a presidir a Fundação Ford. Como você percebe o racismo no Brasil em relação aos EUA? E a questão dos direitos das pessoas LGBTQIA+? Brasil e Estados Unidos negaram a sua história racial porque ela incomoda algumas pessoas e não se encaixa nas narrativas sobre quem somos como povo, seja o povo brasileiro ou o americano. Os brancos brasileiros e os brancos norte-americanos têm uma visão mítica de nossas histórias. Elas são complexas, ricas e complicadas. Há coisas para se orgulhar na história brasileira e na história americana, e há coisas vergonhosas que aconteceram também. Acho que o Brasil tem sido desafiado por essa noção de uma democracia racial, que é única, e que, de certa forma, tornou mais difícil para o país reconciliar história e realidade.

Em relação à comunidade LGBTQIA+, não há dúvida de que houve progresso em ambos os países, mas, neste momento, há esforços aqui e lá para minar a inclusão de pessoas LGBT. Precisamos ficar vigilantes, porque não podemos ter uma democracia plena e simultaneamente excluir milhões de pessoas de viver com dignidade. E, com isso, eu me refiro a questões do casamento LGBT, família LGBT, ter filhos LGBT, etc. Pessoas LGBT sendo capazes de ensinar nas escolas e de serem participantes plenos na sociedade, sem vivermos à margem como fizemos no passado.

Você foi um beneficiário de políticas de cotas nos EUA. Como você avalia a decisão da Suprema Corte dos EUA de rejeitá-las? O que tem sido feito para reverter isso? A decisão da Suprema Corte dos EUA foi muito decepcionante para aqueles que acreditam na justiça racial. O tribunal lamentavelmente rejeitou a ideia de que o Estado tem a obrigação de reparar a discriminação histórica e o racismo. Acho importante que as organizações continuem a apoiar esforços para inclusão e esforços para alcançar equidade. Mas não há dúvida de que, neste momento nos EUA, essa decisão lançou uma sombra sobre nossas aspirações de inclusão racial plena.

Qual é o papel que os programas de ação afirmativa, como cotas raciais, podem desempenhar no Brasil? Eles fortalecem a democracia e ajudam organizações, empresas e governo a serem melhores, porque são mais propensos a serem responsivos a todas as facetas da vida brasileira. Se você é uma empresa e tem executivos mais diversos, é mais provável que seja uma empresa eficaz em um mercado consumidor multirracial, por exemplo.

Os EUA estão passando por uma onda anti-woke. Como você a interpreta? Vê sinais do mesmo processo no Brasil? Aqueles nos EUA que estão promovendo essa ideia de anti-woke, de certa forma, encontraram uma maneira de legitimamente expressar ideias racistas. Porque o anti-woke é uma máscara para o racismo e para os esforços de neutralizar narrativas que deixam algumas pessoas desconfortáveis com nossa história e com a própria ideia de igualdade. Para alguns, promover, proteger e preservar as hierarquias históricas de patriarcado e branquitude são uma prioridade. E acho que, é claro, no Brasil, há alguns que buscam promover o status quo da mesma forma, o que é profundamente lamentável.

É muito evidente para você em sua visita ao Brasil como essas hierarquias estão presentes na sociedade brasileira? No Brasil e nos EUA, os negros foram historicamente marginalizados. Nos Estados Unidos, houve um tempo em que era ilegal para uma pessoa negra ser alfabetizada. Era ilegal para uma pessoa branca ensinar uma pessoa negra a ler. O legado disso continua, e há sobrerrepresentação de negros em empregos de baixa remuneração. O Brasil, a última nação do hemisfério a abolir a escravidão, tem em si o resíduo dessa realidade. Eu estava em um restaurante em São Paulo e não havia pessoas negras, além daquelas que trabalhavam ali. Então, precisamos pensar em como gerar uma nova geração de negros brasileiros economicamente empoderados e socialmente móveis. Parte disso tem a ver com a linguagem. Sabemos que, no Brasil, se você é bilíngue, se fala inglês, é mais provável que tenha mobilidade social e econômica. E, no entanto, o sistema educacional historicamente não possibilitou a educação bilíngue para os negros brasileiros.

Você acha que pode faltar aos brasileiros privilegiados o reconhecimento desse lugar de privilégio? Não há dúvida de que o privilégio, seja na América, no Brasil ou na Europa, é confortável e todos gostamos de nossos confortos, que requerem sistemas e estruturas que os produzem. Reconhecer isso é uma tarefa difícil para um indivíduo, porque significa que você pode ter que abrir mão de algo. Trabalhamos duro para conquistar esses privilégios. Então, por que deveríamos abrir mão deles? Bem, eu argumento que deveríamos abrir mão deles, que não devemos acumular todo o privilégio, porque isso gerará raiva e ressentimento nas massas e, no final das contas, prejudicará toda a sociedade e, portanto, nos prejudicará. A história nos mostra isso.

Existe um caminho para abrir mão de partes dos privilégios em prol de uma sociedade mais igualitária? Acho que a filantropia é um caminho. Não apenas dar para amenizar, colocar um curativo no problema, mas entender a causa raiz e trabalhar nessas causas raízes por meio da filantropia.

De acordo com o Índice Mundial de Doação, o Brasil saltou da posição 54 para se tornar um dos 20 países com mais filantropia. Existe uma cultura filantrópica em crescimento no Brasil? Sim, existe. Antes da Covid, eu participei de uma conferência em uma sala cheia de filantropos brasileiros e fiquei impressionado porque eles estão aumentando. Uma das razões pelas quais a filantropia cresceu tanto nos Estados Unidos é porque temos um incentivo fiscal para doar. O Brasil não tem isso. E, ainda assim, estou muito encorajado pelo que tenho visto no Brasil agora. Ainda é um movimento pequeno, incipiente e emergente para um país do seu tamanho. Espero que, assim como nos Estados Unidos, o setor filantrópico amadureça e cresça e tenha brasileiros ricos que estejam comprometidos com a justiça e os direitos humanos e que reconheçam que eles são privilegiados e que não se trata apenas de se sentir bem. Filantropia não é para se sentir bem, às vezes é sobre se sentir desconfortável com o próprio sistema que criou sua riqueza e privilégio.

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