Joaquim B. Barbosa Gomes[1]*
Nos últimos tempos, têm sido propostos, no Congresso Nacional, diversos projetos de lei visando à introdução, no Direito brasileiro, de algumas modalidades de «ação afirmativa». Esses projetos, apresentados por parlamentares das mais diversas tendências ideológicas[2], em geral buscam mitigar a flagrante desigualdade brasileira atacando-a naquilo que para muitos constitui a sua causa primordial, isto é, o nosso segregador sistema educacional, que tradicionalmente, por diversos mecanismos, sempre reservou aos negros e pobres em geral uma educação de inferior qualidade, dedicando o essencial dos recursos materiais, humanos e financeiros voltados à Educação de todos os brasileiros, a um pequeno contingente da população que detém a hegemonia política, econômica e social no País, isto é, a elite branca. Outros projetos, concebidos no louvável afã de tentar remediar os aspectos mais visíveis e politicamente incômodos da nossa triste iniquidade, tentam combater a desigualdade e a discriminação em setores específicos da atividade produtiva, instituindo cotas fixas para negros nesse ou naquele setor da vida sócioeconômica.
Esses projetos, como se sabe, visam a instituir «medidas compensatórias» destinadas a promover a implementação do princípio constitucional da igualdade em prol da comunidade negra brasileira. O tema é de transcendental importância para o Brasil e para o direito brasileiro, por dois motivos. Primeiro, por ter incidência direta sobre aquele que é seguramente o mais grave de todos os nossos problemas sociais (o qual, curiosamente, todos fingimos ignorar), o que está na raiz das nossas mazelas, do nosso gritante e envergonhador quadro social – ou seja, os diversos mecanismos pelos quais, ao longo da nossa história, a sociedade brasileira logrou proceder, através das mais variadas formas de discriminação, à exclusão e ao alijamento dos negros do processo produtivo conseqüente e da vida social digna. Em segundo lugar, por abordar um tema nobre de direito constitucional comparado[3] e de direito internacional, mas que é, curiosamente, negligenciado pelas letras jurídicas nacionais, especialmente no âmbito do Direito Constitucional.
Por outro lado, o tema entrou definitivamente na pauta das questões nacionais, a partir do momento em que o Governo federal, em posição corajosa assumida perante a comunidade internacional, não apenas reconheceu oficialmente a existência de discriminação contra negros no Brasil, mas prometeu instituir modalidade específica de ação afirmativa (as «cotas») visando a propiciar maior acesso de negros ao ensino superior.
Assim, neste despretensioso ensaio tentaremos examinar (ainda que sem a reflexão “de longue haleine” que o tema requer) a possibilidade jurídica de introdução, no nosso sistema jurídico, de mecanismos de integração social largamente adotados nos Estados Unidos sob a denominação de «affirmative action» (ação afirmativa) e na Europa, sob o nome de «discrimination positive» (discriminação positiva) e de “action positive” (“ação positiva”).
Trata-se, com efeito, de tema quase desconhecido[4] entre nós, tanto em sua concepção quanto nas suas múltiplas formas de implementação. Daí a necessidade, de nossa parte, de algumas considerações acerca da sua gênese, dos objetivos almejados, da problemática constitucional por ele suscitada, das modalidades de programas e dos critérios e condições indispensáveis à sua compatibilização com os princípios constitucionais.
1. Ação Afirmativa e Princípio da Igualdade
A noção de igualdade, como categoria jurídica de primeira grandeza, teve sua emergência como princípio jurídico incontornável nos documentos constitucionais promulgados imediatamente após as revoluções do final do século XVIII. Com efeito, foi a partir das experiências revolucionárias pioneiras dos EUA e da França que se edificou o conceito de igualdade perante a lei, uma construção jurídico-formal segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador fazê-la incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os conflitos interindividuais. Concebida para o fim específico de abolir os privilégios típicos do ancien régime e para dar cabo às distinções e discriminações baseadas na linhagem, no «rang», na rígida e imutável hierarquização social por classes («classement par ordre»), essa clássica concepção de igualdade jurídica, meramente formal, firmou-se como ideia chave do constitucionalismo que floresceu no século XIX e prosseguiu sua trajetória triunfante por boa parte do século XX. Por definição, conforme bem assinalado por Guilherme Machado Dray, «o princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas delimitadas, susceptíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa medida intoleráveis»[5]. Em suma, segundo esse conceito de igualdade que veio a dar sustentação jurídica ao Estado liberal burguês, a lei deve ser igual para todos, sem distinções de qualquer espécie.
Abstrata por natureza e levada a extremos por força do postulado da neutralidade estatal (uma outra noção cara ao ideário liberal), o princípio da igualdade perante a lei foi tido, durante muito tempo, como a garantia da concretização da liberdade. Para os pensadores e teóricos da escola liberal, bastaria a simples inclusão da igualdade no rol dos direitos fundamentais para se ter esta como efetivamente assegurada no sistema constitucional.
A experiência e os estudos de direito e política comparada, contudo, têm demonstrado que, tal como construída, à luz da cartilha liberal oitocentista, a igualdade jurídica não passa de mera ficção. «Paulatinamente, porém», sustenta o jurista português Guilherme Machado Dray, «a concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições». Imperiosa, portanto, seria a adoção de uma concepção substancial da igualdade, que levasse em conta em sua operacionalização não apenas certas condições fáticas e econômicas, mas também certos comportamentos inevitáveis da convivência humana, como é o caso da discriminação. Assim, assinala a ilustre Professora de Minas Gerais, Carmen Lucia Antunes Rocha, «concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo que garantir a igualdade jurídica».[6]
Como se vê, em lugar da concepção «estática» da igualdade extraída das revoluções francesa e americana, cuida-se nos dias atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção «dinâmica», «militante» de igualdade, na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade. Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material propugna redobrada atenção por parte do legislador e dos aplicadores do Direito à variedade das situações individuais e de grupo, de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas.
Da transição da ultrapassada noção de igualdade «estática» ou «formal» ao novo conceito de igualdade «substancial» surge a ideia de «igualdade de oportunidades», noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados na necessidade de se extinguir ou de pelo menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, conseqüentemente, de promover a justiça social.
Dessa nova visão resultou o surgimento, em diversos ordenamentos jurídicos nacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos[7], de políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos socialmente fragilizados. Vale dizer, da concepção liberal de igualdade que capta o ser humano em sua conformação abstrata, genérica, o Direito passa a percebê-lo e a tratá-lo em sua especificidade, como ser dotado de características singularizantes. No dizer de Flávia Piovesan, «do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo «especificado», considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc.»[8] O «indivíduo especificado», portanto, será o alvo dessas novas políticas sociais.
A essas políticas sociais, que nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material, dá-se a denominação de «ação afirmativa» ou, na terminologia do direito europeu, de «discriminação positiva» ou “ação positiva”.
A consagração normativa dessas políticas sociais representa, pois, um momento de ruptura na evolução do Estado moderno. Com efeito, como bem assinala a Professora Carmen Lúcia Antunes Rocha, «em nenhum Estado Democrático, até a década de 60, e em quase nenhum até esta última década do século XX se cuidou de promover a igualação e vencerem-se os preconceitos por comportamentos estatais e particulares obrigatórios pelos quais se superassem todas as formas de desigualação injusta. Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências físicas ou psíquicas, por idade etc. continuam em estado de desalento jurídico em grande parte do mundo. Inobstante a garantia constitucional da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual para todos, não são poucos os homens e mulheres que continuam sem ter acesso às iguais oportunidades mínimas de trabalho, de participação política, de cidadania criativa e comprometida, deixados que são à margem da convivência social, da experiência democrática na sociedade política». Assim, nessa nova postura o Estado abandona a sua tradicional posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo da convivência entre os homens e passa a atuar «ativamente na busca» da concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais.
O País pioneiro na adoção das políticas sociais denominadas «ações afirmativas» foram, como é sabido, os Estados Unidos da América. Tais políticas foram concebidas inicialmente como mecanismos tendentes a solucionar aquilo que um célebre autor escandinavo qualificou de «o dilema americano»: a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana. Posteriormente, elas foram estendidas às mulheres, a outras minorias étnicas e nacionais, aos índios e aos deficientes físicos.
As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade.(“Il semble clair que les discriminations positives invitent à penser l’égalité comme un objectif à atteindre en soi. Le simple constat que nos sociétés génèrent encore de nombreuses inégalités de traitement devrait dès lors inciter les pouvoirs publics comme les acteurs privés à adopter et à mettre en oeuvre des mesures susceptibles de crééer ou de mener à plus d’égalité”.)[9]
Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fato, de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, aptas a inculcar nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. Por outro lado, constituem, por assim dizer, a mais eloqüente manifestação da moderna idéia de Estado promovente, atuante, eis que de sua concepção, implantação e delimitação jurídica participam todos os órgãos estatais essenciais, aí se incluindo o Poder Judiciário, que ora se apresenta no seu tradicional papel de guardião da integridade do sistema jurídico como um todo e especialmente dos direitos fundamentais, ora como instituição formuladora de políticas tendentes a corrigir as distorções provocadas pela discriminação. Trata-se, em suma, de um mecanismo sócio-jurídico destinado a viabilizar primordialmente a harmonia e a paz social, que são seriamente perturbadas quando um grupo social expressivo se vê à margem do processo produtivo e dos benefícios do progresso, bem como a robustecer o próprio desenvolvimento econômico do país, na medida em que a universalização do acesso à educação e ao mercado de trabalho tem como conseqüência inexorável o crescimento macroeconômico, a ampliação generalizada dos negócios, numa palavra, o crescimento do país como um todo. Nesse sentido, não se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de nação que tenha se erguido de uma condição periférica à de potência econômica e política, digna de respeito na cena política internacional, mantendo no plano doméstico uma política de exclusão, aberta ou dissimulada, legal ou meramente informal, em relação a uma parcela expressiva de seu povo.
As ações afirmativas constituem, pois, um remédio de razoável eficácia para esses males. É indispensável, porém,uma ampla conscientização da própria sociedade e das lideranças políticas de maior expressão acerca da absoluta necessidade de se eliminar ou de se reduzir as desigualdades sociais que operam em detrimento das minorias, notadamente as minorias raciais.[10] E mais: é preciso uma ampla conscientização sobre o fato de que a marginalização sócio-econômico a que são relegadas as minorias, especialmente as raciais, resulta de um único fenômeno: a discriminação.
Com efeito, a discriminação, como um componente indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste-se inegavelmente de uma roupagem competitiva. Afinal, discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as perspectivas de uns em benefício de outros.[11] Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos esforços de uns em prol da concretização da igualdade se contraponham os interesses de outros na manutenção do status quo. É curial, pois, que as ações afirmativas, mecanismo jurídico concebido com vistas a quebrar essa dinâmica perversa, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo da parte daqueles que historicamente se beneficiaram da exclusão dos grupos socialmente fragilizados.
Ao Estado cabe, assim, a opção entre duas posturas distintas: manter-se firme na posição de neutralidade, e permitir a total subjugação dos grupos sociais desprovidos de voz, de força política, de meios de fazer valer os seus direitos; ou, ao contrário, atuar ativamente no sentido da mitigação das desigualdades sociais que, como é de todos sabido, têm como público alvo precisamente as minorias raciais, étnicas, sexuais e nacionais.
Com efeito, a sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de suas idéias-chave a noção de neutralidade estatal, que se expressa de diversas maneiras: neutralidade em matéria econômica, no domínio espiritual e na esfera íntima das pessoas. Na maioria das nações pluriétnicas e pluriconfessionais, o abstencionismo estatal se traduz na crença de que a mera introdução, nos respectivos textos constitucionais, de princípios e regras asseguradoras de uma igualdade formal perante a lei, seria suficiente para garantir a existência de sociedades harmônicas, onde seria assegurada a todos, independentemente de raça, credo, gênero ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo. Esta era, como já dito, a visão liberal derivada das idéias iluministas que conduziram às revoluções políticas do século XVIII.
Mas essa suposta neutralidade estatal tem-se revelado um formidável fracasso, especialmente nas sociedades que durante muitos séculos mantiveram certos grupos ou categorias de pessoas em posição de subjugação legal, de inferioridade legitimada pela lei, em suma, em países com longo passado de escravidão. Nesses países, apesar da existência de inumeráveis disposições normativas constitucionais e legais, muitas delas instituídas com o objetivo explícito de fazer cessar o status de inferioridade em que se encontravam os grupos sociais historicamente discriminados, passaram-se os anos (e séculos) e a situação desses grupos marginalizados pouco ou quase nada mudou.[12]
Tal estado de coisas conduz a duas constatações indisputáveis. Em primeiro lugar, à convicção de que proclamações jurídicas por si sós, sejam elas de natureza constitucional ou de inferior posicionamento na hierarquia normativa, não são suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural de cada país, no imaginário coletivo, em suma, na percepção generalizada de que a uns devem ser reservados papéis de franca dominação e a outros, papéis indicativos do status de inferioridade, de subordinação. Em segundo lugar, ao reconhecimento de que a reversão de um tal quadro só é viável mediante a renúncia do Estado à sua histórica neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao revés, uma posição ativa, até mesmo radical se vista à luz dos princípios norteadores da sociedade liberal clássica.
Desse imperativo de atuação ativa do Estado nasceram as Ações Afirmativas, concebidas inicialmente nos Estados Unidos da América, mas hoje já adotadas em diversos países europeus, asiáticos e africanos, com as adaptações necessárias à situação de cada país.[13] [14] [15] O Brasil, país com a mais longa história de escravidão das Américas e com uma inabalável tradição patriarcal, mal começa a admitir, pelo menos em nível acadêmico, a discussão do tema[16].
2. Definição e Objetivos das Ações Afirmativas
A introdução das políticas de ação afirmativa, criação pioneira do Direito dos EUA, representou, em essência, a mudança de postura do Estado, que em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores como sexo, raça, cor, origem nacional. Nessa nova postura, passa o Estado a levar em conta tais fatores no momento de contratar seus funcionários ou de regular a contratação por outrem, ou ainda no momento de regular o acesso aos estabelecimentos educacionais públicos e privados. Numa palavra, ao invés de conceber políticas públicas de que todos seriam beneficiários, independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado passa a levar em conta esses fatores na implementação das suas decisões, não para prejudicar quem quer que seja, mas para evitar que a discriminação, que inegavelmente tem um fundo histórico e cultural, e não raro se subtrai ao enquadramento nas categorias jurídicas clássicas, finde por perpetuar as iniquidades sociais.
2.1 Definição – Inicialmente, as Ações Afirmativas se definiam como um mero “encorajamento” por parte do Estado a que as pessoas com poder decisório nas áreas pública e privada levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como o acesso à educação e ao mercado de trabalho, fatores até então tidos como formalmente irrelevantes pela grande maioria dos responsáveis políticos e empresariais, quais sejam, a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas. Tal encorajamento tinha por meta, tanto quanto possível, ver concretizado o ideal de que tanto as escolas quanto as empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho.
Num segundo momento, talvez em decorrência da constatação da ineficácia dos procedimentos clássicos de combate à discriminação, deu-se início a um processo de alteração conceitual do instituto, que passou a ser associado à idéia, mais ousada, de realização da igualdade de oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes de minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições educacionais. Data também desse período a vinculação entre ação afirmativa e o atingimento de certas metas estatísticas concernentes à presença de negros e mulheres num determinado setor do mercado de trabalho ou numa determinada instituição de ensino.[17]
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária [18], e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.
Entre os teóricos do Direito Público no Brasil, coube à ilustre professora Carmen Lúcia Antunes Rocha o desafio de traduzir para a comunidade jurídica brasileira, em sublime artigo, a mais completa noção acerca do enquadramento jurídico-doutrinário das ações afirmativas. Classificando-as corretamente como a mais avançada tentativa de concretização do princípio jurídico da igualdade, ela afirma com propriedade que «a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias».[19] Essa engenhosa criação jurídico-político-social refletiria ainda, segundo a autora, uma «mudança comportamental dos juízes constitucionais de todo o mundo democrático do pósguerra», que teriam se conscientizado da necessidade de uma «transformação na forma de se
conceberem e aplicarem os direitos, especialmente aqueles listados entre os fundamentais. Não bastavam as letras formalizadoras das garantias prometidas; era imprescindível instrumentalizarem-se as promessas garantidas por uma atuação exigível do Estado e da sociedade. Na esteira desse pensamento, pois, é que a ação afirmativa emergiu como a face construtiva e construtora do novo conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica. O Direito Constitucional, posto em aberto, mutante e mutável para se fazer permanentemente adequado às demandas sociais, não podia persistir no conceito estático de um direito de igualdade pronto, realizado segundo parâmetros históricos eventualmente ultrapassados». E prossegue a ilustre autora: «O conteúdo, de origem bíblica, de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam – sempre lembrado como sendo a essência do princípio da igualdade jurídica – encontrou uma nova interpretação no acolhimento jurisprudencial concernente à ação afirmativa. Segundo essa nova interpretação, a desigualdade que se pretende e se necessita impedir para se realizar a igualdade no Direito não pode ser extraída, ou cogitada, apenas no momento em que se tomam as pessoas postas em dada situação submetida ao Direito, senão que se deve atentar para a igualdade jurídica a partir da consideração de toda a dinâmica histórica da sociedade, para que se focalize e se retrate não apenas um instante da vida social, aprisionada estaticamente e desvinculada da realidade histórica de determinado grupo social. Há que se ampliar o foco da vida política em sua dinâmica, cobrindo espaço histórico que se reflita ainda no presente, provocando agora desigualdades nascentes de preconceitos passados, e não de todo extintos. A discriminação de ontem pode ainda tingir a pele que se vê de cor diversa da que predomina entre os que detêm direitos e poderes hoje».
2.2 Objetivos das Ações Afirmativas – Em regra geral, justifica-se a adoção das medidas de ação afirmativa com o argumento de que esse tipo de política social seria apta a atingir uma série de objetivos que restariam normalmente inalcançados caso a estratégia de combate à discriminação se limitasse à adoção, no campo normativo, de regras meramente proibitivas de discriminação. Numa palavra, não basta proibir, é preciso também promover, tornando rotineira a observância dos princípios da diversidade e do pluralismo, de tal sorte que se opere uma transformação no comportamento e na mentalidade coletiva, que são, como se sabe, moldados pela tradição, pelos costumes, em suma, pela história.
Assim, além do ideal de concretização da igualdade de oportunidades, figuraria entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas o de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a ideia de supremacia e de subordinação de uma raça em relação à outra, do homem em relação à mulher. O elemento propulsor dessas transformações seria, assim, o caráter de exemplaridade de que se revestem certas modalidades de ação afirmativa, cuja eficácia como agente de transformação social poucos até hoje ousaram negar. Ou seja, de um lado essas políticas simbolizariam o reconhecimento oficial da persistência e da perenidade das práticas discriminatórias e da necessidade de sua eliminação. De outro, elas teriam também por meta atingir objetivos de natureza cultural, eis que delas inevitavelmente resultam a trivialização, a banalização, na polis, da necessidade e da utilidade de políticas públicas voltadas à implantação do pluralismo e da diversidade.
Por outro lado, as ações afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os «efeitos persistentes» (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam na chamada «discriminação estrutural», espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados.[20]
Figura também como meta das ações afirmativas a implantação de uma certa «diversidade» e de uma maior «representatividade» dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada.[21]
Partindo da premissa de que tais grupos normalmente não são representados em certas áreas ou são sub-representados seja em posições de mando e prestígio no mercado de trabalho e nas atividades estatais, seja nas instituições de formação que abrem as portas ao sucesso e às realizações individuais, as políticas afirmativas cumprem o importante papel de cobrir essas lacunas, fazendo com que a ocupação das posições do Estado e do mercado de trabalho se faça, na medida do possível, em maior harmonia com o caráter plúrimo da sociedade. Nesse sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as «barreiras artificiais e invisíveis» que emperram o avanço de negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los.[22]
Argumenta-se igualmente que o pluralismo que se instaura em decorrência das ações afirmativas traria inegáveis benefícios para os próprios países que se definem como multirraciais e que assistem, a cada dia, ao incremento do fenômeno do multiculturalismo. Para esses países, constituiria um erro estratégico inadmissível deixar de oferecer oportunidades efetivas de educação e de trabalho a certos segmentos da população, pois isto pode revelar-se, em médio prazo, altamente prejudicial à competitividade e à produtividade econômica do país. Portanto, agir «afirmativamente» seria também uma forma de zelar pela pujança econômica do país.
Por fim, as ações afirmativas cumpririam o objetivo de criar as chamadas personalidades emblemáticas. Noutras palavras, além das metas acima mencionadas, elas constituiriam um mecanismo institucional de criação de exemplos vivos de mobilidade social ascendente. Vale dizer, os representantes de minorias que, por terem alcançado posições de prestígio e poder, serviriam de exemplo às gerações mais jovens, que veriam em suas carreiras e realizações pessoais a sinalização de que não haveria, chegada a sua vez, obstáculos intransponíveis à realização de seus sonhos e à concretização de seus projetos de vida. Em suma, com esta conotação as ações afirmativas atuariam como mecanismo de incentivo à educação e ao aprimoramento de jovens integrantes de grupos minoritários, que invariavelmente assistem ao bloqueio de seu potencial de inventividade, de criação e de motivação ao aprimoramento e ao crescimento individual, vítimas das sutilezas de um sistema jurídico, político, econômico e social concebido para mantê-los em situação de excluídos.
3. A Problemática Constitucional
As ações afirmativas situam-se no cerne do debate constitucional contemporâneo, e interferem em questões que remontam à própria origem da democracia moderna, suscitando questionamentos acerca de temas fundamentais do modelo de organização política preponderante no hemisfério ocidental. A presente reflexão não visa a examinar com profundidade esses temas. Sobre eles faremos, portanto, apenas un tour d’horizon. Vejamos.
As afirmações afirmativas suscitam, em primeiro lugar, o debate crucial acerca da destinação dos recursos públicos. Recursos, frise-se, escassos por definição. O Estado Moderno, como se sabe, resulta do imperativo iluminista de que o conjunto dos recursos da Nação deve ser convertido em prol do interesse de todos, do bem-estar geral da coletividade («The Welfare of the Nation», «Der Wohlstand»). A História e o Direito Comparado aí estão para nos fornecer algumas pistas e nos alertar contra o perigo da inércia neste domínio. Com efeito, é até enfadonho relembrar que a ruptura brutal com o ancien régime se materializou precisamente na abolição dos privilégios que, por lei, eram atribuídos a certas classes de cidadãos. A Democracia que se seguiu, sobretudo na concepção ulterior que deu margem ao surgimento do Estado de bem estar social, tem como um dos seus pilares a tentativa de distribuição equânime e generalizada dos recursos originários do labor coletivo.
Por outro lado, não se deve perder de vista que a amoldagem do atual Estado promovente (uma realidade quase universal) é em grande parte tributária desse rigoroso zelo que as verdadeiras democracias têm para com o correto manuseio de recursos públicos. De fato, questões-chave do constitucionalismo moderno derivam dessa matriz: qual seria o «propósito legítimo» do dispêndio de recursos nacionais? Em que medida se pode questionar a constitucionalidade de certos programas governamentais à luz da exata relação deles extraível entre dispêndio de recursos públicos e incremento do bem-estar coletivo? Até que ponto pode o órgão representante da Nação compelir atores públicos e privados beneficiários desses recursos a se conformarem às regras de equidade ínsitas a toda e qualquer democracia? Das múltiplas respostas a essas questões, como se sabe, emergiu o Estado interventivo e regulador e o seu corolário – o Estado de Bem-Estar Social.
Ora, o País que ignora essas noções básicas e reserva a uma pequena minoria os instrumentos de aprimoramento humano aptos a abrir as portas à prosperidade e ao bem-estar individual e coletivo, e, além disso (e também em conseqüência disso), adota, ainda que informalmente, uma política de emprego impregnada de visível e insuportável hierarquização social, pratica nada mais nada menos do que uma nova forma de tirania.
Sim, é disso que se trata. Uma «tirania legal», eis que formalmente ancorada em normas emanadas dos órgãos legislativos e executada por órgãos que supostamente encarnam a soberania popular. No caso brasileiro, não é preciso muito esforço para se convencer disso.
Vejamos. No estado atual das coisas, a exclusão social de que os negros são as principais vítimas no Brasil deriva de alguns fatores, dentre os quais figura o esquema perverso de distribuição de recursos públicos em matéria de educação. A Educação é a mais importante dentre as diversas prestações que o indivíduo recebe ou tem legítima expectativa de receber do Estado. Trata-se, como se sabe, de um bem escasso. O Estado alega não poder fornecê-lo a todos na forma tida como ideal, isto é, em caráter universal e gratuito. No entanto, esse mesmo Estado que se diz impossibilitado de fornecer a todos esse bem indispensável, institucionaliza mecanismos sutis através dos quais proporciona às classes privilegiadas aquilo que alega não poder oferecer à generalidade dos cidadãos. Com efeito, o Estado «financia», com recursos que deveriam ser canalizados a instituições públicas de acesso universal, a educação dos filhos das classes de maior poder aquisitivo, por meio de diversos mecanismos. Isto se dá principalmente através da «renúncia fiscal» de que são beneficiárias as escolas privadas altamente seletivas e excludentes.
Certo, não seria justo negar às elites (supostas ou verdadeiras) o direito de matricular os seus filhos em escolas seletivas, onde eles se sintam «chez eux», longe da «populace». O direito de escolher uma educação «diferenciada» para os filhos constitui, a nosso sentir, uma liberdade fundamental a ser garantida pelo Estado. O que é questionável é o compartilhamento do custo desse «luxo» com toda a coletividade: através dos tributos de que essas escolas são isentas, das subvenções diversas que lhes são passadas pelos Governos das três esferas políticas, pelo abatimento das respectivas despesas no montante devido a título de imposto de renda! Esses são alguns dos elementos que compõem a formidável «machine à exclure» que tem nos negros as suas vítimas preferenciais. Essa forma de «exclusão orquestrada e disciplinada pela lei» produz o extraordinário efeito de contrapor, de um lado, a escola pública, republicana, aberta a todos, que deveria oferecer ensino de boa qualidade a pobres e ricos, a uma escola privada, elitista, discriminatória e… largamente financiada com recursos que deveriam beneficiar a todos. Este é o primeiro aspecto da exclusão.
O segundo aspecto ocorre na seleção ao ensino superior. Aí todos já sabem: os papéis se invertem. O ensino superior de qualidade no Brasil está quase inteiramente nas mãos do Estado. E o que faz o Estado nesse domínio? Institui um mecanismo de seleção que vai justamente propiciar a exclusividade do acesso, sobretudo aos cursos de maior prestígio e aptos a assegurar um bom futuro profissional, àqueles que se beneficiaram do processo de exclusão acima mencionado, isto é, os financeiramente bem aquinhoados. O vestibular, este mecanismo intrinsecamente inútil sob a ótica do aprendizado, não tem outro objetivo que não o de «excluir». Mais precisamente, o de excluir os socialmente fragilizados, de sorte a permitir que os recursos públicos destinados à educação (canalizados tanto para as instituições públicas quanto para as de caráter comercial, como já vimos) sejam gastos não em prol de todos, mas para benefício de poucos. Em suma, trata-se de uma subversão total de um dos princípios informadores do Estado moderno, sintetizado de forma lapidar em feliz expressão cunhada pela Corte Suprema dos EUA: «the power of Congress to authorize expenditure of public moneys for public purposes».
Esta é, pois, a chave para se entender por que existem tão poucos negros nas universidades públicas brasileiras, e quase nenhum nos cursos de maior prestígio e demanda: os recursos públicos são canalizados preponderantemente para as classes mais afluentes,[23] [24] restando aos pobres (que são majoritariamente negros) «as migalhas» do sistema.
Este o aspecto perverso do sistema educacional brasileiro[25]. Os negros são suas principais vítimas. E este é, sem dúvida, um problema constitucional de primeira grandeza, pois nos remete à noção primitiva de democracia, a saber: em que, por quem e em benefício de quem são despendidos os recursos financeiros da Nação.
Agir «afirmativamente» significa ter consciência desses problemas e tomar decisões coerentes com o imperativo indeclinável de remediá-los. Além da vontade política, que é fundamental, é preciso colocar de lado o formalismo típico da nossa praxis jurídico-institucional e entender que a questão é de vital importância para a legítima aspiração de todos de que um dia o País se subtraia ao opróbrio internacional a que sempre esteve confinado, e ocupe o espaço, a posição e o respeito que a sua história, o seu povo, suas realizações e o seu peso político e econômico recomendam.
No plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de consciência assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no Brasil, é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional.
A questão se coloca, é claro, no terreno do princípio constitucional da igualdade. Este princípio, porém, comporta várias vertentes.
3.3 Igualdade formal ou procedimental x Igualdade de resultados ou material – O cerne da questão reside em saber se na implementação do princípio constitucional da igualdade o Estado deve assegurar apenas uma certa “neutralidade processual” (procedural due process of law) ou, ao contrário, se sua ação deve se encaminhar de preferência para a realização de uma “igualdade de resultados” ou igualdade material. A teoria constitucional clássica, herdeira do pensamento de Locke, Rousseau e Montesquieu, é responsável pelo florescimento de uma concepção meramente formal de igualdade – a chamada igualdade perante a lei. Trata-se em realidade de uma igualdade meramente «processual» («process-regarding equality»). As notórias insuficiências dessa concepção de igualdade conduziram paulatinamente à adoção de uma nova postura, calcada não mais nos meios que se outorgam aos indivíduos num mercado competitivo, mas nos resultados efetivos que eles podem alcançar. Resumindo singelamente a questão, diríamos que as nações que historicamente se apegaram ao conceito de igualdade formal são aquelas onde se verificam os mais gritantes índices de injustiça social, eis que, em última análise, fundamentar toda e qualquer política governamental de combate à desigualdade social na garantia de que todos terão acesso aos mesmos «instrumentos» de combate corresponde, na prática, a assegurar a perpetuação da desigualdade. Isto porque essa «opção processual» não leva em conta aspectos importantes que antecedem à entrada dos indivíduos no mercado competitivo. Já a chamada «igualdade de resultados» tem como nota característica exatamente a preocupação com os fatores «externos» à luta competitiva – tais como classe ou origem social, natureza da educação recebida -, que têm inegável impacto sobre o seu resultado.[26]
Vários dispositivos da Constituição brasileira de 1988 revelam o repúdio do constituinte pela igualdade «processual» e sua opção pela concepção de igualdade dita «material» ou «de resultados».
Assim, por exemplo, os artigos 3º, 7-XX.º, 37-VIII e 170 dispõem:
«Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
(…)
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais».
«Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
VII – redução das desigualdades regionais e sociais(…)
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País».[27]
«Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XX – Proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;»
«Art. 37 (…)
VIII – A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão».
É patente, pois, a maior preocupação do legislador constituinte originário com os direitos e garantias fundamentais, bem como com a questão da igualdade, especialmente a implementação da igualdade substancial. Flavia Piovesan assinala como símbolo dessa preocupação «(a) ‘topografia’ de destaque que recebe este grupo de direitos (fundamentais) e deveres em relação às Constituições anteriores; (b) a elevação, à ‘cláusula pétrea’, dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV); (c) o aumento dos bens merecedores de tutela e da titularidade de novos sujeitos de direito (‘coletivo’), tudo comparativamente às Cartas antecedentes.”[28] Some-se a isso a previsão expressa, em sede constitucional, da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I) e, em alguns casos, da permissão expressa para utilização das ações afirmativas, com o intuito de implementar a igualdade, tais como o artigo 37, VIII (reserva de cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência) e art. 7º, XX (“proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”).
Vê-se, portanto, que a Constituição Brasileira de 1988 não se limita a proibir a discriminação, afirmando a igualdade, mas permite, também, a utilização de medidas que efetivamente implementem a igualdade material. E mais: tais normas propiciadoras da implementação do princípio da igualdade se acham precisamente no Título I da Constituição, o que trata dos Princípios Fundamentais da nossa República, isto é, cuida-se de normas que informam todo o sistema constitucional, comandando a correta interpretação de outros dispositivos constitucionais.
Como bem sustentou a ilustre Professora de Direito Constitucional da PUC de Minas Gerais, Carmen Lúcia Antunes Rocha, «a Constituição Brasileira de 1988 tem, no seu preâmbulo, uma declaração que apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a idéia de que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado para que se chegue a tê-los(…) O princípio da igualdade resplandece sobre quase todos os outros acolhidos como pilastras do edifício normativo fundamental alicerçado. É guia não apenas de regras, mas de quase todos os outros princípios que informam e conformam o modelo constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se dá a servir: o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição da República»[29]. E prossegue a ilustre jurista, fazendo alusão expressa aos dispositivos constitucionais acima transcritos: «Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional. E todos os objetivos contidos, especialmente, nos três incisos acima transcritos do art. 3º, da Lei Fundamental da República, traduzem exatamente mudança para se chegar à igualdade. Em outro dizer, a expressão normativa constitucional significa que a Constituição determina uma mudança do que se tem em termos de condições sociais, políticas, econômicas e regionais, exatamente para se alcançar a realização do valor supremo a fundamentar o Estado Democrático de Direito constituído. Se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos discriminatórios, o princípio seria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da República constitucionalmente definidos. Pois daqui para a frente, nas novas leis e comportamentos regulados pelo Direito, apenas seriam impedidas manifestações de preconceitos ou cometimentos discriminatórios. Mas como mudar, então, tudo o que se tem e se sedimentou na história política, social e econômica nacional? Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade do princípio da igualdade, para se chegar à igualdade que a Constituição Brasileira garante como direito fundamental de todos. O art. 3º traz uma declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se, ali, implícita, mas claramente, que a República Federativa do Brasil não é livre, porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercício dos direitos, pelo que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa. Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo de condições dignas para todos. E não é solidária porque fundada em preconceitos de toda sorte(…) O inciso IV, do mesmo art. 3º, é mais claro e afinado, até mesmo no verbo utilizado, com a ação afirmativa. Por ele se tem ser um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Verifica-se, então, que não se repetiu apenas o mesmo modelo principiológico que adotaram constituintes anteriormente atuantes no país. Aqui se determina agora uma ação afirmativa: aquela pela qual se promova o bem de todos, sem preconceitos (de) quaisquer… formas de discriminação. Significa que se universaliza a igualdade e promove-se a igualação: somente com uma conduta ativa, positiva, afirmativa, é que se pode ter a transformação social buscada como objetivo fundamental da República. Se fosse apenas para manter o que se tem, sem figurar o passado ou atentar à história, teria sido suficiente, mais ainda, teria sido necessário, tecnicamente, que apenas se estabelecesse ser objetivo manter a igualdade sem preconceitos etc.
Não foi o que pretendeu a Constituição de 1988. Por ela se buscou a mudança do conceito, do conteúdo, da essência e da aplicação do princípio da igualdade jurídica, com relevo dado à sua imprescindibilidade para a transformação da sociedade, a fim de se chegar a seu modelo livre, justa e solidária. Com promoção de mudanças, com a adoção de condutas ativas, com a construção de novo figurino sócio-político é que se movimenta no sentido de se recuperar o que de equivocado antes se fez».[30]
Esta, portanto, é a concepção moderna e dinâmica do princípio constitucional da igualdade, a que conclama o Estado a deixar de lado a passividade, a renunciar à sua suposta neutralidade e a adotar um comportamento ativo, positivo, afirmativo, quase militante, na busca da concretização da igualdade substancial.
Note-se, mais uma vez, que este tipo de comportamento estatal não é estranho ao Direito brasileiro pós-Constituição de 1988. Ao contrário, a imprescindibilidade de medidas corretivas e redistributivas visando a mitigar a agudeza da nossa «questão social» já foi reconhecida em sede normativa, através de leis vocacionadas a combater os efeitos nefastos de certas formas de discriminação. Nesse sentido, é importante frisar, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa. Não obstante tratar-se de experiências ainda tímidas quanto ao seu alcance e amplitude, o importante a ser destacado é o fato da acolhida desse instituto jurídico em nosso Direito.
4. Ação Afirmativa e relações de gênero
A discriminação de gênero, fruto de uma longa tradição patriarcal que não conhece limites geográficos tampouco culturais, é do conhecimento de todos os brasileiros. Entre nós, o status de inferioridade da mulher em relação ao homem foi por muito tempo considerado como algo qui va de soi, normal, decorrente da própria «natureza das coisas». A tal ponto que essa inferioridade era materializada expressamente na nossa legislação civil.
A Constituição de 1988 (art. 5º, I) não apenas aboliu essa discriminação chancelada pelas leis, mas também, através dos diversos dispositivos antidiscriminatórios já mencionados, permitiu que se buscassem mecanismos aptos a promover a igualdade entre homens e mulheres. Assim, com vistas a minimizar essa flagrante desigualdade existente em detrimento das mulheres, nasceu, entre nós, a modalidade de ação afirmativa hoje corporificada nas leis 9100/95 e 9504/97, que estabeleceram cotas mínimas de candidatas mulheres para as eleições[31].
As mencionadas leis representam, em primeiro lugar, o reconhecimento pelo Estado de um fato inegável: a existência de discriminação contra as brasileiras, cujo resultado mais visível é a exasperante sub-representação feminina em um dos setores-chave da vida nacional – o processo político. Com efeito, o legislador ordinário, consciente de que em toda a história política do país foi sempre desprezível a participação feminina, resolveu remediar a situação através de um corretivo que nada mais é do que uma das muitas técnicas através das quais, em direito comparado, são concebidas e implementadas as ações afirmativas: o mecanismo das cotas.
As Leis 9100/95 e 9504/97 tiveram a virtude de lançar o debate em torno das ações afirmativas e, sobretudo, de tornar evidente a necessidade premente de se implementar de maneira efetiva a isonomia em matéria de gênero em nosso país. As cotas de candidaturas femininas constituem apenas o primeiro passo nesse sentido. Se é certo que é preciso tempo para se fazer avaliações mais seguras acerca da sua eficácia como medida de transformação social, não há dúvida de que já se anunciam alguns resultados alvissareiros, como o incremento significativo, em termos globais, da participação feminina nas instâncias de poder[32].
Assim, as mencionadas leis consagram a recepção definitiva pelo Direito brasileiro do princípio da ação afirmativa. Ainda que limitada a uma forma específica de discriminação, o fato é que essa política social ingressou nos «moeurs politiques» da Nação, uma vez que foi aplicada sem contestação em dois pleitos eleitorais.
5. Ação Afirmativa e Portadores de Deficiência
O mesmo princípio também vem sendo adotado pela legislação que visa a proteger os direitos das pessoas portadoras de deficiência física.
Com efeito, a Constituição Brasileira, em seu artigo 37, VIII, prevê expressamente a reservas de vagas para deficientes físicos na administração pública. Neste caso, a permissão constitucional para adoção de ações afirmativas em relação aos portadores de deficiência física é expressa. Daí a iniciativa do legislador ordinário, materializada nas leis 7.835/89 e 8.112/90, que regulamentaram o mencionado dispositivo constitucional. De fato, a Lei 8112/90 (Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União) estabelece em seu art. 5º, § 2º que “às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”.
Comentando o dispositivo transcrito, Mônica de Melo[33], com muita propriedade, afirma: “Desta forma, qualquer concurso público que se destine a preenchimento de vagas para o serviço público federal deverá conter em seu edital a previsão das vagas reservadas para os portadores de deficiência. Note-se que o artigo fala em até 20% (vinte por cento) das vagas, o que possibilita uma reserva menor e o outro requisito legal é que as atribuições a serem desempenhadas sejam compatíveis com a deficiência apresentada. Há entendimentos no sentido de que 10% (dez por cento) das vagas seriam um percentual razoável, à medida que no Brasil haveria 10% de pessoas portadoras de deficiência, segundo dados da Organização Mundial de Saúde”.
Esta outra modalidade de «discriminação positiva» tem recebido o beneplácito do Poder Judiciário. Com efeito, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça já tiveram oportunidade de se manifestar favoravelmente sobre o tema, verbis:
“Ementa:
Sendo o art. 37, VII, da CF, norma de eficácia contida, surgiu o art. 5º, § 2º, do novel Estatuto dos Servidores Públicos Federais, a toda evidência, para regulamentar o citado dispositivo constitucional, a fim de lhe proporcionar a plenitude eficacial. Verifica-se, com toda a facilidade, que o dispositvo da lei ordinária definiu os contornos do comando constitucional, assegurando o direito aos portadores de deficiência de se inscreverem em concurso público, ditando que os cargos providos tenham atribuições compatíveis com a deficiência de que são portadores e, finalmente, estabelecendo um percentual máximo de vagas a serem a eles reservadas. Dentro desses parâmetros, fica o administrador com plena liberdade para regular o acesso dos deficientes aprovados no concurso para provimento de cargos públicos, não cabendo prevalecer diante da garantia constitucional, o alijamento do deficiente por não ter logrado classificação, muito menos por recusar o decisum afrontado que não tenha a norma constitucional sido regulamentada pelo dispositivo da lei ordinária, tão-só, por considerar não ter ela definido critérios suficientes. Recurso
provido com a concessão da segurança, a fim de que seja oferecida à recorrente vaga, dentro do percentual que for fixado para os deficientes, obedecida, entre os deficientes aprovados, a ordem de classificação se for o caso».
(RMS 3.113-6/DF, 6ª T., 06.12.1994, cujo Relator foi o Min. Pedro Acioli)
“Concurso Público e Vaga para Deficientes
Por ofensa ao art. 37, VIII, da CF (“a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”), o Tribunal deu provimento a recurso extraordinário para reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que negara a portadora de deficiência o direito de ter assegurada uma vaga em concurso público ante a impossibilidade aritmética de se destinar, dentre as 8 vagas existentes, a reserva de 5% aos portadores de deficiência física (LC 9/92 do Município de Divinópolis). O Tribunal entendeu que, na hipótese de a divisão resultar em número fracionado — não importando que a fração seja inferior a meio —, impõe-se o arredondamento para cima.
RE 227.299-MG, rel. Min. Ilmar Galvão, 14.6.2000. (RE-227299)”
Como se vê, a destinação de um percentual de vagas no serviço público aos deficientes físicos não viola o princípio da isonomia. Em primeiro lugar, porque a deficiência física de que essas pessoas são portadoras traduz-se em uma situação de nítida desvantagem em seu detrimento, fato este que deve ser devidamente levado em conta pelo Estado, no cumprimento do seu dever de implementar a igualdade material.
Em segundo, porque os deficientes físicos se submetem aos concursos públicos, devendo necessariamente lograr aprovação. A reserva de vagas, portanto, representa uma dentre as diversas técnicas de implementação da igualdade material, consagração do princípio bíblico segundo o qual deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Pois bem. Se esse princípio é plenamente aceitável (inclusive na esfera jurisdicional, como vimos) como mecanismo de combate a uma das múltiplas formas de discriminação, da mesma forma ele haverá de ser aceito para combater aquela que é a mais arraigada forma de discriminação entre nós, a que tem maior impacto social, econômico e cultural – a discriminação de cunho racial. Isto porque os princípios constitucionais mencionados anteriormente são vocacionados a combater toda e qualquer disfunção social originária dos preconceitos e discriminações incrustados no imaginário coletivo, vale dizer, os preconceitos e discriminação de fundo histórico e cultural. Não se trata de princípios de aplicação seletiva, bons para curar certos males, mas inadaptados a remediar outros.
6. Ação Afirmativa e Direito Internacional dos Direitos Humanos
O problema aqui tratado, como se sabe, transcende o Direito interno brasileiro e envolve o Direito Internacional, especialmente o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ele traduz à perfeição o fenômeno que Hélène Tourard com muita propriedade classificou como“l’internationalisation des constitutions”.[34]
Com efeito, não obstante as divergências doutrinárias e jurisprudenciais que pairam sobre o assunto, não podemos deixar de consignar a contribuição trazida à discussão da matéria por uma avançada inteligência do artigo 5º da Constituição de 1988, que em seus parágrafos 1º e 2º traz disposições importantíssimas para a efetiva implementação dos direitos e garantias fundamentais.
Com efeito, o parágrafo 1º estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata no país. Já o parágrafo 2º dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Como resultado da conjugação do § 1º com o § 2º do artigo 5º do texto constitucional, uma interpretação sistemática da Constituição nos conduz à constatação de que estamos diante de normas da mais alta relevância para a proteção dos direitos humanos (e, consequentemente, dos direitos das minorias) no Brasil, quais sejam: os tratados internacionais de direitos humanos, que, segundo o dispositivo citado, têm aplicação imediata no território brasileiro, necessitando apenas de ratificação.
Com efeito, esse é o ensinamento que colhemos em dois dos nossos mais eruditos scholars, especialistas na matéria, os Professores Antônio Augusto Cançado Trindade[35] e Celso de Albuquerque Mello, verbis:
“O disposto no art. 5º, § 2º da Constituição Brasileira de 1988 se insere na nova tendência de Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5º, § 2º e 5º, § 1º, da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno”[36].
«A Constituição de 1988 no § 2 do art. 5º constitucionalizou as normas de direitos humanos consagradas nos tratados. Significando isto que as referidas normas são normas constitucionais, como diz Flávia Piovesan citada acima. Considero esta posição já como um grande avanço. Contudo sou ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada. A nossa posição é a que está consagrada na jurisprudência e tratado internacional europeu de que se deve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano, seja ela interna ou internacional. A tese de Flávia Piovesan tem a grande vantagem de evitar que o Supremo Tribunal Federal venha a julgar a constitucionalidade dos tratados internacionais».[37] [Grifos deste Blog]
Assim, à luz desta respeitável doutrina, pode-se concluir que o Direito Constitucional brasileiro abriga, não somente o princípio e as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa a que já fizemos alusão, mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo nosso país.
Com efeito, o Brasil é signatário dos principais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, em especial a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, os quais permitem expressamente a utilização das medidas positivas tendentes a mitigar os efeitos da discriminação.
De fato, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, dispõe em seu artigo 1º, nº 4, verbis:
«Art. 1º- 4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.»
Dispositivo de igual teor também figura no artigo 4º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), ratificada pelo Brasil em 1984, com reservas na área de direito de família, reservas estas que foram retiradas em 1994, verbis:
“Artigo 4º – 1. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados.”
É, portanto, amplo e diversificado o respaldo jurídico às medidas afirmativas que o Estado brasileiro resolva empreender no sentido de resolver esse que talvez seja o mais grave de todos os nossos problemas sociais – o alijamento e a marginalização do negro na sociedade brasileira. A questão se situa, primeiramente, na esfera da Alta Política. Ou seja, trata-se de optar por um “modèle de société, um choix politique”, como diriam os juristas da escola francesa. No plano jurídico, não há dúvidas quanto à sua viabilidade, como se tentou demonstrar. Resta, tão somente, escolher os critérios, as modalidades e as técnicas adaptáveis à nossa realidade, cercando-as das devidas cautelas e salvaguardas.
7. Critérios, modalidades e limites das Ações Afirmativas
Ao debruçar-se sobre o tema, o Professor Joaquim Falcão sustentou que “se, por um lado, é tranqüila a constatação de que o princípio da igualdade formal é relativo e convive com diferenciações, nem todas as diferenciações são aceitas. A dificuldade é determinar os critérios a partir dos quais uma diferenciação é aceita como constitucional”[38]. O autor apresenta solução ao problema, afirmando que a justificação[39] do estabelecimento da diferença seria uma condição sine qua non para a constitucionalidade da diferenciação, a fim de evitar a arbitrariedade. Esta justificação deve ter um conteúdo, baseado na razoabilidade, ou seja, num fundamento razoável para a diferenciação; na racionalidade, no sentido de que a motivação deve ser objetiva, racional e suficiente; e na proporcionalidade, isto é, que a diferenciação seja um reajuste de situações desiguais. Aliado a isto, a legislação infraconstitucional deve respeitar três critérios concomitantes para que atenda ao princípio da igualdade material: a diferenciação deve (a) decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido de que deve obediência a uma norma programática que determina a redução das desigualdades sociais; (b) ser específica, estabelecendo claramente aquelas situações ou indivíduos que serão “beneficiados” com a diferenciação; e (c) ser eficiente, ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a prioridade legal concedida e a igualdade socioeconômica pretendida[40]. Entendimento semelhante é esposado por B. Renauld no artigo já mencionado: “Trois éléments nous permettent de donner um contenu à la notion de discrimination positive telle qu’elle sera utilisée par la suite. Pour identifier une discrimination positive, il faut que l’on soit en présence d’un groupe d’individus suffisamment défini, d’une discrimination structurelle dont les membres de ce groupe sont victimes, et enfin d’un plan établissant des objectifs et définissant des moyens à mettre en oeuvre visant à corriger la discrimination envisagée. Selon les cas, le plan est adopté, voire imposé par une autorité publique ou est le fruit d’une initiative privée”.
Sem dúvida, os critérios acima estabelecidos são um ótimo ponto de partida para o estabelecimento de ações afirmativas no Brasil. Porém, falta ao Direito brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo[41],deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal.
Com efeito, o essencial é que o Estado reconheça oficialmente a existência da discriminação racial, dos seus efeitos e das suas vítimas, e tome a decisão política de enfrentá-la, transformando esse combate em uma política de Estado. Uma tal atitude teria o saudável efeito de subtrair o Estado brasileiro da ambiguidade que o caracteriza na matéria: a de admitir que existe um problema racial no país e ao mesmo tempo furtar-se a tomar medidas sérias no sentido minorar os efeitos sociais dele decorrentes.
Em segundo lugar, é preciso ter clara a ideia de que a solução ao problema racial não deve vir unicamente do Estado. Certo, cabe ao Estado o importante papel de impulsão, mas ele não deve ser o único ator nessa matéria. Cabe-lhe traçar as diretrizes gerais, o quadro jurídico à luz do qual os atores sociais poderão agir. Incumbe-lhe remover os fatores de discriminação de ordem estrutural, isto é, aqueles chancelados pelas próprias normas legais vigentes no país, como ficou demonstrado acima. Mas as políticas afirmativas não devem se limitar à esfera pública. Ao contrário, devem envolver as universidades, públicas e privadas, as empresas, os governos estaduais, as municipalidades, as organizações governamentais, o Poder Judiciário etc.
No que pertine às técnicas de implementação das ações afirmativas, podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor privado). De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da nossa tradição, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico.
Noutras palavras, ação afirmativa não se confunde nem se limita às cotas. Confira-se, sobre o tema, as judiciosas considerações feitas por Wania Sant’Anna e Marcello Paixão, no interessante trabalho intitulado «Muito Além da Senzala: Ação Afirmativa no Brasil», verbis:
“Segundo Huntley, “ação afirmativa é um conceito que inclui diferentes tipos de estratégias e práticas. Todas essas estratégias e práticas estão destinadas a atender problemas históricos e atuais que se constatam nos Estados Unidos em relação às mulheres, aos afro-americanos e a outros grupos que têm sido alvo de discriminação e, conseqüentemente, aos quais se tem negado a oportunidade de desenvolver plenamente o seu talento, de participar em todas as esferas da sociedade americana. (…) Ação afirmativa é um conceito que, usualmente, requer o que nós chamamos metas e cronogramas. Metas são um padrão desejado pelo qual se mede o progresso e não se confunde com cotas. Opositores da ação afirmativa nos Estados Unidos freqüentemente caracterizam metas como sendo cotas, sugerindo que elas são inflexíveis, absolutas, que as pessoas são obrigadas a atingi-las”.
A política de ação afirmativa não exige, necessariamente, o estabelecimento de um percentual de vagas a ser preenchido por um dado grupo da população. Entre as estratégias previstas, incluem-se mecanismos que estimulem as empresas a buscarem pessoas de outro gênero e de grupos étnicos e raciais específicos, seja para compor seus quadros, seja para fins de promoção ou qualificação profissional. Busca-se, também, a adequação do elenco de profissionais às realidades verificadas na região de operação da empresa. Essas medidas estimulam as unidades empresariais a demonstrar sua preocupação com a diversidade humana de seus quadros.
Isto não significa que uma dada empresa deva ter um percentual fixo de empregados negros, por exemplo, mas, sim, que esta empresa está demonstrando a preocupação em criar formas de acesso ao emprego e ascensão profissional para as pessoas não ligadas aos grupos tradicionalmente hegemônicos em determinadas funções (as mais qualificadas e remuneradas) e cargos (os hierarquicamente superiores). A ação afirmativa parte do reconhecimento de que a competência para exercer funções de responsabilidade não é exclusiva de um determinado grupo étnico, racial ou de gênero. Também considera que os fatores que impedem a ascensão social de determinados grupos estão imbricados numa complexa rede de motivações, explícita ou implicitamente, preconceituosas.”[42]
Por fim, no que diz respeito às cautelas a serem observadas, valho-me mais uma vez dos ensinamentos da Prof. Carmem Lúcia Antunes Rocha[43], verbis: “É importante salientar que não se quer verem produzidas novas discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das maiorias, que, sem serem marginalizadas historicamente, perdem espaços que antes detinham face aos membros dos grupos afirmados pelo princípio igualador no Direito. Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e em outros Estados, primaram sempre pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias que por eles se buscavam igualar, com o objetivo de se romperem preconceitos contra elas ou pelo menos propiciarem-se condições para a sua superação em face da convivência juridicamente obrigada.
Por ela, a maioria teria que se acostumar a trabalhar, a estudar, a se divertir etc. com os negros, as mulheres, os judeus, os orientais, os velhos etc., habituando-se a vê-los produzir, viver, sem inferioridade genética determinada pelas suas características pessoais resultantes do grupo a que pertencessem. Os planos e programas das entidades públicas e particulares de ação afirmativa deixam sempre à disputa livre da maioria a maior parcela de vagas em escolas, empregos, em locais de lazer etc., como forma de garantia democrática do exercício da liberdade pessoal e da realização do princípio da não discriminação (contido no princípio constitucional da igualdade jurídica) pela própria sociedade.”
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[1]Doutor em Direito Público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas), França. Professor da Faculdade de Direito da UERJ. Foi «Visiting Scholar» da Faculdade de Direito da Universidade de Columbia-NY, EUA. Membro do Ministério Público Federal (RJ). Autor das obras «La Cour Suprême dans le Système Politique Brésilien», editada pela Librairie Générale de Droit et Jurisprudence(LGDJ), Paris, 1994; e «Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade»,
Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001. E-mail: [email protected].
[2] As proposições legislativas a que nos referimos vão desde o Projeto de Lei apresentado pelo Senador José Sarney, que reserva aos negros um percentual fixo de cargos da Administração pública, aos de vários parlamentares do Partido dos Trabalhadores e de outros partidos de esquerda, que instituem cotas para negros nas universidades públicas e nos meios de comunicação. Todos esses projetos, que têm sido duramente criticados pelo «establishment» branco receoso de perder nacos dos privilégios multisseculares de que desfrutam, evidentemente têm reduzidas chances de aprovação, a não ser que os negros brasileiros se organizem de forma mais coerente e passem a constituir uma força política expressiva no jogo político nacional. Fora essa hipótese, só mesmo o ocaso ou a emergência de um líder político suficientemente forte e dotado de vontade inquebrantável de mudança social (não necessariamente negro, é bom frisar!), poderá mudar o quadro de abandono, ostracismo e violenta exclusão a que os negros brasileiros são cotidianamente relegados. Assim, embora as chances de aprovação desses projetos sejam reduzidas no atual quadro jurídico-político do País, a reflexão acerca do tratamento jurídico do tema neles tratado reveste-se da maior relevância.
[3] Para uma reflexão jurídica a respeito desse tema, tal como ele se apresenta em seu berço histórico, isto é, nos Estados Unidos da América, consulte-se Joaquim B. Barbosa Gomes, «Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. O Direito como Instrumento de Transformação Social», Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001.
[4] Frise-se, por oportuno, que se a «teoria» das ações afirmativas é quase inteiramente desconhecida no Brasil, a sua «prática», no entanto, não é de todo estranha à nossa vida administrativa. Com efeito, o Brasil já conheceu em passado não muito remoto uma modalidade (bem brasileira!) de ação afirmativa. É a que foi materializada na chamada «Lei do Boi», isto é, a Lei n. 5.465/68, cujo art. 1º era assim redigido: «Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, 50% (cinqüenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural, e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio».
[5] Veja-se a bem elaborada e exaustiva monografia de Guilherme Machado Dray, «O Princípio da Igualdade no Direito do Trabalho», ed. Livraria Almedina, Coimbra, 1999.
[6] V. Carmen Lúcia Antunes Rocha, «Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica», in Revista Trimestral de Direito Público nº 15/85, p. 86.
[7] V. especialmente a Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965); a Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher(1979); o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(1966); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos(1966).
[8] Flavia Piovesan, «Temas de Direitos Humanos», ed. Max Limonad, São Paulo, 1998, p. 130.
[9] V. Bernadette Renauld, “Les Discriminations Positives”, in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, 1997, p. 425.
[10] Ainda que timidamente, as elites dirigentes brasileiras começam a se expressar publicamente a respeito da urgente necessidade de se enfrentar com responsabilidade e conseqüência o problema racial brasileiro. Cogita-se, veladamente, nos círculos governamentais, da introdução de uma ou outra forma de ação afirmativa. Num brilhante artigo recentemente publicado, ninguém menos do que o Vice-Presidente da República, Marco Maciel, abordou de maneira corajosa e apropriada a questão. Disse S. Exa: “As formas ostensivas e disfarçadas de racismo que permeiam nossa sociedade há séculos sob a complacência geral e a indiferença de quase todos são parte dessa obra inacabada, inconclusa, de cujos efeitos somos responsáveis. A riqueza da diversidade cultural brasileira não serviu, em termos sociais, senão para deleite intelectual de alguns e demonstração de ufanismo de muitos. Terminamos escravos do preconceito, da marginalização, da exclusão social e da discriminação que caracterizam o dualismo social e econômico do Brasil. É chegada a hora de resgatarmos esse terrível débito que não se inscreve apenas no passivo da discriminação étnica, mas sobretudo no da quimérica igualdade de oportunidades virtualmente asseguradas por nossas constituições aos brasileiros e aos estrangeiros que vivem em nosso território(…) O Brasil terá de convencer-se de que os negros e seus descendentes deixarão de ser minoria no próximo século, pois já representam maioria em três das cinco regiões brasileiras(…) Vencer o preconceito que se generalizou e tornar evidente o débito de sucessivas gerações de brasileiros para com a herança da escravidão que se transformou em discriminação são apenas parte do desafio. Se vamos consegui-lo com o sistema de quotas compulsórias no mercado de trabalho e na universidade, como nos Estados Unidos, ou se vamos estabelecê-las também em relação à política, como acaba de fazer a lei eleitoral, com referência às mulheres, é uma incógnita que de antemão ninguém ousará responder. Não tenho dúvida de que se não tivesse havido discriminação econômica, não teria havido exclusão social. Sem uma e a outra a discriminação racial não teria encontrado o campo em que plantou raízes. O caminho da ascensão social, da igualdade jurídica, da participação política, terá de ser cimentado pela igualdade econômica que, em nosso caso, implica o fim da discriminação dos salários, maiores oportunidades de emprego e participação na vida pública(…)”. (Folha de S. Paulo, 18-11-00, p. A-3.)
[11] A esse respeito, confira-se a definição de discriminação extraída da decisão “Andrews”, proferida pela Corte Suprema do Canadá: discrimination est “une distinction, intentionelle ou non, mais fondée sur des motifs relatifs à des caractéristiques personnelles d’un individu ou d’un groupe d’individus, qui a pour effet d’imposer à cet individu ou à ce groupe des fardeaux, des obligations ou des désavantages non imposés à d’autres ou d’empêcher ou de restreindre l’accès aux possibilites, aux bénéfices et aux avantages offerts à d’autres membres de la société”. (Corte Suprema do Canadá, Andrews v. Law Society of British Columbia, 2-2-89, RCS, p. 143, Dominion Law Reports, 56, 4d, p. 1),
[12] V. Freeman, Legitimizing Racial Discrimination Through Antidiscrimination Law: A Critical Review of Supreme Court Doctrine, 62 Minnesotta Law Review 1049(1978).
[13] V. Barbara Bergmann, «In Defense of Affirmative Action» – Basic Books, NY, 1996; Terry Eastland, «Ending Affirmative Action», Basic Books, NY, 1996;Lincoln Caplan, «Up Against the Law – Affirmative Action and the Supreme Court», The Twentieth Century Fund Press, NY, 1997; Michel Rosenfeld, «Affirmative Action and Justice», Oxford Univerty Press, NY, 1991; Melvin Urofsky, «A Conflict of Rights: The Supreme Court and Affirmative Action», Scribners, NY, 1991; William G. Bowen & Derek Bok, «The Shape of the River – Long-Term Consequences of Considering Race in College and University Admissions», Princeton University Press, 1998; Gerald Gunther and Kathleen M. Sullivan, «Constitutional Law», The Foundation Press, Inc., 1997; Laurence Tribe, «American Constitutional Law», The Foundation Press, Inc., 1988; Lockhart, Kamisar, Choper, Shiffrin, «Constitutional Law», West Publishing Co, 1995; David M. O’Brien, «Constitutional Law and Politics», vol. 2, W.W.Norton&Company, NY, 1997; Stephen Carter, «Reflections of an Affirmative Action Baby», Basic Books, NY, 1991; Kimberle Crenshaw, Neil Gotanda, Gary Peller, Kendall Thomas, «Critical Race Theory: The Key Writings that formed the movement», 1995; Luke Harris & Uma Narayan, «Affirmative Action and the Myth of Preferential Treatment: A Transformative Critique of the Terms of the Affirmative Action Debate, 11 Harvard BlackLetter Law Journal 1 (1994); Deborah Hellman, «Two Types of Discrimination: The Familiar and The Forgotten», 86 California Law Review 315 (1998); Leon Higginbotham, Jr. «Shades of Freedom: Racial Politics and Presumptions of the American Legal Process» (1996); Samuel Issacharoff, «Bakke in the Admissions Office and the Courts: Can Affirmative Action Be Defended?, 59 Ohio St. Law Journal 669; Ken Kostka, «Higher Education, Hopwood and Homogeneity: Preserving Affirmative Action and Diversity in a Scrutinizing Society», 74 Denver University Law Review 265(1996); Goodwin Liu, «Affirmative Action in Higher Education: The Diversity Rationale and the Compelling Interest Test», 33 Harvard Civil Rights-Civil Liberties Review 381 (1998); Barbara F. Reskin, «The Realities of Affirmative Action in Employment» (1998);Morris B. Abraham, «Affirmative Action: fair shakers and social engineers», Harvard Law Review, 99/1312; Susan Strum & Lani Guinier, «Race-Based Remedies: Rethinking the Process of Classification and Evaluation: The Future of Affirmative Action: The Reclaiming the Innovative Ideal», 84 California Law Review 953 (1996); Georges Stephanopoulos & Christopher Edly, Jr. «Affirmative Action Review: Report to the President» (1995); Paul J. Mishkin, «The uses of ambivalence: reflections on the Supreme Court and the constitutionality of affirmative action», University of Pennsylvania Law Review, vol. 131; Olivier Beaud, «L’affirmative action aux États-Unis: une discrimination à rebours», Revue Internationale de Droit Comparé, 1984, n. 3/503; Joana Shmidt, «La notion d’égalité dans la jurisprudence de la Cour Suprême des États-Unis d’Amérique», Revue Internationale de Droit Comparé, 1987, n. 1/43.
[14] V. Bernardette Renauld, op. cit.; Paulo Ferreira da Cunha, «Le Droit à l’éducation au Portugal: gratuité et discrimination positive. La dialectique théorique-pratique et les droits fondamentaux», in Jacques-Ivan Morin(coord.), «Les Défis des Droits Fondamentaux», ed. Bruylant, Bruxelas, 2000.
[15] Para um tratamento da questão de minorias na perspectiva do Direito Internacional, veja-se Gabi Wucher, «Minorias – Proteção Internacional em Prol da Democracia», editora Juarez de Oliveira, SP, 1999.
[16] V. Carmen Lúcia Antunes Rocha, «Ação Afirmativa – o Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica», in Revista Trimestral de Direito Público nº 15/96; veja-se igualmente, numa perspectiva mais ampla, o excelente «paper» « A Constituição Aberta e Atualidades dos Direitos Fundamentais do Homem », de Carlos Roberto de Siqueira Castro, tese de concurso público de titularidade na Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, 1995, ainda não publicado; Wania Sant’Anna e Marcello Paixão, «Muito Além da Senzala: Ação Afirmativa no Brasil».
[17] V. Nathan Glazer, “Racial Quotas”, in Racial Preference and Racial Justice, Ethics and Public Policy Center, Washington, 1991.
[18] Barbara Reskin, Affirmative Action in Employment – Washington: American Sociological Association, 1997, unpublished paper – Apud Rosana Heringer, Addressing race inequalities in Brazil: lessons from the US – Working Paper Series nº 237. Washington, DC: Latin American Program – Woodrow Wilson International Center for Scholars, 1999.
[19] V. Carmen Lúcia Antunes Rocha, «Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica», in Revista Trimestral de Direito Público nº 15/85 [20] V. American Apartheid – Massey & Denton, 1993; America Unequal – Danziger & Gottschalk, 1995.
[21] Nos primeiros dias de novembro de 2000, precisamente no momento em que concluíamos a elaboração deste «paper», o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou, em atitude inédita na nossa histórica jurídico-política, uma medida que se enquadra perfeitamente nesta modalidade de ação afirmativa: a nomeação da juíza Ellen Gracie Northfleet para o cargo de Ministra do Supremo Tribunal Federal, uma decisão tardia e que seguramente jamais teria se concretizado sem o esforço «afirmativo» do Chefe de Estado e de alguns dos seus colaboradores e interlocutores do meio jurídico, ou seja, pessoas que, a par da formação jurídica clássica, são dotadas de uma «longue vue» e perceberam que seria insustentável, a médio prazo, a discriminação «oficiosa» de que ainda são vítimas as mulheres no aparelho judiciário brasileiro: não obstante constituírem quase a metade do contingente total de juízes do país, elas exercem suas funções majoritariamente em primeira instância, uma poucas em segunda instância e, há até bem pouco tempo, nenhuma nos Tribunais Superiores. Portanto, a nomeação da Juíza Northfleet pode vir a simbolizar o fim dessa «hierarquização oficiosa», que é, como sabemos, uma clara submanifestação da discriminação. V. nota seguinte.
[22] «Glass Ceiling» é a expressão utilizada pelos norte-americanos para designar as barreiras artificiais e invisíveis que obstaculizam o acesso de negros e mulheres qualificados a posições de poder e prestígio, limitando-lhes o crescimento e o progresso individual. O reconhecimento oficial da existência desses obstáculos artificiais se deu por ocasião da promulgação pelo Congresso do Civil Rights Act de 1991, que criou a «Glass Ceiling Commission», um órgão consultivo de natureza colegiada, composto por 21 membros nomeados pelo Presidente da República e por líderes do Congresso, com a incumbência de identificar as barreiras invisíveis e propor medidas hábeis a criar oportunidades de acesso de minorias a posições de mando e prestígio na órbita econômica privada. A referida Comissão constatou que, apesar dos avanços obtidos graças ao movimento dos direitos civis, no ano de 1995, 97% dos cargos executivos superiores das 1000 maiores empresas relacionadas pela revista Fortune eram ocupados por pessoas brancas e do sexo masculino. Vale dizer, um índice injustificável sob qualquer critério, haja vista que 57% da força de trabalho americana compõe-se de representantes do sexo feminino ou de minorias, ou de ambos. V. Rosana Heringer, op. cit.
[23] Confira-se, a esse respeito, a chocante declaração de um eminente professor da Faculdade de Direito da USP: «A Constituição dispõe que o ensino será ministrado com base no princípio da «igualdade de condições» para acesso e permanência na escola; no entanto, dando aulas há 28 anos na Faculdade de Direito da USP, para, em média, 250 alunos por ano, e tendo tido aproximadamente 7.000 alunos, dou meu testemunho de que nem cinco eram negros!» (Professor Antonio Junqueira de Azevedo, in Folha de S. Paulo de 15-11-96, pág. 3-2).
[24] Na linha da afirmação do ilustre Professor da USP (v. nota anterior) permitam-nos os leitores deste ensaio o acréscimo de uma imprópria observação de cunho pessoal: em vinte e cinco anos de contato ininterrupto com a ciência jurídica, onze deles em bancos de faculdades de Direito espalhadas por mais de um Continente, começando pela saudosa e querida UnB (1975-1982), tivemos oportunidade de constatar, em análise comparativa, a gravidade da situação brasileira. Nossas faculdades de Direito, notadamente as públicas, de boa qualidade, são reduto exclusivo da elite branca. Raramente nelas se encontram negros nos quadros docente e discente. O estudante ou o “scholar” em busca de comportamentos e pontos de vista diversificados nelas não encontrarão um terreno fértil. Daí a indagação: não seria esta, no fundo, uma das explicações para a enorme distância existente entre o Direito ensinado nas nossas Universidades e o Direito que prevalece na realidade concreta? Não estaríamos criando, graças a essa clivagem social que tanto nos marca, aquilo que os franceses denominam «un Droit à deux vitesses»? Não seria o Direito ensinado em nossas faculdades vocacionado à perpetuação do «pensamento único», já que é ministrado em ambiente infenso à pluralidade de pontos de vista tão inerente à própria idéia de «universidade»? Para efeito de análise comparativa, v. em nosso «Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade», ed. Renovar, 2001, o anexo contendo tradução da decisão proferida pela Corte Suprema dos EUA no caso «Regents of the University of California v. Bakke», bem como nossos comentários sobre essa seminal decisão.
[25] As cifras relativas às desigualdades de cunho racial no Brasil são estarrecedoras e constam de estudos oficiais. Aliás, o próprio Governo brasileiro reconheceu, perante as Nações Unidas, durante a Conferência Mundial contra o Racismo realizada em Durban, África do Sul, em setembro de 2001, a existência da discriminação racial em nosso país e os efeitos deletérios que ela produz na vida de suas vítimas. Estudos governamentais mostram, por exemplo, que apenas 2% dos formandos em nossas universidades são negros. Nas universidades públicas, seguramente, esse percentual é ainda menor. No campo das relações de trabalho, os dados oficiais são também alarmantes. Estudo do IPEA mostrou que negros e mulatos recebem, no geral, apenas 48% do salário recebido por brancos. Afinando-se esse tipo de pesquisa e levando-se em conta pessoas com a mesma escolaridade e que vivam na mesma região, ainda assim as diferenças são gritantes: negros e mulatos ganham, nessa situação específica, apenas 84% do que ganham os brancos. O portentoso estudo feito pelo Professor Nelson do Valle Silva, publicado no livro «Tirando a Máscara», editora Paz e Terra, 2000, mostra que até mesmo nos setores onde não se exige qualificação alguma é grande a desigualdade de cunho racial: o salário de um trabalhador rural não qualificado branco é quase o dobro do de um negro nas mesmas condições. Mesmo nos estratos médios, onde a diferença é menor, um trabalhador branco ganha 40% a mais do que um negro. V. «O Globo», 26-8-2001, p. 3; Provas MEC/2000; para se ter acesso ao estudo do professor Ricardo Henriques, do IPEA, veja-se: www.ipea.gov.br/pub/td/td_2001/td0807.pdf.
[26] Interessante sob o prisma da reflexão jurídica de natureza comparativa é a inteligência dada pela Corte Suprema do Canadá ao art. 15 da Carta de Direitos e Liberdades, de 1982, assim vazado: “La loi ne fait exception de personne et s’applique également à tous, et tous ont droit à la même protection et au même bénéfice de la loi, indépendamment de toute discrimination, notamment des discriminations fondées sur la race, l’origine nationale ou ethnique, la couleur, la religion, le sexe, l’âge ou les déficiences mentales ou physiques”. No artigo supracitado, Bernadette Renauld nos dá conta do modo como a Corte Suprema do Canadá interpreta o princípio geral da igualdade, corporificado no artigo da Carta aqui transcrito, verbis: “Il ressort de l’arrêt Andrews que les droits garantis à l’article 15 de la Charte existent exclusivement au profit des groupes qui sont susceptibles d’être ou qui sont effectivement victimes de discrimination au sein de la société canadienne. Par là, la Cour interprète cette disposition non pas comme un droit general à l’égalité, mais bien comme une protection spécifique contre la discrimination au profit des groupes minorisés ou plus faibles. Est discriminatoire une mesure qui aggrave la situation de groupes au détriment desquels existe dans la société une discrimination historique, sociétaire ou systémique”. Bernadette Renauld, op. cit., p. 456.(s/grifos)
[27] Eis aí uma modalidade explícita de ação afirmativa, tendo como beneficiário não um indivíduo ou um grupo social, mas uma determinada categoria de empresa.
[28] CUNHA, Elke Mendes e FRISONI, Vera Bolcioni (citando as três importantes observações acerca da declaração de direitos da Constituição de 1988, feitas pela ilustre prof. FLÁVIA PIOVESAN, em aula por esta proferida para o Concurso para Assistente-Mestre, cadeira de Direito Constitucional, Graduação Direito, PUC/SP, em dezembro de 1994). In “Igualdade: Extensão Constitucional”. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, Ano 04, nº 16, p. 248-267,
Julho/Setembro de 1996.
[29] Carmen Lúcia Antunes Rocha, «Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica», in Revista Trimestral de Direito Público nº 15/96, p. 85.
[30] Carmen Lucia Antunes Rocha, op. cit., p. 93.
[31] A lei 9100/95 expressamente instituiu o percentual mínimo de 20% de mulheres candidatas às eleições municipais do ano de 1996, com o objetivo de aumentar a representação das mulheres nas instâncias de poder. Posteriormente a lei 9504/97, aumentou o percentual para 30% (ficando definido um mínimo de 25%, transitoriamente, em 1998), estendendo a medida às outras entidades componentes da Federação, e também ampliando em 50% o número das vagas em disputa.
[32] Por exemplo, na esfera municipal, após as eleições de 1996, verificou-se um aumento de 111% das vereadoras eleitas em relação às eleições municipais anteriores. Assim, tomando-se como referência o ano de 1982, porque coincide com o início da abertura política no país, verifica-se que o percentual de vereadoras correspondia a 3,5% do total; em 1992, o índice situava-se na faixa dos 8%; e nas eleições de 1996, este percentual passa a corresponder a 11% do total de representantes nas Câmaras Municipais.
[33] MELO, Mônica. O Princípio da Igualdade à luz das Ações Afirmativas: o Enfoque da Discriminação Positiva. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 6, nº 25, out./dez., 1998.
[34] V. Hélène Tourard, “L’Internationalisation des Constitutions Nationales”, LGDJ, Paris, 2000; Henry J. Steiner & Philip Alston, “International Human Rights in Context”, Oxford University Press, Oxford, 2000; entre nós, v. Antonio Augusto Cançado Trindade, “Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos”, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1997; Celso D. de Albuquerque Mello, “ Direito Constitucional Internacional”, Rio de Janeiro, ed. Renovar, 1994; Carlos Roberto de Siqueira Castro, “A Constituição Aberta e Atualidades dos Direitos do Homem”, op. cit, 1995.; Flávia Piovesan, “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, São Paulo, ed. Max Limonad, 1996; Ingo Wolfgang Sarlet, “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2000.
[35] Note-se, porém, que neste ponto doutrina e jurisprudência divergem, eis que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm se posicionando no sentido de que os tratados internacionais possuem, no nosso ordenamento jurídico, status de lei ordinária. [grifo deste Blog]
[36] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1996.
[37] Celso de Albuquerque Mello, «O § 2º do art. 5º da Constituição Federal», in Ricardo Lobo Torres (Org.), «Teoria dos Direitos Fundamentais», Rio de Janeiro, ed. Renovar, 1999. V. também, sobre o tema, Flavia Piovesan, «Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional», São Paulo, Ed. Max Limonad, 1996.
[38] FALCÃO, Joaquim de Arruda. Op. Cit. P. 302/310.
[39] Celso Antônio Bandeira de Mello, em “Desequiparações Proibidas, Desequiparações Permitidas”, afirma que “o que se tem que indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é o seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for “justificável”, por existir uma correlação lógica entre o “fator de discrimen” tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou – o que ainda seria mais flagrante – se nem ao menos houvesse um fator de discrimen identificável, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade.
[40] FALCÃO, Joaquim de Arruda. Op. Cit. P. 302/310.
[41] Cite-se, à guisa de exemplo, alguns planos de ação afirmativa que vêm sendo formulados na esfera dos Estados, instituindo cotas nas universidades estatais para alunos egressos das escolas públicas. Nesses casos, coexistem lado a lado: a) um critério objetivo (aluno de escola pública); b) a cota; c)um fator oculto: o fator racial. O fator oculto representa a maneira evasiva, fugidia, envergonhada, bem brasileira, de tratar da questão racial. Mas ninguém tem dúvida: a maioria esmagadora dos negros brasileiros estudam em escolas públicas. Portanto, eles serão os maiores beneficiários desses projetos. Daí a reação dos que tradicionalmente se beneficiaram da exclusão…
[42] In www.ibase.org.br/paginas/wania.html.
[43] ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Op. Cit. P. 88.
Fonte: Combate ao Racismo Ambiental