O direito ao próprio corpo: o processo Cairo+20

O Dia Internacional da Mulher é uma excelente ocasião para refletir sobre a mais importante negociação global sobre direitos humanos de 2014: a revisão das normas acordadas em 1994 na Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, realizada no Egito. Conhecido como processo Cairo+20, esse diálogo irá atualizar até setembro o Programa de Ação que fornece diretrizes para direitos sexuais e reprodutivos em temas cruciais como planejamento familiar, atendimento médico, combate à mortalidade materna, regras sobre o aborto e a aceitação da homossexualidade. Há riscos de retrocesso nessa agenda multilateral devido à ascensão de extremistas em diversos países, inclusive no Brasil.

Um dos princípios que regem os direitos humanos é a autonomia sobre o próprio corpo, em geral expressa na proteção diante de violências e agressões, como tortura ou prisão arbitrária. O reconhecimento de que essa prerrogativa de liberdade individual também se aplica à sexualidade seguiu caminho mais longo e complexo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece o direito de todas as pessoas a formar uma família. Na Conferência de Teerã (1968) o marco foi a definição do planejamento familiar como uma opção individual, e não simplesmente uma ferramenta de política pública dos governos. Na década de 1990, as conferências do Cairo e de Beijing (sobre direitos das mulheres, em 1995) firmaram o entendimento sobre direitos reprodutivos, cuja atualização se discute agora.

Em linhas gerais, essas garantias significam o reconhecimento pelos Estados de que as pessoas têm autonomia e escolha sobre seus corpos, sexualidade e escolhas sobre reprodução. Não podem ser coagidas a manter relações sexuais ou a se casarem, têm que receber informações sobre planejamento familiar e ter acesso a serviços médicos nessa área. A mutilação genital feminina – ainda largamente praticada em muitos países da África e do Oriente Médio – foi considerada uma violação de direitos humanos, e não uma prática cultural legítima.

O tema mais polêmico abordado no Cairo foi o aborto e o Programa de Ação definido ao fim da conferência é um difícil compromisso. Ele estipula que o aborto não deve ser considerado um método anticoncepcional, mas também afirma que precisa ser seguro e de fácil acesso nos casos em que for considerado legal. Além disso, as mulheres que o fizerem devem ser “tratadas com humanidade”, mesmo nas situações em que ele for contra a lei. Aliás, você conhece mulheres que realizaram aborto – amigas, parentes? Você acredita que elas devam ser presas?

 

Desde 1994 há posições mais repressivas contra o aborto em alguns países – sobretudo na América, como El Salvador e Nicarágua, que passaram a proibir todas as formas de aborto, inclusive em gestações resultantes de estupro ou que colocam em risco a vida feminina. Essa é a mesma posição defendida por políticos e religiosos na maioria dos Estados da África e aqueles que no Brasil que advogam a criação de um Estatuto do Nascituro.

É um contraste com o cenário nos países desenvolvidos, nos quais o aborto é legal em diversas circunstâncias – e também menos frequente do que em países nos quais é proibido. Tribunais internacionais como a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Suprema Corte dos Estados Unidos afirmam que é um direito feminino até o momento em que o embrião adquire capacidade de vida autônoma, fora do corpo da gestante – em geral, entre a 24ª e 28ª semana da gravidez. A legislação progressista é um bom indicador da disposição de cada sociedade de debater direitos sexuais e reprodutivos e garantir o acesso a informação e serviços médicos.

Há esforços internacionais em contrabalancear as leis repressivas adotadas por alguns Estados nos últimos 20 anos. Em 2013, a os países latino-americanos se reuniram no Uruguai para definir suas posições para o processo Cairo+20, e afirmaram que o aborto não deve ser considerado crime, lamentando as consequências das nações que adotaram essa perspectiva.

O aborto é um dos temas mais difíceis debatidos no processo Cairo+20, o outro é a orientação sexual. A luta pelo casamento igualitário e o enfrentamento à discriminação estão na vanguarda de diversas campanhas por direitos humanos, mas os últimos anos também viram a propagação de uma onda de homofobia e legislação que criminaliza a homossexualidade, em países como Índia, Uganda e Rússia. As negociações na ONU podem ser um momento importante para criar uma barreira que contenha a ascensão dessa política de ódios.

A Anistia Internacional lançou uma campanha global “Meu Corpo, Meus Direitos“, para pressionar os governos a honrar os compromissos do Cairo e fazer avançar essa agenda. No Brasil, as atividades incluem uma petição à presidente Dilma Rousseff. O país tem histórico progressista nos fóruns globais de direitos sexuais e reprodutivos, em grande medida porque essas discussões ocorreram simultaneamente ao processo de redemocratização, da promulgação da Constituição de 1988 e da consolidação do movimento feminista brasileiro. Tanto entre os diplomatas quanto entre os movimentos sociais, o Brasil têm excelentes negociadores, qualificados e respeitados internacionalmente. A Lei Maria da Penha de combate à violência de gênero é considerada uma das mais avançadas do mundo e é fruto da articulação entre mobilizações nacionais e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mostrando a importância do diálogo entre política doméstica e internacional.

Esse legado positivo está em risco pela ascensão de extremistas político-religiosos no Brasil – muitos deles, parte da coalizão governista. O país perdeu o dinamismo que teve na ONU em outras épocas e essa ausência é sentida, pois a liderança brasileira faz falta para conter o avanço de forças fundamentalistas. Em ano de eleições gerais bastante disputadas, as ameaças às conquistas nesse campo são ainda maiores no país.

 

 

 

Fonte: Brasil Post

 

 

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