Menos de duas décadas após a Abolição, a cidade mineira de Pouso Alegre já contava com uma elite negra que se preocupava em educar a população de cor, militava na imprensa, na música e no esporte, além de confrontar o preconceito racial em arenas tão diversas quanto os torneios de futebol e o movimento operário. Essa é a história que conta a dissertação de mestrado “Escritos da Liberdade: trajetórias, sociabilidade e instrução no pós-abolição sul-mineiro (1888-1930)”, defendida por Jonatas Roque Ribeiro, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Texto Carlos Orsi, na UNICAMP
O principal foco da tese é a atividade do Clube 28 de Setembro, fundado por homens e mulheres negros em Pouso Alegre em 1904 e que se manteve ativo até 1984, com destaque para a vida e a atuação social de três figuras emblemáticas dessa associação, Isidoro da Silva Cobra (1880-1960), Mirabeau Joaquim Ludovico (1886-1982) e Casemiro Luiz de Abreu (1888-1973). A cidade de Pouso Alegre, lembra o pesquisador, já se destacava como importante centro populacional e econômico desde meados do século 19, e manteve essa condição mesmo em meio às transformações da transição para o século 20.
A dissertação de Ribeiro aponta a preocupação dos três personagens escolhidos em “educar, instruir e elevar a condição cultural, social e econômica dos demais integrantes do clube, como os projetos que visavam moralizar e normatizar os modos e comportamentos dos associados e as escolas de alfabetização que a agremiação criou em seu interior”, mas o autor nega que esse esforço de “elevar” a distinção social e cultural dos negros num meio dominado por brancos representasse, por tabela, também um esforço de “branqueamento”.
“As ideologias do ‘branqueamento’ pressupunham muito mais a defesa de práticas e políticas de exclusão, ou assimilação marginal, daqueles considerados atrasados, incultos, despreparados, para a nova sociedade que nascera, do que a cópia ou imitação do que era consumido e valorizado pela sociedade de então”, disse o pesquisador. “Isidoro e Casemiro, como qualquer outro sujeito integrante do Clube 28 de Setembro, estavam mais interessados em consumir aquilo que a ‘modernidade’ e ‘urbanidade’ em voga lhes proporcionavam – educação, regras de etiqueta e civilidade, valores e normas morais e sociais –, do que imitar, acatar ou competir com outros sujeitos ou grupos sociais”, afirmou.
“É importante ter em conta que as práticas e valores defendidos e utilizados pelos integrantes do Clube 28 de Setembro não eram privilégios dos grupos brancos e elitizados. Pelo contrário, eram valores disseminados por toda a sociedade, portanto, todos deveriam praticá-los e valorizá-los”, aponta. “Contudo, nem todos podiam acessá-los, pois, para ser educado, ter boas maneiras e bons modos, era necessário ter instrução, educação e outros requisitos. Isto, por sua vez, impedia o acesso das camadas mais pobres a tais valores e normas, o que acabou tornando essas práticas sociais acessíveis apenas para uma pequena parcela da população”.
Isidoro da Silva Cobra, na década de 1940, à esq.e Casemiro Luiz de Abreu, anos 1930
Homens de cor
Os três fios condutores escolhidos por Ribeiro para pôr em perspectiva a história e a atuação do clube encontraram diferentes estratégias para buscar reconhecimento na sociedade brasileira do pós-abolição. Isidoro da Silva Cobra nasceu livre, foi criado por uma família e rica e teve acesso a boa educação, casando-se cedo. Mas desempenhou funções profissionais “consideradas de menos prestígio e, por isso, desvalorizadas socialmente”, segundo aponta a dissertação, como jardineiro e oleiro. Chegou a administrador de fazenda, estudou culinária e música. Foi como músico que acabou se firmando na sociedade pousoalegrense, tendo estabelecido bandas como a Jazz Rio Branco. Cobra via o samba com desagrado. A dissertação cita um texto de sua autoria a respeito: “Por que, então, nós devemos cultivar o samba, em detrimento das outras modalidades musicais? Há pessoas que se recusam a ouvir valsa, trechos de óperas, etc. Outras preferem um sambinha puxado à cuíca a música clássica. Dirão: é gosto e gosto não se discute. Eu direi: é falta de educação musical”.
Cobra também manteve um diário, entre 1930 e 1931, no qual registou um episódio que pôs em evidência a distinção social entre os “pretos”, como eram chamados os negros pobres, marginalizados e pouco educados, e os “homens de cor”. Descrita na dissertação, a passagem relata o momento em que um barbeiro expulsa de seu estabelecimento um negro andrajoso. Cobra, que estava na barbearia, pergunta o motivo. “A clientela branca não gosta de pretos na barbearia”, foi a resposta. “Perguntei-lhe: e eu?”, registra o diário, e prossegue apontando que o barbeiro “disse que sou diferente; que sou um preto respeitado; que tenho família, instrução, trabalho e ando bem, não sou um vagabundo.”
“Isidoro esclarece que, para o grupo negro ao qual ele pertencia, havia diferenças entre os ‘pretos’ e os ‘homens de cor’ e que para o engrandecimento da raça e o fim dos preconceitos e exclusões, todos os ‘pretos’ deveriam metamorfosear-se em ‘homens de cor’”, aponta a dissertação.
Mirabeau Joaquim Ludovico e sua família nos anos 1930
Culto e instruído
O segundo personagem, Mirabeau Joaquim Ludovico, foi criado pela família de um juiz de Direito da cidade de Araxá (MG), e acabou se tornando o “faz tudo” do Palácio Episcopal de Pouso Alegre. Um jornal religioso local, citado na dissertação, refere-se assim a ele: “Prestamos sinceras homenagens ao ‘servo bom e fiel’, o nosso querido amigo Mirabeau. Por espaço de 53 anos vem prestando sua generosa e múltipla colaboração aos interesses materiais do Bispado. Copeiro, cocheiro, encarregado da limpeza do Palácio, jardineiro, recadeiro, motorista, ajudante de Missa, auxiliar nas visitas pastorais: o Mirabeau realiza com perfeição tudo que se lhe confia. Sério nas horas sérias, brincalhão nas horas festivas, é sempre o bom amigo, correto, honesto, pontual, alegre e animado de boa vontade. Nas horas vagas exerce a função de Presidente do 28 e tem feito discursos que têm impressionado o auditório”.
A terceira figura destacada no trabalho de Ribeiro é Casemiro Luiz de Abreu. Diferentemente de Cobra e Ludovico, cujas trajetórias foram reconstituídas a partir de cartas, alguns documentos – no caso de Cobra, um breve diário – e menções na imprensa ou em obras de terceiros, Abreu deixou um diário mais completo, no qual também esboçava textos que depois viriam a ser publicados na imprensa local, marcando uma atuação como jornalista. Dos três, também foi o que teve um perfil mais elitizado, tendo trabalhado como delegado de polícia no município mineiro de Borda da Mata, antes de se estabelecer como alfaiate em Pouso Alegre.
Ao comentar uma detalhada nota autobiográfica encontrada no diário de Abreu, Ribeiro oferece a seguinte interpretação: “Casemiro constrói a sua imagem, ou seja, como ele se via e queria ser visto pelos outros. Pela narrativa, ele se colocou como um homem educado e instruído, pois havia estudado em bons colégios; era um sujeito financeiramente remediado, uma vez que, além de ser um comerciante autônomo, o seu estabelecimento se localizava num dos principais pontos comerciais da cidade (…) também arrogava possuir uma família estruturada e fazia parte de um clube recreativo respeitado na cidade. Construindo a imagem de um homem negro culto, instruído, trabalhador, comerciante bem sucedido, pai de família e integrante de uma agremiação respeitável, Casemiro pretendia construir ou reforçar sua posição social dentro da comunidade pousoalegrense”.
Racismo
“A fronteira que separava os ‘homens de cor’ dos ‘pretos’ – ao menos para o período e local estudados – foi, basicamente, a experiência da escolarização, instrução ou letramento experimentada por muitos homens e mulheres negros”, aponta Ribeiro. “Todos os três sujeitos investigados tiveram acesso à escola, valorizando e disseminando a educação e o letramento como meio profícuo de ascensão e elevação social”.
Numa época em que as taxas de analfabetismo eram altíssimas e que a noção de cultura e civilidade estava atrelada à ideia de erudição e educação formal, quem era alfabetizado conquistava destaque e distinção social, aponta o pesquisador. “Isidoro, Mirabeau, Casemiro e, de modo igual, todos os demais membros do Clube, investiram pesado na educação, tanto individualmente, como coletivamente”. Para eles, disse Ribeiro, “esse seria um modo seguro e vantajoso de lutar por melhores condições de vida, conseguir boas colocações no mercado de trabalho, lutar por direitos e por cidadania efetiva, além de ser uma arma potente contra o racismo e o preconceito de cor”.
O autor nega, no entanto, que a existência de uma elite negra atuante poucos anos após a Abolição, e da diferença de tratamento dada aos “homens de cor” em relação aos “pretos”, seja um ponto a favor do argumento de que o preconceito racial, no Brasil, é na verdade uma forma de preconceito de classe.
“O preconceito de cor é uma realidade na sociedade brasileira, tanto hoje, como antes”, disse. “O fato de haver homens e mulheres negros ocupando espaços e profissões de destaque social, na maioria das vezes ocupadas unicamente por pessoas brancas, não significa uma eliminação do racismo ou uma inversão do preconceito”.
As trajetórias dos membros do Clube 28 de Setembro, apontou o autor, demonstram que aqueles homens e mulheres lutaram para serem reconhecidos por aquilo que faziam, defendiam e valorizavam.
“Ou seja, queriam ser reconhecidos como trabalhadores, sujeitos educados e instruídos, capazes de formar famílias estáveis e exercer profissões valorizadas socialmente. Se tivessem de ser ‘qualificados’ que fossem por essas características e não pela cor da sua pele. Os casos de racismo documentados na dissertação demonstram que essa tarefa foi árdua, contínua e nem sempre vitoriosa, pois, apesar de todos os bons atributos de ‘cidadãos de cor’, o racismo ainda teimou em ceifar as oportunidades e a autoestima daqueles sujeitos”.
Publicação
Dissertação: “Escritos da Liberdade: trajetórias, sociabilidade e instrução no pós-abolição sul-mineiro (1888-1930)”
Autor: Jonatas Roque Ribeiro
Orientadora: Lucilene Reginaldo
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Capes e Fapesp